Três décadas depois de ter sido feito, Os Deuses Devem Estar Loucos continua com um gosto forte de coisa nova, fresca, única, inovadora, maluca, irreverente. É uma comédia ensandecidamente, tremendamente, absurdamente hilariante. Há uma piada em cima da outra, sem parar, ao longo de 108 minutos, piadas de todos os tipos, verbais, visuais, grosseiras, velhas, previsíveis, novas, imprevisíveis, politicamente incorretas, inteligentes, gostosas, engraçadíssimas.
É, literalmente, como Mary e eu comprovamos, uma comédia de chorar de tanto rir.
O filme é de 1981. Sempre ouvi falar dele, o filme da garrafa de Coca-Coca que cai do céu junto de uma tribo isolada na África, mas, por algum motivo, ou conjunto de motivos, nunca tinha visto, até agora, quando o filme entrou na (ou voltou à) programação do Telecine Cult.
Fiquei pensando que Os Deuses Devem Estar Loucos é assim uma explosão única de genialidade – um pouco como, cada um à sua maneira, Todas as Mulheres do Mundo, O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, Apenas uma Vez/Once.
Uma explosão única de genialidade.
Um sujeito, Jamie Uys, um sul-africano, criou o argumento e o roteiro, dirigiu, montou e foi um dos responsáveis pela fotografia do filme. Ah, sim, e também interpretou um dos papéis.
Considerações sobre os choques culturais, feitas da maneira mais escrachada possível
Imagino que esse Jamie Uys fosse um fã absoluto de Mel Brooks. Tem bastante do humor escrachado, politicamente incorreto, do ritmo incansável e da falta de lógica, do namoro com o absoluto nonsense dos filmes de Brooks nos anos 70 – Banzé no Oeste, O Jovem Frankenstein, A Última Loucura de Mel Brooks, Alta Ansiedade.
Surgiu praticamente na mesma época de Apertem os Cintos… O Piloto Sumiu, que é de 1980, e todas as sátiras malucas, escrachadas, que se seguiram, da trinca Jim Abrahams, David Zucker e Jerry Zucker. Não digo que um tenha influenciado o outro – mas que as duas coisas, o filme ímpar sul-africano e a série de sátiras beirando o ridículo de Abrahams e os Zucker vieram ao mundo ao mesmo tempo.
De uma certa maneira, Os Deuses Devem Estar Loucos prenuncia o seriíssimo Koyaanisqatsi – Uma Vida Fora de Equilíbrio (1982), e seu sucessor, Powaqqatsi – A Vida em Transformação (1988), aqueles documentários de imagens belíssimas, música extraordinária, dirigidos por Godfrey Reggio, filosofando sobre as contradições entre as diversas civilizações humanas, os choques culturais.
As seriíssimas, doutas pensatas de Godfrey Reggio se parecem bastante com algumas considerações feitas com o maior escracho do mundo por Jamie Uys.
Um narrador explica os fatos com uma voz muito empostada, como se fosse sério estudo antropológico
É espertíssima a sacada do narrador que fala com voz muito séria, como se estivesse apresentando um cuidadoso estudo antropológico sobre uma área pouco conhecida do Sul da África.
E o texto que o narrador Paddy O’Byrne lê, como se fosse coisa mais séria do mundo, é uma absoluta delícia.
Tomadas das savanas africanas, com aqueles grandes, portentosos animais correndo livres – girafas, elefantes, rinocerontes, hipopótamos, o escambau. Imagens belas, como as que John Huston havia conseguido em Uma Aventura na África/The African Queen, como Henry King havia mostrado em As Neves do Kilimanjaro, como Henry Hathaway havia exibido em Hatari! Tudo o que todo ocidental aventureiro sonhava em conhecer um dia num safári à África, antes que as companhias de turismo oferecessem pacotes baratinhos pagáveis em muitos meses, ou que o National Geographic e mais duas dezenas de canais a cabo popularizassem imagens assim diariamente na TV de todo mundo.
E o locutor, com a voz muito séria, o tom muito severo, começa a nos explicar as coisas:
– “Parece o paraíso, mas na realidade é o deserto mais traiçoeiro do mundo… o Kalahari. Depois da rápida estação de chuvas, há muitos poços d’água, e mesmo um rio. Mas, depois de umas poucas semanas, a água desaparece na areia profunda do Kalahari, os poços d’água secam, e os rios param de correr.”
