Cemitério / Mezarlik – A Primeira Temporada

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível na Netflix em 3/2025.)

A primeira temporada da série turca Cemitério, lançada em 2022, é excelente, impressionante, marcante. É muitíssimo bem realizada em todos os quesitos artísticos e técnicos – mas, além disso, é séria, importante. Trata de crimes contra as mulheres, em um país de maioria muçulmana, em que, portanto, o machismo é fortíssimo, violentíssimo, e tem todo o apoio de um entendimento enviesado, equivocado – mas amplamente aceito – dos princípios religiosos.

Na trama do roteiro escrito a seis mãos – por Onur Böber, Özden Uçar e Evren Oguz –, as autoridades da área de segurança resolveram, nesta terceira década do século XXI, criar em Istambul uma Unidade de Crimes Especiais, voltada especificamente para ataques às mulheres, de agressões até feminicídio. Uma policial extremamente séria, competente, trabalhadora, de quase 40 anos de idade, Önem Özülkü, é escolhida para ser a inspetora-chefe da Unidade.

Önem Özülkü é a protagonista da história. Ela é representada por Birce Akalay (na foto abaixo), excelente atriz, presença forte na tela, um rosto marcante, às vezes belo, às vezes não.

Fica absolutamente claro, desde o inicinho do primeiro dos quatro episódios da primeira temporada da série, que as tais autoridades da segurança criaram a Unidade de Crimes Especiais em Istambul com uma imensa má vontade, preguiça, descaso – quando não repulsa, nojo. Algo muitíssimo mais como um gesto de marketing político do qualquer outra coisa.

Não vemos os chefões da área de segurança. Não ficamos sabendo sequer se a polícia de Istambul é metropolitana, como a de Londres, municipal, como nos Estados Unidos, se responde ao governador da província ou do Estado, como as do Brasil, ou ao governo federal.

O que a série mostra é o superior da agora inspetora-chefe da nova unidade, Haluk Ata (o papel de Hakan Meriçliler). Ele é identificado como o subdelegado de Polícia – muito provavelmente o número 2 da polícia da grande metrópole que é a capital turca, com seus 15 milhões de habitantes.

Haluk Ata – a série mostra bem en passant – havia sido o chefe imediato de Önem no início da carreira dela, quando era ainda um policial da ativa, não um chefe trancado em gabinete, longe das ruas. Admira a mulher, confia nela, e por isso a escolheu para o novo cargo.

Mas o que a Polícia de Istambul criou para Önem chefiar é uma absoluta porcaria, uma nulidade comparada à qual o Exército Brancaleone do clássico de Mario Monicelli de 1966 parece o melhor e mais poderoso do mundo!

Quando – aos 4 minutos do primeiro episódio – Önem chega ao prédio central da Polícia para assumir o cargo de inspetora-chefe da Unidade de Crimes Especiais, é levada para o porão por um policial idoso, às vésperas da aposentadoria, Hasan Duru (Sehsuvar Aktas). Hasan explica para ela – e para o espectador – que naquele lugar ali funcionava o arquivo, o arquivo morto. – “Não se deixe enganar pela placa”, diz ele. “Este lugar é conhecido por outro nome. Bem-vinda ao Cemitério.

A equipe pior que o Exército Brancaleone vai se ajustando

O lugar é o Cemitério, o porão do prédio da central de polícia onde funcionava o arquivo – um lugar abafado, horroroso. E a equipe…

O subdelegado Haluk Ata pôs para trabalhar sob as ordens da inspetora-chefe Önem três pessoas. O veterano Hasan Duru, que havia trabalhado nos últimos anos no arquivo, e estava, repito, à beira da aposentadoria. Um técnico chamado Berk Güleryüz (Baran Güler), uma figura esquisitíssima, estranha, que fala demais e fala coisas um tanto ininteligíveis (“Ele precisa vir com legendas!”, diz alguém). E Serdar Ata (Olgun Toker), um sujeito aí de uns 35 anos, que havia sido afastado da Unidade de Ordem Pública por brigar com alguns colegas – não por coincidência, filho do subdelegado Haluk Ata.

A princípio, Serdar vai demonstrar um certo desgosto por ter sido colocado ali, chefiado por uma mulher. E, no primeiro episódio, mostra-se um tanto preguiçoso – louco para decidir pela culpa do primeiro suspeito que aparece, para dar logo o caso por encerrado. Mas já no segundo episódio está mais à vontade, mais cooperativo e mais disposto a trabalhar direito.

O idoso Hasan também se mostra correto, e ativo – nada de um velho cansado que quer fugir do trabalho.

