Victoria e Abdul: o Confidente da Rainha / Victoria & Abdul

3.5 out of 5.0 stars

Há filmes demais sobre os reis e rainhas britânicos. Demais, demais da conta. A culpa, creio, não é do cinema, é da família real. Quem manda que ela tenha tantas histórias maravilhosas, sensacionais, algumas tristes, trágicas, outras divertidas, engraçadas, mas todas sempre fascinantes?

A história da rainha Victoria e Abdul tinha mesmo que virar filme. Meu, que história! Por mais imaginativos que sejam os escritores e os roteiristas dessas coisas tipo Senhor dos Anéis e Game of Thrones, jamais conseguiriam bolar uma história como a da rainha Victoria e Abdul.

Uma história verdadeira, por mais incrível que pareça.

Como diz, bem humoradamente, o letreiro no início dos gostosos 111 minutos de Victoria & Abdul, co-produção Grã-Bretanha-EUA de 2017: “Based on a true story… mostly”. Baseado em uma história real… quase. A maior parte.

De cara, o filme já se desobriga a ser absolutamente fiel aos fatos. Já avisa que se permitiu alguma licença poética. Embora na verdade as indicações sejam de que ele foi bastante fiel – na medida do possível para uma obra de ficção – à verdade histórica.

Judi Dench já havia interpretado a rainha Victoria quase 20 anos antes

Tanto o diretor Stephen Frears quanto a atriz Judi Dench, ambos portadores daquele selo de “qualidade garantida ou seu dinheiro de volta” são reincidentes nessa aventura que é fazer filmes sobre os reis e rainhas britânicos. É mesmo muito difícil escapar dela.

Stephen Frears, um dos mais competentes realizadores do cinema mundial nas últimas décadas, autor de uma obra tão eclética quanto de qualidade constante, fez A Rainha/The Queen. O filme, lançado em 2006, mostra os terríveis dias após a morte em Paris da princesa Diana, em que um jovem primeiro-ministro do Partido Trabalhista, Tony Blair, teve que ajudar a Rainha Elizabeth II a perceber que, mesmo contra a sua vontade, a Casa de Windsor deveria prestar as homenagens devidas àquela que era, afinal, a pessoa da família real mais amada pelo povo.

Judi Dench já havia interpretado a rainha Elizabeth I (1558-1603), em Shakespeare Apaixonado, de 1998, e também a própria rainha Victoria, em Sua Majestade, Mrs. Brown/Mrs. Brown, de 1997.

É fantástico: neste Victoria & Abdul, ela volta a interpretar a mesma rainha Victoria que já havia feito quase 20 anos antes. E, pela segunda vez, interpreta a rainha Victoria vivendo uma relação que melindrou, assustou, escandalizou a corte britânica e boa parte de seus súditos.

Victoria amava o marido, que a deixou viúva com apenas 42 anos

Alexandrina Victoria, filha do príncipe Edward, o quarto filho do rei George III, e da princesa Victoria de Saxe-Coburg-Saalfeld, nasceu em 1819 e morreu em 1901. Viveu, portanto, longos 81 anos, algo bastante comum hoje, mas nem tanto em seu tempo. Assumiu o trono do Reino Unido aos 18 anos de idade, graças a uma série de fatalidades: todos os três irmãos mais velhos de seu pai morreram sem deixar herdeiros; seu avô, George III, e seu pai morreram em 1820.

Vida longa, reinado longo: reinou entre 1837 e 1901, durante 63 anos e sete meses. Apenas um soberano britânico esteve no trono mais que a rainha Victoria: Elizabeth II, a atual rainha – neta de um neto de Victoria.

A rainha Victoria teve – como ela mesma diz mais de uma vez,  através da voz de Judi Dench, em Victoria & Abdul – nove filhos e 42 netos. Todos os testemunhos mostram que Victoria amava profundamente o marido, que era seu primo, o príncipe Albert de Saxe-Coburg-Gotha, nascido no mesmo ano que ela, 1819. Mas Albert morreu prematuramente em 1861, deixando Victoria viúva com apenas 42 anos.

Na tristeza da viuvez, Victoria se aproximou de um fiel, devotado servidor do casal real, o escocês John Brown – mas a amizade que devolveu um pouco de alegria à rainha tornou-se um escândalo na corte.

A história dessa amizade é o tema do filme Mrs. Brown, no Brasil Sua Majestade, Mrs. Brown.

Em 1887, quando Victoria já estava com 68 anos, surgiu Abdul Karim (o papel de Ali Fazal, que, além de pobre como John Brown, ainda por cima era indiano, de pele escura, e muçulmano. Nova amizade, novo escândalo, e novo filme – um filme esplêndido, em todos os quesitos.