E depois:
– “Os humanos evitam as profundezas do Kalahari como se fosse a praga, porque o homem precisa de água para viver. E então as paisagens lindas são destituídas de pessoas, com a exceção… do pequeno povo do Kalahari. Belos, pequenos e graciosos… Os Bosquímanos. Onde qualquer outra pessoa morreria de sede em poucos dias, eles vivem de maneira muito contente nesse deserto que não parece um deserto. Eles sabem onde cavar para encontrar raízes e tubérculos. E é claro que eles sabem o que fazer para encontrar água…”
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Esse esquema de um narrador explicar com voz muita séria, como se fosse uma aula, os hábitos de um grupo humano, seria retomado quase 20 anos mais tarde, em 1999, em uma deliciosa comedinha independente americana, O Amor Segundo um Extraterrestre/The Mating Habits of the Earthbound Human, feita – como este filme aqui– com pouco dinheiro e muito talento.
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Vemos então uma tribo de pessoinhas pequenas, miúdas, gente que nunca teve contato com qualquer outro tipo de civilização. E o narrador prossegue:
– “Eles devem ser as pessoas mais contentes do mundo. Não conhecem crime, castigo, violência, leis, polícia, juízes, legisladores ou patrões. Eles acreditam que os deuses só colocaram coisas boas e úteis na Terra para que eles as usassem.”
Era 1981, e havia uma guerra fria no planeta entre dois grupos de países que defendiam diferentes tipos de sistema econômico. Depois de mais de 6 mil anos de guerras pela propriedade de terras, escravos, súditos, jazidas, o narrador mostra o ideal de todo criador de utopias:
– “A característica principal que faz os Bosquímanos serem diferentes de todas as outras raças na Terra é que eles não têm qualquer noção de propriedade. Onde eles vivem, não há, na verdade, qualquer coisa que você possa possuir: só árvores e grama e animais. Na verdade, esses Bosquímanos nunca tinham visto uma pedra ou uma rocha em suas vidas.”
Hum… Aqui há uma óbvia piadinha com o monolito 2001 – Uma Odisséia no Espaço, do mestre Kubrick. E o narrador vai em frente:
– “As coisas mais duras que eles conheciam eram a madeira e o osso. Eles vivem num mundo gentil, onde nada é duro como pedra, aço ou concreto!
A garrafa de Coca-Cola traz a noção da posse – e aí surgem as rivalidades, as brigas
Aí, como seria feito depois nos seriíssimos Koyaanisqatsi e Powaqqatsi, o filme apresenta o contraste entre a vida primitiva e feliz do povo do deserto de Kalahari com a vida dos ditos civilizados – e vemos belas imagens do inferno de uma metrópole, provavelmente Johannesburgo, embora não haja identificação. O trânsito horroroso, as hordas de pessoas se comprimindo nas ruas, a rotina do trabalho no escritório…
Criaturas primitivas e criaturas civilizadas devidamente apresentadas ao espectador, um piloto de um aviãozinho que sobrevoa o deserto de Kalahari joga para fora uma garrafa de Coca-Cola.
A princípio, o presente que os deuses lançaram do céu agrada bastante ao pequeno povo. Mas logo as coisas mudam.
A garrafa de Coca-Cola tem sobre os felizes homenzinhos do deserto um efeito tão devastador para eles quanto a descoberta do monolito negro pelos gorilas em 2001. Todos passam a disputar a garrafa de Coca-Cola – surge a noção da posse, e com ela vêm as rivalidades, as brigas.
E então Xixo (interpretado por N!xau, nas duas fotos acima) resolve ir até o fim do mundo, jogar fora o presente dos deuses que trouxe inquietação ao seu povo até então feliz.
Na sua longa jornada até o fim do mundo, Xixo vai cruzar com um grupo de brancos – um reverendo, um cientista e seu assistente, um guia turístico, uma professora recém-chegada da cidade grande em busca de uma vida mais próxima da natureza – e com um grupo de guerrilheiros em luta contra tropas do governo.
É tudo hilariante.
O filme virou cult, foi sucesso de bilheteria no mundo todo
Foi um sucesso extraordinário no mundo inteiro. Primeiro virou cult, em circuitos de filmes de arte, independentes, acostumados a exibir obras de países distantes da Europa e dos Estados Unidos. Os grandes distribuidores americanos, lerdos como tudo que é grande, só descobriram o filme e o puseram no circuito comercial para valer em 1984 – e se manteve como o filme estrangeiro de maior bilheteria nos EUA durante décadas.