E o esquisito Berk é uma agradável surpresa para a inspetora-chefe Önem – e para o espectador. É espertíssimo, safo, sempre cheio de gás, de boa vontade; é um meticuloso investigador dos menores detalhes numa cena de crime, e tem jeito para pesquisas no computador, entende um tanto de TI.

Tecnologia da informação é hoje – a série mostra isso com bastante ênfase – fundamental no exercício da investigação policial. E Önem tem uma grande amiga que é uma absoluta expert em TI, Sofia (Berna Öztürk). Sofia (pronuncia-se Sófia) é uma figura também esquisita, estranha, no jeito de se vestir, de se pentear – algo como uma punk muito doidona. Foi batermos os olhos no personagem interpretado por essa Berna Öztürk que Mary e eu comentamos, ao mesmo tempo, que ela é uma espécie assim de Lisbet Salander, a prodigiosa hacker protagonista da série Millenium do sueco Stieg Larsson.

Önem consegue convencer Sofia a trabalhar com ela na Unidade de Crimes Especiais.

E Önem contará ainda com a ajuda de outra grande amiga, Feriha (Sezgin Uzunbekiroglu), uma das médicas legistas da polícia de Istambul. A alta chefia da polícia da capital da Turquia pode não dar importância àquela unidade – como de fato não dá –, mas, por causa da amizade das duas, a legista Feriha fará de tudo para ajudar aquele Exército Brancaleone.

Que, afinal de contas, vai se ajustando, vai se encaixando e deixando de ser brancaleônico.

Todos esses personagens são muito bem construídos – e os atores estão ótimos em seus papéis. Impressionante.

O promotor machista muda de posição

Falei mais cedo que a série não chega a mostrar os chefões da área de segurança que permitiram a criação da Unidade de Crimes Especiais – mas que seguramente o fizeram com absoluta má vontade, apenas como estratégia de marketing. Mas há uma figura na trama que serve para mostrar como o establishment absolutamente machista da máquina oficial turca não dá a menor importância ao combate aos crimes contra as mulheres. É o promotor de Justiça que acompanha as investigações policiais – como acontece em vários países europeus –, um tal Savci Gökhan. O ator que o interpreta, Cem Sürgit, compõe muito bem o personagem – um sujeito que os dois primeiros episódios da série apresentam como um tipo nojento, antipático, desagradável, o protótipo do machista absoluto. O promotor Gökhan faz tudo o que pode para atrapalhar o trabalho da inspetora-chefe Önem e sua equipe.

De uma maneira completamente inesperada, no entanto, o promotor Gökhan muda de posição no terceiro dos quatro episódios. Diz para a inspetora-chefe Önem que havia ficado impressionado com a dedicação dela ao trabalho, a seriedade com que ela se lança nas investigações.

Uma relação bem difícil com a filha adolescente

É uma tradição universal na ficção policial que o protagonista da história, o policial ou o detetive, tenha problemas na vida particular que o deixam preocupado, tenso. Cemitério é fiel à tradição: a dedicada inspetora-chefe Önem tem um relacionamento difícil, conflituoso, problemático, com a filha única, uma adolescente de 16 anos de idade, Sude (Elif Sevinç, na foto acima).

A garota culpa a mãe pela morte do pai, ocorrida em um acidente de trânsito. Sente terrivelmente a falta dele na sua vida, e isso a leva a uma posição de virtual enfrentamento eterno com a mãe.

Sude está tendo problemas sérios na escola. Falta às aulas, e, quando está presente, tem um comportamento de antagonismo com tudo ali. Com a mãe passando a aparecer nos telejornais, a garota sofre bullying de colegas – e, em um determinado momento, reage brigando feio com os molestadores.

E Önem, como tantos e tantos e tantos pais bem intencionados, não consegue estabelecer uma boa forma de estar em contato com a filha. Por temor de que a garota esteja se envolvendo com drogas, acaba fazendo asneiras que deixam Sude ainda mais distante dela.

          Cada episódio é longo, tem a duração de um filme

Esta primeira temporada de Cemitério segue um esquema usado em várias séries policiais, como, para dar apenas um exemplo, a longeva e sempre boa Law & Order: Special Victims Unit: em cada episódio há um caso policial, que começa e se encerra ali, naquele episódio. O fio condutor da série são os policiais, suas vidas particulares, seus relacionamentos.

Há, no entanto, um importante diferencial: cada um dos quatro episódios é longo, bem mais longo do que o tamanho padrão de 50 a 60 minutos cada. O primeiro episódio dura 106 minutos, 1h46 – o tamanho de um filme. O segundo tem 99 minutos. O quatro e último dura 116 minutos, 1h56.

