Bellamy, lançado em 2009, foi a última obra da vastíssima filmografia de Claude Chabrol (1930-2010), um dos mais cultuados, incensados diretores do cinema francês, companheiro de François Truffaut e Jean-Luc Godard primeiro na crítica e em seguida, a partir de 1958, na nouvelle vague.
Em seus mais de 70 filmes, teve várias fases e passou por diversos gêneros, mas volta e meia retornava aos dramas policiais, que acabaram sendo uma de suas marcas registradas: tornou-se conhecido como “o Hitchcock francês”.
Há na praça pelo menos, pelo menos uns 20 detetives famosos criados por renomados escritores. Hitchcock jamais criou um novo detetive para acrescentar à galeria dos já existentes. Mas Chabrol é Chabrol, e então, neste que viria a ser seu filme derrado, criou um detetive, inspetor, comissário de polícia, Paul Bellamy. Se Georges Simenon inventou o comissário Maigret – deve ter pensado o realizador – por que eu não posso fazer o meu próprio comissário?
A referência a Simenon não é de graça. Chabrol adaptou novelas de Simenon, como é o caso Os Fantasmas do Chapeleiro, de 1982, e de Betty – Uma Mulher sem Passado, de 1992. E, ao final dos créditos iniciais de Bellamy, há um letreiro que diz: “Aos dois Georges”.
Um dos Georges a quem o filme é dedicado já havia sido citado bem no início de Bellamy: as primeiras tomadas, enquanto rolam os créditos iniciais, são de um cemitério à beira-mar. O primeiro túmulo focalizado pela câmara é de Georges Brassens (1921-1981), um dos maiores, se não o maior de todos e o mais adorado dos compositores e cantores franceses.
Brassens será citado diversas vezes, ao longo da narrativa. Pode-se dizer que é um dos personagens da trama.
Mas não há qualquer referência ao outro Georges a quem o filme é dedicado – e seguramente Chabrol não estava falando de Georges Moustaki. É claro – embora, repito, não esteja explicitado hora alguma – que é Georges Simenon (1903-1989).
Simenon, como Agatha Christie, era prolífico. Até mais prolífico que a velhinha doida inglesa: sua obra abrange 350 títulos, 103 tendo o comissário Maigret como protagonista. E, nas novelas com Maigret, fala-se bastante do dia-a-dia do comissário, e não apenas de seu trabalho investigando crimes. Descreve-se o que ele bebe, as comidas de que gosta, os lugares que frequenta, sua relação com a esposa.
O comissário Bellamy parece ter sido criado à imagem e semelhança de Maigret
Acho que não seria errado dizer que Chabrol e a co-roteirista e autora Odile Barski criaram o comissário Bellamy bastante à imagem e semelhança do comissário Maigret.
É difícil imaginar Maigret interpretado por outro ator que não Jean Gabin – Gabin foi Maigret em apenas dois filmes, mas são interpretações marcantes, e o tipo físico ajudava muito. Gabin, corpo grande, postura de gigante, cabelos brancos, com sobretudo e cachimbo no canto da boca, foi o Maigret definitivo.
Bellamy vem na pele de Gérard Depardieu, imenso nos seus 60 anos e um físico de Obélix. Também não seria errado dizer, acho, que o ator francês que hoje faz lembrar a imponência física de Gabin nos anos nos anos 50, 60, é Depardieu.
Boa parte dos 110 minutos de duração do filme mostra o dia-a-dia de Bellamy, comissário de polícia de Paris, e de grande reputação, assim como Maigret. Mas Bellamy está de férias, durante toda a narrativa; passa as férias na casa que sua mulher Françoise (Marie Bunel, em excelente interpretação) herdou da família, em Nimes, na região de Languedoc-Roussillon, no Sul da França, próximo à Côte d’Azur.
Dão-se muito bem, o grandalhão comissário Bellamy e sua atraente mulher Françoise. São carinhosos, grudentos – Bellamy está sempre agarrando a mulher pela vasta casa.