Em um cinema de Cupertino, na Califórnia, o filme ficou em exibição por 532 dias consecutivos, até que a cópia não dava mais para ser usada nos projetores. Segundo o IMDb, esses 532 dias consecutivos permanecem um recorde até hoje no Norte da Califórnia.
Em Trinidad e Tobago, depois de protestos de grupos que diziam que o filme era racista, foi proibida sua exibição.
Era a época do embargo econômico à África do Sul, e então o filme foi lançado como sendo de Botsuana
Três décadas – de 1981 para 2012 – não são absolutamente nada, em termos de História. São muito menos do que o pó do cocô do cavalo do bandido – mas é impressionante como algumas coisas mudam muito rapidamente, em apenas 30 anos.
Os Deuses Devem Estar Loucos é um filme feito na África do Sul, por um diretor da África do Sul, com dinheiro da África do Sul. Mas, em 1981, havia um embargo internacional contra os produtos sul-africanos, apoiado pela ONU, como forma de combater o nojento, absurdo, já então absolutamente anacrônico regime racista do governo, o apartheid. Por isso, o filme foi apresentado ao mundo como sendo uma produção da Botsuana.
(Quando Paul Simon foi à África do Sul misturar sua música com a de compositores e instrumentistas sul-africanos, em meados dos anos 80, houve muita gente boa que o criticasse por estar furando o embargo econômico. Tem loucura pra tudo.)
O apartheid durou até 1994. Os deuses de Xixo e seu povo podiam estar loucos ao lançar sobre suas cabeças uma garrafa vazia de Coca-Cola, mas os homens, esses certamente, seguramente, são mesmo loucos.
Mas também é louco – e aí de uma loucura boa – lembrar que, de 1994 para cá, as chagas do apartheid vêm desaparecendo da África do Sul, e, desde aquele ano, o país é governado por membros da sua maioria étnica.
Um filme que é, de fato, um tanto desastrado, mas desarma completamente o espectador
Achar que Os Deuses Devem Estar Loucos é racista, supremacista, colonialista, é coisa de jerico, de quem fica procurando chifre em cabeça de cavalo. Não há racismo algum – há graça, humor, escrachado, que se dana para qualquer tipo de politicamente correto.
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4 para o filme, que chamou de “comédia altamente original, excêntrica, sobre choques culturais”. O autor do guia de cinema mais vendido do mundo acerta a mão ao dizer que o filme em si às vezes é desajeitado, trapalhão, como o protagonista, o cientista – que, a cada vez que chega perto da mocinha, fica mais desastrado do que se Jerry Lewis, Didi, Dedé e Mussum juntassem todas as suas forças. “O filme em si é desastrado às vezes, mas nos desarma completamente. Não recebeu um grande lançamento nos EUA até 1984, mas então se transformou no maior sucesso de bilheteria de um filme estrangeiro na história!”
Roger Ebert dá, igualmente, 3 estrelas em 4, e comete um pequeno errinho, mas resume em um parágrafo o que tentei dizer em mais de 40:
“Eis aqui um filme que começa como uma garrafa de Coca caindo dos céus e termina com um jipe no alto de uma árvore. The Gods Must be Crazy é um filme sul-africano que chegou à Europa com pouca fanfarra em 1982, quebrou recordes de bilheteria no Japão, na América do Sul e em vários países europeus, e até se transformou num sucesso cult na América do Norte, onde nunca houve muita demanda por comédias da África do Sul.” (O texto certamente foi escrito quando o apartheid ainda estava em vigor.)
Ebert prossegue a partir daí, e faz uma resenha longa – ele é homem de fazer sempre resenhas longas –, para concluir com uma frase perfeita: “Este filme é um agradável pequeno tesouro”.
O pequenino erro de Ebert é que o jipe não sobe na árvore no final do filme, e sim no meio. Quando o Landrover em que o mocinho Steyn, o cientista (interpretado por Marius Weyers), tentava levar a mocinha, a professora Kate (Sandra Prinsloo, na foto acima), para a aldeia cuidada pelo reverendo (interpretado pelo autor-diretor-montador-fotógrafo Jamie Uys), fica pendurado na árvore, balançando, dá-se o seguinte diálogo:
Steyn (tentando explicar o que havia acontecido para seu assistente) : – “Ela (a professora Kate) ficou presa numa árvore cheia de espinhos, e eu… Sabia que ela tem flores na calcinha dela?