Dois indianos foram escolhidos para levar um presente à rainha

Victoria & Abdul tem roteiro de Lee Hall, escritor inglês nascido em 1966, autor do roteiro do ótimo Billy Elliott (2000), que foi indicado ao Oscar e ao Bafta. Ao contrário do realizador que o convocou – Stephen Frears tem 62 títulos como diretor –, Lee Hall não é prolixo: assinou apenas 11 roteiros, desde o primeiro, em 1997.

Baseou-se na biografia de Abdul Karim escrita por Shrabani Basu – e começou a narrativa mostrando, em sequências simultâneas, momentos do dia-a-dia da rainha Victoria do Reino Unido e imperatriz da Índia, soberana de cerca de 1 bilhão de pessoas ao redor do mundo, e de Abdul Karim, um jovem indiano que trabalhava como escriturário para uma repartição pública da Índia, possessão do Império Britânico.

1887 era o ano do jubileu da rainha, os 50 anos de sua ascensão ao trono, e, como uma parte pequena, mínima dos festejos, os administradores da corte, liderados por Sir Henry Ponsonby (Tim Pigott-Smith), decidiram trazer dois súditos da Índia para entregar a Victoria uma moeda local criada em sua honra.

As autoridades inglesas na Índia escolheram para tal tarefa um sujeito terrivelmente mal humorado, que o filme identifica apenas pelo prenome de Mohammed (Adeel Akhtar, ótimo ator), e um tal Abdul Karim, rapagão alto, de fina estampa, e, como se verá a seguir, de excelente lábia – expressava-se muito bem em inglês, conhecia pelo menos dois dialetos hindus e tinha um vasto conhecimento geral sobre as coisas de seu país que viriam a impressionar sobremodo a monarca.

Emtediada, enfadada, a rainha no entanto nota a beleza do jovem indiano

A sequência em que aqueles dois personagens se encontram pela primeira, num jantar de gala, a rainha Victoria na extremidade de uma mesa quilométrica, é de fazer cinéfilo aplaudir de pé como na ópera.

A rainha Victoria que Stephen Frears e Judi Dench constroem é uma velha enfadada, sem viço, sem ânimo, sempre meio doente, que enfrenta as tediosas obrigações do trono como quem dá-se ao carrasco, para usar a expressão esplêndida de Chico Buarque.

Os diversos pratos do banquete são servidos primeiro a ela, e em seguida àquelas dezenas de nobres convidados por outras dezenas de serviçais, vestidos a caráter. A rainha, preguiçosa para todas as demais atividades, tinha no entanto apetite voraz, e comia depressa. A cada prato que ela deixava de lado, os serviçais tiravam da mesa os pratos correspondentes dos convidados – todos ainda quase cheios.

A câmara do diretor de fotografia Danny Cohen percorre a imensa mesa num travelling apressado como a rainha para devorar comida. Vai de Norte a Sul, depois de Sul a Norte – a cena é de uma beleza, de uma riqueza impressionante.

A rainha, que não reparava em praticamente nada, repara no sujeito que veio da Índia entregar a ela a tal moeda. Impressiona-se com a beleza do rapaz – e até faz uma exclamação sobre ela.

Abdul Karim desobedece a todos os conselhos dos homens do cerimonial do palácio: de repente, abaixa-se ao chão e beija o sapato da rainha.

Nos dias seguintes, Victoria manda chamar Abdul à sua presença. O rapaz conversa com ela – de maneira respeitosa, mas ao mesmo tempo à vontade, livre leve soltamente, de uma forma com que seguramente apenas John Brown havia conversado com ela após a morte do príncipe Albert.

A rainha passa a ter um afeto cada vez maior pelo serviçal vindo da Índia.

A rainha volta a sorrir, a se interessar pelas coisas. Mas a corte fica indignada

Uma das características mais fascinantes de Victoria & Abdul é a interpretação dessa atriz soberba que é Judi Dench.

Toda a expressão de seu rosto, os movimentos de suas mãos, seus braços, suas pernas – tudo demonstra como a chegada daquele belo e simpático indiano fez com que a rainha Victoria voltasse à vida. Somem a apatia, o enfado, o desânimo, a cara fechada. A rainha volta a sorrir, a ter alegria, a se interessar pelas coisas. A ponto de ela querer aprender um dos dialetos hindus que Abdul apresenta a ela.

Passa a chamar o rapaz de “the munshi”, o professor.

Toda a corte vai se espantar, se indignar, se revoltar. Uma das aristocratas que cercam a rainha comete sobre Abdul Karima a frase racista, ofensiva, nojenta: – “A brown John Brown!”. Um John Brown escuro.