Veremos, em longa sequência, um jantar do casal com o dentista de Françoise, Alain (Yves Verhoeven), e, bem mais adiante, um jantar do casal na casa de Alain e seu companheiro Bernard (Bruno Abraham-Kremer).
O casal receberá a visita de Jacques (Clovis Cornillac), meio-irmão mais novo de Bellamy, um sujeito meio perdido na vida, desajustado, sem emprego, sem profissão, que bebe bem mais do que deveria. Boa parte da ação mostrará os problemas entre os dois irmãos que não se gostam.
A trama policial não é o que mais importa na narrativa
A trama policial aparece bem no início da narrativa: pertinho de um cemitério próximo a Nimes, onde está enterrado Georges Brassens, há um acidente de carro, e um homem morre carbonizado. A princípio, o morto é identificado como Emile Leullet (Jacques Gamblin), um homem que havia trabalhado durante anos em uma companhia de seguros, e era o dono do carro. Leullet tinha um seguro de vida de alto valor, que iria para sua mulher. Mas a polícia de Nimes, sob o comando do comissário Leblanc, acaba descobrindo, por análise da arcada dentária, que o morto não era Leullet. O qual passa a ser procurado por fraude no seguro – e suspeito da morte do desconhecido carbonizado no carro.
Um desconhecido, que se identificará como Noël Gentil, fica rondando a casa em que Bellamy e Françoise passam as férias. Mas não se anima a tocar a campainha, tentar estabelecer contato.
Bellamy – que adora trabalhar, mesmo estando de férias, e que considera seu colega local, o comissário Leblanc, um imbecil – fará contato com esse tal Gentil. Gentil conta para Bellamy uma história estranha: dividido entre duas mulheres, ele estaria tendo problemas com uma companhia seguradora; e talvez ele tivesse se envolvido de alguma forma na morte de um homem.
Bellamy vai tentar descobrir a verdade do que conta Gentil; vai entrevistar diversas pessoas, num trabalho paralelo ao da polícia local, e montar as peças do quebra-cabeças.
Mas o interessante, a marca do filme, é que a trama policial não chega a ser o mais importante. A trama policial vai sendo apresentada entre uma e outra sequência ou série de sequências do dia a dia do comissário, sua mulher, seu irmão.
Tudo muito bem realizado. Mas ao final fica a questão: e daí?
É tudo muito bem realizado. Chabrol é inegavelmente um grande diretor de atores, e todos o elenco está ótimo. (Uma bela presença é a da jovem Vahina Giocante, na foto, lindíssima, ainda mais linda do que em Lila Diz…, grande filme feito em 2004 por Ziad Doueiri.)
Tudo impecavelmente bem realizado.
Ao final do filme, no entanto – a trama policial não propriamente bem resolvida, concluída, acabada –, o espectador pode muito bem se perguntar, como Mary e eu nos perguntamos: tá bom, mas para que mesmo foi feito este filme? Para dizer exatamente o quê?
Aqui e ali, Chabrol lança alguns dos seus eternos ataques à burguesia, ao estado geral da civilização, do planeta – e os fanáticos por Chabrol seguramente terão imenso prazer em ver o filme.
Mas os demais seres humanos poderão perfeitamente ficar com aquela pergunta no ar: tá bom, mas e daí?
Anotação em março de 2012
Bellamy
De Claude Chabrol, França, 2009
Gérard Depardieu (Paul Bellamy), Marie Bunel (Françoise Bellamy), Clovis Cornillac (Jacques Lebas), Jacques Gamblin (Noël Gentil / Emile Leullet / Denis Leprince), Vahina Giocante (Nadia Sancho), Marie Matheron (Madame Leullet), Adrienne Pauly (Claire Bonheur), Yves Verhoeven (Alain), Bruno Abraham-Kremer (Bernard), Rodolphe Pauly (o advogado)
Argumento e roteiro Odile Barski e Claude Chabrol
Fotografia Eduardo Serra
Música Matthieu Chabrol
Produção Alicéléo, France 2 Cinéma, DD Productions, Région Languedoc-Roussillon
Cor, 110 min
**1/2
Título em inglês: Inspector Bellamy
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