Cairo 678 é corajoso, forte. Discute um tema importantíssimo: as agressões sexuais a mulheres no Egito, e a imensa dificuldade de enfrentá-las, em meio àquela sociedade tradicionalista e machista. E, além disso, é um belíssimo filme.
É muito impressionante o fato de que um filme dessa qualidade seja obra de um diretor estreante. Até 2010, Mohamed Diab tinha no seu currículo apenas três roteiros, de filmes lançados entre 2007 e 2009.
O roteiro de Cairo 678 é estupendo. Coisa de quem tem talento, e estudou muito a linguagem cinematográfica.
Toda a realização do filme é soberba. Não parece, de forma alguma – repito -, obra de um iniciante.
É verdade que – apesar de conhecermos pouquíssimo dela no Brasil – a cinematografia egípcia tem história, tradição. No “Ensaio de Cronologia Mundial” de sua gigantesca obra História do Cinema Mundial, publicada pela primeira vez no Brasil em 1963, pela Livraria Martins Editora, o historiador francês Georges Sadoul citava obras do cinema egípcio entre as mais importantes do mundo a partir de 1918.
Em capítulo sobre “A arte do filme na Ásia e na África” na segunda metade do século XX, Sadoul cita diversos realizadores egípcios e dezenas de obras importantes. E diz: “Desde 1950, o cinema egípcio tendia a sair dos salões e dos cabarés onde muitas vezes se encerrava. Através de um contato com a realidade do país, filmes servidos por excelentes atores, cineastas e técnicos podiam rapidamente afirmar-se por um estilo original e novo. Tudo leva a pensar que os estúdios do Cairo, porta do Oriente, voltar-se-ão cada vez mais para as realidades árabes.”
Cairo 486 ganhou nove prêmios e teve outras quatro indicações, em festivais de cidades de quatro continentes: Chicago, Dubai, Roterdã e Sydney.
Um roteiro que deixaria os fãs de Tarantino admirados
Mohamed Diab inspirou-se em histórias reais para criar a trama de Cairo 486. Com base em incidentes que aconteceram de fato, criou três personagens centrais, três mulheres que sofreram agressões sexuais no Cairo, e que pertecem a classes sociais bem diferentes. O assédio não faz distinção de classe.
Os destinos dessas três mulheres se unem de uma maneira fascinante, num roteiro que deixaria os fãs de Quentin Tarantino admirados.
A primeira que vemos é Fayza, jovem e bela mulher de classe média média para baixa; é casada com Adel (Bassem Samra), que se divide entre dois empregos para poder dar o conforto básico à família e escola particular para os dois filhos. Fayza (interpretada por Boshra, na foto acima, que é também produtora executiva do filme) trabalha num cartório muito distante de sua casa na periferia da Grande Cairo, e a locomoção entre casa e trabalho, em ônibus abarrotados, é um martírio diário, porque, além do calor, do sufoco, do aperto, há sempre, entre os passageiros, homens que passam a mão ou esfregam o pau nas mulheres – e Fayza, repito, é jovem e bela.
A precariedade do transporte público na metrópole (a capital egípcia tem cerca de 9 milhões de habitantes, e a região metropolitana, mais de 19 milhões) faz com que Fayza chegue constantemente atrasada ao trabalho – o que leva a descontos em seu salário. E o assédio constante nos ônibus a leva a, sempre que pode, tomar táxi – o que ajuda a consumir o salário apertado.
Talvez pela tensão constante, pelo stress dos assédios, Fayza passa a recusar contato sexual com o marido.
Quando ela vê na TV uma entrevista com uma jovem senhora que dá aulas para as mulheres se protegerem de assédio sexual, anota o endereço, vai atrás do curso.
Algum tempo depois, reage: quando, no ônibus lotado, um homem passa a mão nela, Fayza espeta a mão agressora com um alfinete com o qual prende o véu sobre os cabelos.
Ao sair do ônibus logo após a agressão, numa via agitada, de trânsito intenso, se vê diante de um carro dirigido por um jovem de barba. Veremos depois que esse jovem é Sherif (Ahmed El Feshawy), marido de Seba (Nelly Karim), exatamente a jovem senhora que atende a grupos de mulheres que querem se prevenir contra os assédios.
Vítima de brutal ataque, Seba, mulher rica, passa a dar cursos para outras mulheres
E um letreiro avisa que estamos voltando um ano atrás no tempo. Vamos ser apresentados à história de Seba.
É uma mulher rica, de família rica, e está casada com Sherif, um jovem médico. Os dois são alegres, se dão bem, falam-se sempre pelo celular quando ele está no trabalho, no hospital.
Sherif gosta de futebol, leva Seba a um jogo da seleção nacional. Após o jogo, vencido pela seleção egípcia, Seba se vê separada do marido na saída tumultuada do estádio; Sherif tenta se reaproximar dela, mas Seba vai sendo carregada por um grupo no meio da multidão gigantesca – e ali, na rua, no meio de milhares e milhares de torcedores que comemoram a vitória, ela é vítima de ataque sexual de vários homens.
Embora jovem, embora médico, Sherif reage ao ataque à esposa como legítimo homem das cavernas. Afasta-se dela, fica o mais tempo possível longe de casa – sente nojo da mulher que foi vítima de ataque brutal, como se fosse ela a culpada.