O príncipe Albert Edward, o primogênito dos nove filhos da rainha e portanto o primeiro na linha sucessória, que a rainha chama de Bertie (Eddie Izzard, na foto abaixo), é o mais furioso de todos diante daquela amizade inesperada, surpreendente – mas não está só. Cada um à sua maneira, o administrador geral da corte, Sir Henry Ponsonby, o médico real, dr. Reid (paul Higgins), o primeiro-ministro da época, Lord Salisbury (Michael Gambon), as damas de companhia, todos manifestarão seu profundo desagrado diante daquela situação.

A profunda amizade que a rainha dedicou ao servo indiano durou 14 anos

O roteirista Lee Hall criou belos diálogos e colocou frases brilhantes na boca da rainha Victoria interpretada por Judi Dench.

Ela diz para Abdul: – “Todas as pessoas que eu amei morreram, e eu continuo, e continuo. Para quê?” Ao que ele responde, e assim conquista ainda mais o afeto da rainha: – “Para servir, Majetade. Estamos aqui para um propósito maior.”

Bertie, o príncipe herdeiro, ameaça declarar a mãe insana.

A rainha Victoria pronuncia o seguinte, através de Judi Dench, no que bem poderia ser uma aula para qualquer aspirante a ator:

– “Tenho 81 anos de idade. Tive nove filhos e 42 netos, e tenho quase um bilhão de súditos. Tenho reumatismo, o útero ruim, tenho obesidade mórbida e sou surda de um ouvido. Conheci 11 primeiro-ministros e assinei 2.347 peças de legislação. Estou no cargo há 62 anos e 234 dias. Sou, portanto, o monarca que mais tempo esteve no trono na História do mundo. Sou responsável por cinco palácios e uma equipe de mais de 3 mil pessoas. Sou intratável, cansativa, gulosa, gorda, mal humorada, às vezes egoísta e míope, tanto metaforicamente quanto literalmente. Sou talvez desagradavelmente ligada ao poder e não deveria ter quebrado o ovo do imperador da Rússia. Sou qualquer coisa, menos insana.”

Apesar de toda a ira do príncipe, do primeiro-ministro, do médico da corte, das damas de companhia, a profunda amizade que a rainha dedicou ao servo indiano durou 14 anos, até a morte dela, em 1901.

Um dos raros filmes a mostrar um monarca britânico como um ser desprezível

Uma característica interessante de Victoria & Abdul é a forma com que ele retrata Bertie, o príncipe Albert Edward, que assumiria o trono como Edward VII com a morte da mãe, em 1901, e seria rei do Reino Unido e dos Domínios Britânicos e imperador da Índia até 1910, quando morreu e foi sucedido pelo seu segundo filho, George V – por sua vez avô da Rainha Elizabeth II.

O príncipe é mostrado como um sujeito sem valor. Invejoso, figadal, tempestuoso, beligerante, vaidoso, ambicioso – uma porcaria, um pustema.

Não é nada comum que um dos soberanos ingleses seja mostrado dessa forma, nos muitos filmes que se fazem sobre a família real.

Não que não se mostrem defeitos. Não é isso. Defeitos são mostrados – mas, em geral, os reis e rainhas são mostrados como pessoas basicamente boas, decentes, bem intencionadas.

O único outro monarca recente que é retratado de forma tão dura quanto o príncipe Albert Edward antes de virar rei Edward VII é seu neto Edward Albert, que assumiu o trono como Edward VIII em 20 de janeiro de 1936 para abdicar dele em 11 de dezembro do mesmo ano. Na maravilhosa série The Crown, Edward VIII é mostrado abertamente como um sujeito vaidoso, fútil, vão. Pior ainda: como um canalha que chegou a namorar o nazismo.

Os monarcas britânicos das últimas décadas – e os filmes em que aparecem

Depois de ver este Victoria & Abdul, fiz, pela décima-nona vez (ou talvez vigésima-quarta…), uma pesquisinha sobre a linhagem dos monarcas britânicos nos séculos XIX e XX. Creio ter conseguido, pela primeira vez na vida, ter uma visão de conjunto da coisa, e compartilho com o eventual leitor:

 

Reinado Principais filmes
Victoria (filha do príncipe Edward, quarto filho de George III) 1837 – 1901 A Jovem Rainha Vitória (2009), Sua Majestade, Mrs. Brown (1997), Victoria & Abdul (2017)
Edward VII (primogênito de Victoria) 1901 – 1910 Victoria & Abdul (2017)
George V (segundo filho de Edward VII) 1910 – 1936
Edward VIII (primogênito de George V) 1936 W.E. – O Romance do Século (2011), The Crown (2016-2017)
George VI (segundo filho de George V) 1936 – 1952 O Discurso do Rei (2010), The Crown (2016-2017)
Elizabeth II (primogênita de George VI) 1952 – hoje A Rainha (2006), Diana (2013), The Crown (2016-2017)