A rigor, seria possível dizer que Cemitério é o nome de um conjunto de quatro filmes. Uma tetralogia – como Quatro Estações em Havana, baseada na tetralogia do escritor cubano Leonardo Padura.

Curiosamente, esta primeira temporada – exibida em 2022 na Turquia e em vários países (França, Itália, Polônia, Estados Unidos) – só foi lançada no Brasil (e também no Reino Unido, Canadá, Austrália, Índia) nos primeiros meses de 2025. Na mesma época em que foi lançada a segunda temporada, com oito episódios, de duração menor do que os desta primeira temporada aqui – cerca de 60 minutos cada.

Os dois primeiros episódios começam de forma frenética

Cada episódio da série tem seu título. O primeiro se chama “Mais Quente que o Sol”.

A vítima do primeiro crime investigado pela recém-instalada Unidade de Crimes Especiais, no primeiro episódio da série, é uma bela mulher de uns 30 e tantos anos de idade, uma produtora de um canal de TV, Alev Gölpinar (o papel de Gizem Kandemir). O corpo dela é encontrado incinerado, dentro de um carro incendiado, em uma fábrica abandonada nos arredores de Istambul.

A competente legista Feriha identifica que a mulher foi queimada viva. Tinha fraturas nos molares e dois dos dedos haviam sido quebrados. Os sinais são de que ela havia sido torturada antes de ser queimada viva. Um crime com sinais de uma brutalidade, uma violência inimaginável.

Como na vida real, como nas boas histórias policiais, a investigação não seguirá uma linha reta. Muito ao contrário. O primeiro suspeito será um tal Erdal Bilgin (Kubilay Penbeklioglu), um sociólogo ou coisa parecida, que é entrevistado pelo chefe imediato da moça Alev, o apresentador de um programa da TV, Metin Güreli (Fahri Öztezcan). Esse Erdal Bilgin, a investigação vai revelar, tinha tido um caso com Alev – e era um amante abusivo, que batia nela.

Serdar Ata, o policial colocado na unidade pelo seu pai, rapidamente se convence de que esse Erald Bilgin é o assassino. Não é.

O segundo episódio, “A Um Sopro de Distância”, tem pontos em comum com o primeiro. A vítima de feminicídio também é uma mulher bem jovem, de uns 20 e poucos anos, também bela, como Alev. Como no episódio anterior, o suspeito imediato – as investigações logo mostram – não é o assassino.

Há ainda uma semelhança no aspecto puramente formal – e isso é muito interessante. O diretor e produtor Abdullah Oguz e os roteiristas Onur Böber, Özden Uçar e Evren Oguz optaram por abrir cada um dos dois primeiros episódios de uma maneira frenética, com diversas tomadas rápidas, em montagem aceleradíssima, de várias situações diferentes. É quase aquela coisa que chamo de Podendo-Complicar-a-Narrativa,-Por-que-Simplificar? Pode até assustar o espectador. É uma óbvia afirmação tipo “Olha como nós somos geniais!”

No segundo episódio, a vítima é uma moça de vida dupla

Interessante, interessante, interessante: essa coisa frenética só acontece nas aberturas, no inicinho dos dois dois primeiros episódios-filmes. Depois de fazer sua afirmação “Olha como nós somos geniais!”, os realizadores baixam o facho e a narrativa a partir daí fica normal, clara, escorreita.

E é forçoso registrar: se o espectador resolver rever com tempo e calma as aberturas – como eu fiz –, verá que elas são de fato muito, mas muito, mas muito bem elaboradas. Os caras são bons mesmo.

O segundo episódio começa assim:

Tomadas gerais, aéreas, daquela cidade de beleza impressionante que é Istambul, à noite. Tomada de um trem urbano passando velozmente. Tomadas de ruas cheias de bares, de gente em grupos bebendo, conversando. Um vendedor de flores, alguns namorados compram, as namoradas sorriem felizes. Dentro de um dos muitos bares dessa espécie de Vila Madalena, de Baixo Leblon de Istambul, uma jovem mulher canta no palco. É bela, cabelos longos, boca carnuda com batom forte, jeans elegante. Close-ups de pessoas na platéia, homens e mulheres, ouvindo com atenção e prazer. Corta, vemos uma senhora sem-teto na rua. Corta, volta para o bar. Corta, mais uma tomada do metrô de superfície. Tomada rapidíssima da cantora já na rua. Volta para o bar, a bela moça cantando, gingando o corpo igualmente belo. (Sim, tem isso: nas frenéticas aberturas, os realizadores deixam a cronologia de lado.) De novo o metrô. Uma moça numa rua sem movimento encontra um corpo jogado dentro de uma dessas caçambas de recolher detritos, restos de demolição, lixo. Surge o título da série, gigantesco, ocupando praticamente toda a tela, Mezarlik – cemitério.