Diante desse absurdo, Seba, então, se afasta completamente do marido que teve a atitude tacanha, absurda, inconcebível. Tem um aborto natural do bebê de cuja existência sequer havia comunicado a Sherif, e aborta todo sentimento que tinha pelo marido.
E resolve, então, passar a dar curso para as mulheres se defenderem dos predadores sexuais.
Na entrevista na TV – que a jovem Fayza verá em sua casa –, Seba diz: – “Não ensino as mulheres a serem violentas ou a baterem no agressor. Trabalho com a psicologia dela.”.
Para um grupo de mulheres, Fayza inclusive, ela diz: – “Você não precisa andar armada para se defender. Muitas fazem isso e não conseguem se defender. Eles atacam as mulheres fracas, que não falam, que ficam em silêncio. Encare o agressor de frente.”
Enfrentar sociedade tacanha, retrógada, machista não é coisa fácil
Fayza é quase pobre, Seba é uma mulher rica. Nelly (Nahed El Sebaï), a terceira personagem criada por Mohamed Diab com base em incidentes e histórias reais, é classe média quase média alta. Trabalha como atendente em um call center – onde muitas vezes os clientes homens passam nela cantadas grosseiras. Está para se casar com Omar (Omar El Saeed), bom sujeito, que vem de família um pouco mais rica que a dela própria. Para fazer a vontade dos pais, ter um salário e poder se casar, Omar trabalha num banco, embora na verdade o que queira mesmo na vida é ser humorista – e até se apresenta em teatros de stand up comedy. E incentiva Nelly a fazer o mesmo. Quando vemos Nelly pela primeira vez, ela está fazendo uma apresentação – a primeira de uma mulher em stand up comedy do Egito.
Nelly será vítima também de uma agressão – em plena luz do dia, diante da casa de sua mãe. Ela está saindo do carro de Omar e atravessando a rua em direção ao prédio da mãe quando um sujeito que passa numa picape a agarra e a carrega por umas centenas de metros. O agressor acaba sendo apanhado por transeuntes, pela própria Nelly, o noivo e a mãe.
Levam o agressor à polícia. E Nelly quer processá-lo por assédio sexual, algo até então impensável no país.
A família de Omar, constrangida, quer forçar Nelly a desistir do processo, antes que haja audiência em tribunal e o caso vire manchete nos meios de comunicação.
O próprio Omar não gostaria que ela desistisse – mas sabe que a família não aprovará o casamento caso Nelly mantenha o processo.
Enfrentar sociedade tacanha, retrógada, machista não é coisa fácil.
O cinema imita a vida – e às vezes até pode melhorá-la um pouco
O que relatei até aqui é apresentado na primeira meia hora de filme.
As três mulheres – Fayza, Seba, Nelly – vão ter seus destinos ligados. Em parte por causa das lições de autoproteção de Seba, em parte pela raiva acumulada depois de tantas idas e vindas e agressões nos ônibus abarrotados, Fayza atacará um, depois outro, depois outro predador sexual a golpes de canivete.
A história sairá na imprensa. Um competente investigador da polícia irá atrás da pessoa que usou canivete em ônibus contra predadores.
Na vida real, a primeira condenação pela Justiça egípcia por violência sexual ocorreu em 2008 – seguramente foi um dos casos que inspiraram o roteiro de Mohamad Diab.
O filme se encerra com um letreiro com esta informação: “O agressor foi condenado a três anos de cadeia. Um ano depois, o assédio sexual passou a ser considerado crime no Egito. As queixas ainda são raras”.
Uma ótima notícia: ainda que muito tarde, a partir de 2009 assédio sexual passou a ser crime naquele país. Uma notícia triste: as queixas era eram raras, quando o filme foi feito, em 2010.
Enfrentar sociedade tacanha, retrógada, machista de fato não é coisa fácil. Leva tempo.
É possível que a simples existência do filme tenha ajudado a fazer com que mais mulheres ousem levar agressores aos tribunais.
O cinema imita a vida – e às vezes até pode melhorá-la um pouco.
Anotação em janeiro de 2013
Cairo 678
De Mohamed Diab, Egito, 2010
Com Boshra (Fayza), Nelly Karim (Seba), Nahed El Sebaï (Nelly),
e Maged El Kedwany (Essam), Bassem Samra (Adel), Ahmed El Feshawy (Sherif, o marido de Nelly), Omar El Saeed (Omar), Yara Goubran (Amina), Marwa Mahran (Magda, a mulher do policial)
Roteiro Mohamed Diab
Fotografia Ahmed Gabr
Música Hani Adel
Montagem Amr Salah El din
Produção New Century Productions. DVD Imovision.
Cor, 100 min
***1/2
Que vacilo!Vi este filme em 26 março passado.
Opinei, deixei guardado e, esqueci.
Gostei muito deste filme.
As sociedades Islâmicas são de um machismo extremo. De que adianta a fôrça a luta de algumas, quando a maioria vive conformada ??
Chega a ser nojento o modo como essas tres mulheres são assediadas , molestadas.
E, como é dito ao final, mesmo depois de o assédio ser considerado crime, ainda são poucas as denúncias.
Enquanto houver essa submissão . . .
Nossa, vou ver se acho este filme! obrigada.