Quando fez o filme, Jidi Dench tinha 81 anos – a idade da rainha ao morrer

Algumas informações e curiosidades, a maioria retirada da página de Trivia do IMDb sobre o filme:

* Um dos diversos primeiro-ministros do Reino Unido que serviram durante o reinado de Victoria foi Benjamin Disraeli, que ocupou o cargo duas vezes, a primeira em 1868 e a segunda entre 1874 e 1880. Disraeli foi também novelista e é o único judeu a ter ocupado o cargo; é tido como o político que estabeleceu as bases do modelo que o Partido Conservador passou a adotar a partir daí.

* O primeiro-ministro que aparece no filme, interpretado por Michael Gambom, é Robert Gascoyne-Cecil, o marquês de Salisbury. Ele ocupou o cargo de primeiro-ministro por três vezes, em 1885 e 1886, de 1886 a 1892, e de 1895 até 1901, o ano da morte da rainha Victoria.

* Como não poderia deixar de ser, há errinhos factuais no filme. Um exemplo: o conceito de obesidade mórbida só foi cunhado nos anos 1990. A rainha Victoria não poderia tê-lo usado naquela fala impressionante que transcrevi acima.

* Outro errinho naquela mesma fala: os ingleses não usavam a expressão “bilhão”, e sim mil milhões. Bilhão, que nós usamos tanto, especialmente depois do mensalão e do petrolão dos governos lulo-petistas, é usado pelos americanos, e só bem mais recentemente tem sido adotado também pelos ingleses.

* A ação do filme, como já foi dito, se passa entre 1887, quando a rainha Victoria estava com 68 anos, e 1901, ano de sua morte, aos 81 anos de idade. Quando as filmagens começaram, em setembro de 2016, Judi Dench tinha a idade da rainha Victoria no ano de sua morte.

* Parte do filme foi rodada na Osborne House, a residência dos reis britânicos na Ilha de Wight.

Victoria & Abdul teve duas indicações ao Oscar, nas categorias de Maquilagem e Figurinos. Não levou nenhum dos prêmios.

Judi Dench foi indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz em musical ou comédia. Victoria & Abdul definitivamente não é uma comédia – e menos ainda um musical.

É um belo filme, isso sim.

Anotação em abril de 2018

Victoria e Abdul: o Confidente da Rainha/Victoria & Abdul

De Stephen Frears, Inglaterra-EUA, 2017.

Com Judi Dench (rainha Victoria), Ali Fazal (Abdul Karim)

e Tim Pigott-Smith (Sir Henry Ponsonby), Eddie Izzard (Bertie, o herdeiro do trono), Adeel Akhtar (Mohammed), Michael Gambon (Lord Salisbury), Paul Higgins (Dr. Reid, o medico da rainha), Olivia Williams (Lady Churchill), Fenella Woolgar (Miss Phipps), Julian Wadham (Alick Yorke), Robin Soans (Arthur Bigge), Ruth McCabe (Mrs. Tuck), Simon Callow (Giacomo Puccini), Sukh Ojla (Mrs. Karim), Kemaal Deen-Ellis (Ahmed)

Roteiro Lee Hall

Baseado no livro de Shrabani Basu

Fotografia Danny Cohen

Música Thomas Newman

Montagem Medlanie Oliver

Produção BBC Films, Cross Street Films, Perfect World Pictures, Working Title Films.

Cor, 111 min (1h51)

***1/2

2 Comentários para “Victoria e Abdul: o Confidente da Rainha / Victoria & Abdul”

  1. Vi ontem na Netflix este filme e gostei. Está tudo muito bem – realizador, actores, cenários, etc..
    Eu não sou apreciador deste tipo de filmes, as peripécias da monarquia britânica não me interessam e dos filmes que o Sérgio cita só vi o Discurso do Rei que achei muito bom graças sobretudo ao trabalho de dois excelentes actores.
    Da crítica do jornal Público tirei isto:
    “Vitória e Abdul respeita rigorosamente todo o “caderno de encargos” do filme de época, ao mesmo tempo que o desmantela metodicamente por dentro, revelando com particular prazer os podres da Grã-Bretanha imperial, colonial, de finais do século XIX. Porque é disso que se trata: do racismo institucionalizado contra o “outro”, da condescendência mal disfarçada para com os “incivilizados”, da convicção inexplicável da superioridade moral e racial da civilização britânica sobre os selvagens que, contudo, existiam muito antes deles.”
    No fim de contas acho que o saldo é francamente positivo e adorei tornar a ver a grande Judi Dench.

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