Corta, tomada da inspetora-chefe Önem na sua cama, sendo acordada pelo celular: haviam encontrado o corpo de mais uma vítima de feminicídio. O relógio digital no criado-mudo mostra que são 2h12.

Önem e Serdar encontram, perto do lugar em que o corpo da jovem e bela cantora foi achado, uma senhora idosa, a sem-teto que havíamos visto bem rapidamente em uma tomada dos minutos iniciais do episódio. Ela estava com a bolsa da vítima – e lá dentro os policiais encontram o documento de identidade da morta, Nefise Keskin (o papel de Selen Duman, na foto acima).
Nefise é a filha caçula dos três de um casal absolutamente, mas absolutamente religioso. Mãe e irmã usam véu quando recebem a visita de Önem e Serdar. Informam que Nefise estava no terceiro ano da faculdade de Teologia.

Bem rapidamente Önem e sua equipe ficam sabendo que Nefise tinha uma vida dupla. Para a família, era uma recatadíssima muçulmana praticante, estudante de Teologia. Para o resto do mundo, era Nefes, estudante de Artes, admirada pelo professor de música, aspirante a cantora, na verdade já contratada por aquele bar da região boêmia na região central de Istambul.

Um corpo é achado em um lago. Depois, outros três

O terceiro episódio, “A Mulher no Lago” não começa naquele esquema de ritmo frenético e um tanto confuso dos dois primeiros. Como o segundo, abre mostrando a mulher que será a vítima de feminicídio. Veremos que se chama Ilayda Pinar (Derya Sener), está aí na faixa dos 30 e tantos anos; havia se divorciado do marido, que era seu sócio em uma consultoria financeira, e tinha morado algum tempo com a mãe, mas, depois de uns meses, comprara uma nova casa. Na primeira sequência do episódio, está em casa, depois do trabalho, e recebe um telefonema da mãe. As duas conversam um pouco, vendo-se na tela de seus celulares; a filha mostra para a mãe um troféu que havia acabado de conquistar. A mãe diz que ela havia se apressado ao comprar a casa – afinal, ela e o marido ainda poderiam voltar. Ilayda pede para a mãe deixar aquela idéia de lado, ela e Yalcin estavam divorciados, não haveria volta.

A ligação fica ruim. A filha diz que ligará para a mãe no dia seguinte.

Toca a campainha da casa. Ilayda se encaminha para a porta da frente, abre a porta.

Corta – e, na sequência seguinte, o corpo dela está sendo embrulhado em um grande plástico.

Duas semanas depois, o corpo de Ilayda vem à tona em um lago nas proximidades de Istambul.

Como nos dois casos anteriores, a equipe de Önem vai suspeitar de pessoas que em seguida se provarão inocentes – a começar pelo ex-marido, Yalcin (o papel de Aybars Kuday).

No meio da investigação, as equipes de resgate que haviam retirado o corpo de Ilayda do lago encontram lá três outros corpos, todos de mulheres, todas mortas de maneira semelhante.

Um caso especialmente intrincado, uma empresa corrupta

Todos os quatro casos investigados pela equipe de Önem nesta primeira temporada são bastante complexos, intrincados. Mas o mais complexo e intrincado de todos, creio, é o mostrado no quarto episódio, que tem o título “Nós”.

Há um caso feminicídio em torno do qual gira a história, sim, como os outros; como no terceiro episódio, há um serial killer. Mas a trama envolve muito mais – é algo assim como uma panorâmica, uma visão macro das muitas grandes chagas da sociedade. Estão enroscadas na história envolvendo o assassinato de Nilüfer Steen, uma jornalista investigativa (o papel de Dilek Kaya, na foto acima), um serial killer que atrai mulheres através das redes sociais, uma empresa familiar da área de comunicação, um caso de abuso sexual dentro de família, e, at last but not at least, uma gigantesca empresa de mineração que agride violentamente o meio ambiente e suborna funcionários públicos e autoridades.

E, no meio de tudo isso, a série enfatiza o gosto amargo dos policiais da equipe de Önem Özülkü diante da realidade terrível de que muitas vezes os criminosos mais cruéis, mais sanguinários, mais atrozes, recebem penas leves e depois de pouco tempo de prisão estão de volta às ruas.

