Duas características chamam especialmente a atenção em Isztambul. A primeira delas é como o filme é multinacional – uma co-produção Hungria-Turquia-Holanda-Irlanda, cuja ação se passa na Hungria, na Romênia e na Turquia – na parte européia e na parte asiática deste último.
O diretor e roteirista, Ferenc Török, é húngaro, assim como a maioria dos personagens e vários atores, mas a atriz principal, Johanna ter Steege, é holandesa.
A segunda característica é a fantástica incapacidade de os personagens centrais se comunicarem. O marido, János (Andor Lukáts), a mulher, Katalin (o papel de Johanna ter Steege), a filha, Zsófi (Réka Tenki), e o filho, Zoli (Norbert Varga) têm imensa dificuldade de falar um com o outro. Não se expõem, não se expressam uns para os outros; têm imensa dificuldade de falar uns com os outros.
Não sei se outras pessoas terão essa sensação, mas, para mim, o filme de Ferenc Török é sobre dificuldade de comunicação. Faz lembrar A Noite, A Aventura e O Eclipse, a trilogia de Michelangelo Antonioni sobre a incomunicabilidade.
O marido diz que está apaixonado por outra, faz a mala e se manda
O filme abre como duas sequências que nos mostram basicamente quem são János e Katalin. Ela é dona de casa: a vemos fazendo compras, no mercado, no açougue. Ele é professor universitário: o vemos dando uma aula.
Na sequência seguinte, os dois estão na sala de seu apartamento confortável, de classe média. Ele está botando um punhado de roupas dentro de uma mala, e contando para ela, com bem poucas palavras, que está apaixonado, está decidido; se ela precisar de alguma coisa, avise.
E se manda.
Aqui faço uma rápida divagação para dizer obviedades: nenhuma pessoa deveria viver apenas para cuidar da casa e dos filhos. É um crime isso que muitos homens levam suas mulheres a fazer, e é um crime as mulheres permitirem isso – serem apenas e tão somente donas de casa.
Todas as pessoas deveriam ter um trabalho, uma atividade, ou no mínimo hobbies – nem que seja colecionar selos, ou coisa parecida.
Porque se a pessoa se dedica apenas a cuidar da casa e dos filhos, é imenso o perigo de ela perder o sentido da vida quando os filhos crescem e nos dizem adeus.
A mulher abandonada pelo marido está à beira da catatonia
A holandesa Johanna ter Steege demonstra ser atriz de grande talento.
O espectador vê na cara dela como de repente o mundo de Katalin caiu, despencou, desapareceu, como faltou chão sob seus pés.
Zoli, o filho, mostra-se enfurecido com o pai – mas não procura estar próximo da mãe, oferecer o ombro, conversar, comunicar. Nada. É cercado por uma couraça, exatamente como o pai que critica.
Zsófi, a filha, está grávida, já perto de dar à luz; liga para a mãe, mas a mãe não atende, e ela não vai atrás, não vai visita-la, não procura estar próxima.
Katalin está à beira da catatonia.
A sequência é brilhante: Katalin limpa cuidadosamente as folhas de uma planta na sala do apartamento. Uma a uma, cuidadosamente. Depois pega uma tesoura, e corta ao meio as folhas. Uma a uma. Lentamente.
Depois se levanta, e sai de casa, vai para a rua, sem expressão alguma no rosto. Não está vendo nada – está à beira da catatonia. Está descalça, e segura a grande tesoura. Passa um bonde, ela entra, senta-se, tesoura na mão.
O motorneiro avisa que é a estação final, todos devem descer. Katalin não está ali, não ouve. Ele chega perto dela, vê a faca. Leva-a para um pequeno escritório da estação final, dá um telefonema – uma ambulância vem recolher Katalin e a leva para um manicômio.
Estamos aí com talvez uns dez minutos de filme. A partir daí, haverá muitos momentos de road movie, e, de Budapeste, a ação levará o espectador para Istambul, a cidade que se separa de outro continente por um estreito de águas tremendamente azuis.
Um bando de pessoas que não se comunicam – e por isso se trumbicam, é claro
Isztambul – o título do filme é assim, com s e z; deve ser como os húngaros grafam o nome – tem um ritmo propositadamente lento, e nem poderia ser diferente em um drama familiar que mostra uma mulher que perdeu o centro de gravidade, o sentido da vida.
O impressionante, na minha opinião, é como os personagens criados pelo diretor e roteirista Ferenc Török falam pouco. As pessoas daquela família destroçada não conversam, não abrem a alma, não comunicam. Falam frases curtas, apenas as indispensáveis. Não mostram uns aos outros suas emoções, suas sensações.
O casal e seus dois filhos, em especial, são assim. Mas também a garota Juli (Eszter Bánfalvy), estudante universitária, de uns 20 anos, por quem János, o professor, se apaixona, é de poucas palavras.
Um bando de pessoas que não se comunicam, não se abrem. E, por isso, se trumbicam, é claro.
Um belo, sensível filme vindo de um país de filmografia pouco conhecida entre nós
O diretor Ferenc Török nasceu em 1971, em Budapeste. Sua filmografia como diretor tem 18 títulos – a maioria séries e filmes para a TV. Numa pesquisa não muito atenta, não consegui maiores informações sobre ele.
Johanna ter Steege nasceu em 1961 em uma cidade do interior da Holanda. Tem mais de 40 títulos na filmografia, iniciada com o thriller O Silêncio do Lago, de 1988, que seria depois refilmado em Hollywood. Em 1991, teve um papel em Encontro com Vênus/Meeting Venus, daquele que é o mais conhecido realizador húngaro, István Szabó. Trabalhou também em Minha Amada Imortal/Immortal Beloved, uma cinebiografia de Beethoven; não vi nenhum de seus filmes feitos na Holanda
Isztambul é um belo, sensível filme – e aqui é preciso agradecer ao canal Max, o 79 na minha Net, por estar exibindo filmes de países cujas cinematografias não costumam normalmente ser conhecidas no circuito comercial brasileiro. É uma dádiva, isso.
Anotação em fevereiro de 2013
Isztambul
De Ferenc Török, Hungria-Turquia-Holanda-Irlanda, 2011
Com Johanna ter Steege (Katalin Munk), Andor Lukáts (János Munk), Norbert Varga (Zoli Munk, o filho), Réka Tenki (Zsófi Munk, a filha), Yavuz Bingol (Halil), Eszter Bánfalvy (Juli, a estudante)
Argumento e roteiro Ferenc Török
Fotografia Dániel Garas
Música Lance Hogan
Montagem Annelotte Medema
Produção Új Budapest Filmstudió, Phanta Vision, Ripple World Pictures, Kuzey Film.
Cor, 92 min
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