Mpudi, o assistente: – “Ah, então foi assim que a coisa subiu na árvore.”
Piada infame, grosseira, machista – mas hilariante, como tudo no filme.
Anotação em fevereiro de 2012
Os Deuses Devem Estar Loucos/The Gods Must Be Crazy
De Jamie Uys, Botsuana-África do Sul, 1981
Com Marius Weyers (Andrew Steyn), Sandra Prinsloo (Kate Thompson), Louw Verwey (Sam Boga), N!xau (Xixo), Jamie Uys (o reverendo), Michael Thys (Mpudi), Nic De Jager (Jack Hind), Paddy O’Byrne (narrador)
Argumento e roteiro Jamie Uys
Montagem Jamie Uys
Fotografia Buster Reynolds, Robert Lewis e Jamie Uys
Produção Jamie Uys, CAT Films, Mimosa.
Cor, 108 min
***1/2
Preciso rever esse filme mas não sei se vou ter paciência. Quando vi pela primeira vez, confesso sem vergonha que dormi boa parte do tempo. Auditório escuro, às sete horas da manhã (ou seja, eu tinha acordado antes das seis) de uma aula de antropologia; eu era adolescente e sentia um sono do cão. Depois acabei alugando e assisti novamente em casa (lembro que aluguei poque queria que minha mãe assistisse), mas já não me recordo de quase nada. Uma das poucas cenas das quais lembro é a da professora sendo carregada num rio – nessa hora eu acordei e tentei pegá-la — no filme parecia que ela ia cair na água. Kill me now.
Jussara, querida, reveja o filme agora, sem preconceito. Se você não der boas gargalhados, fico te devendo um jantar da próxima vez que você vier a São Paulo.
Abração.
Sérgio
Olá pessoal! Eu vi este filme na ocasião do lançamento e simplesmente me apaixonei. Há tempos quero comprar o DVD mas não encontro.
Parabéns pelos comentários. Realmente o filme é tudo isso.
Abç, Luiza
foi uns dos maiores filmes que já vi até hoje assisto este filme , que já estamos em 2012 é um maximo!!!! parabens aos atores do filme e diretoresm um abraço as todos
ola gostari de ver o filme, mas aquele que os 2 meninos passam o tempo todo correndo atraz ddas pegadas do caminhão, tem outra cena que o menorzinho coloca um pedaço de pau na cabeça pra hiena nao pega ele, como faço pra assistir on line. obrigada
Muito bom vi uma vez …mais não consegui ver todo me divertir aberta
Parabéns para as crianças e pelo belo filme
TEM MUITOS ANOS QUE PROCURO ESSE FILME.
Amei esse filme
Rapaz, há mais ou menos um ano procuro esse filme e recém hj consegui rsrsrsrsrs. Esse filme eu assisti no final de 1991, lá nos meus 17 aninhos de vidinha. Na cidadezinha (13 mil habitantes) onde eu morava tinha um cinema e era o encontro dos adolescentes, então fomos assistir a esse filme e ninguém conseguia se controlar de tanto rir rsrsrsrs. Imagina, naquela época só tínhamos um micro system para escutar Gun’s Roses e era isso, então o cinema era magia de última geração! Que bom, vou assistir e relembrar o passado, e como era bom!
Amo este filme,estou procurando os outros,alguém sabe me dizer,se ele sequenciado?
E vale ressaltar que até hoje o filme não mereceu uma remasterização para ser gravado em DVD ( tirando as cópias que já fiz para fãs dos 4 filmes ) por nenhuma produtora grande ou pequena. Chaga a ser ridículo. Alguém deve ter os direitos sobre as obras. Um Bluray recheado de extras e entrevistas deveria ser lançado a anos. Mas até agora nada. Mas ainda há tempo.
Que análise do filme mais UAU! Parabéns pelo comentário tão minucioso e bem escrito…
É um filme marcante, sempre utilizo em minhas aulas de sociologia e antropologia. A forma como apresenta a sociedade urbana, com a narração de documentário e a perspectiva de estranhamento, é impagável. A relação dos San com a garrafa, e o significado simbólico como crítica ao capitalismo foi uma sacada genial de Uys. Recomendo.
Muito
Bom. Era criança quando assisti na Globo, Sessão da Tarde.