Como Nefise/Nefes, a Turquia tem duas faces

Não sei se era essa a intenção dos realizadores da série, mas o fato é que a vítima do segundo episódio, Nefise/Nefes, é assim uma expressão do que é a Turquia de uma maneira ampla e Istambul mais especificamente. Como a moça, Istambul tem dois lados, duas faces. Até mesmo fisicamente, geograficamente: é ao mesmo tempo asiática e européia. Tem uma face muçulmana, a outra laica, livre leve solta, com um longo histórico de sociedade cosmopolita, contemporânea, semelhante às de Paris, Londres, Nova York, Rio de Janeiro, São Paulo.

Os filmes turcos mostram isso de maneira claríssima. Cemitério faz questão de mostrar isso a cada momento, em todos os seus episódios. São pouquíssimas, raríssimas as mulheres que usam véus – qualquer tipo deles, burca, hijab, chador, shayla. As pessoas se vestem da mesma forma que os ocidentais. Vão a bares, bebem, dançam, se divertem, trepam.

No começo do quarto episódio, há uma sequência em que a protagonista Önem está nas preliminares do sexo com um sujeito de boa aparência que marcou encontro com ela nas redes sociais (na foto acima). E as tomadas expõem a beleza do corpo da atriz Birce Akalay sem qualquer tipo de pudor.

É necessário especificar: a inspetora-chefe Önem Özülkü não está ali se divertindo. O espectador sabe que ela perdeu o marido não faz muito tempo, e ainda não está preparada para transas eventuais. Aquilo ali é trabalho: ela finge que se deixa seduzir pelo sujeito que ela suspeita ser o procurado “Marinheiro Assassino”. Mas o fato é que a série não tem prurido algum de mostrar uma sensual sequência de preparação para o sexo.

Em 2015 – um ano depois de o direitista e retrógado Recep Tayyip Erdoğan ter assumido a presidência da República, após uma década como primeiro-ministro –, a jovem diretora Deniz Gamze Ergüven, então com 37 anos, lançou um filme belíssimo, fascinante, Cinco Graças, no original Mustang. O filme abre com uma frase dita em off por uma voz de garota adolescente: “É como se tudo tivesse mudado em um piscar de olhos. Uma hora, estávamos bem. Depois, tudo ficou uma merda”. A frase sintetiza com perfeição a história que vem a seguir, sobre cinco jovens mulheres, irmãs, órfãs, que tinham uma vida agradável, num vilarejo qualquer da Turquia, a mil quilômetros de Istambul, junto ao mar – e de repente, num piscar de olhos, passam a sofrer mais e mais e mais os rigores de uma disciplina rígida, rigorosa, conservadora, retrógada, castradora.

Pois o que esta série aqui e outras obras mais recentes mostram é que nem mesmo as duas décadas de governo Erdogan conseguiram fazer a Turquia afundar num ambiente de rigor religioso, em que as liberdades são reprimidas em nome da fé muçulmana.

Os realizadores encerraram a série no quarto episódio. Mas…

Se não dá para garantir que os realizadores quiseram fazer da personagem Nefise/Nefes uma alegoria à dualidade existente na sociedade turca, creio que dá para afirmar com tranquilidade que eles pretenderam encerrar a série no final do quarto episódio.

Como é de praxe nas séries policiais, e como já foi dito mais acima, os casos policiais de cada episódio são encerrados no próprio episódio. Mas – também como é comum nas séries – há toda uma trama envolvendo os policiais, suas vidas pessoais, e esta, naturalmente, prossegue ao longo dos episódios.

A trama criada Onur Böber, Özden Uçar e Evren Oguz vai mostrando que aquela equipe que começou parecendo muito pior, mais fraca e mais desorganizada que o Exército Brancaleone vai se entendendo, vai se aprimorando, se aprumando. Não que cheguem reforços. São as mesmas cinco pessoas, a inspetora-chefe Önem, o policial Serdar, filho do subdelegado de Polícia, o já idoso Hasan, o técnico muito doidão e muito competente Berk e a igualmente muito doidona e muito competente expert em TI Sofia – sempre com a ajuda fundamental da amiga-irmã de Önem, a legista Feriha. São as mesmas pessoas, mas elas vão aparando as arestas que existiam no início, vão se entendendo, vão se tornando um time, um grupo de pessoas que se gostam, se respeitam, se ajudam – e são dedicadas e competentes.

E, no quarto episódio, enquanto rola a trama extremamente complexa em torno do assassinato da jornalista Nilüfer Steen, vão se consertando as questões que ainda estavam pendentes. Önem e sua filha, a inteligente, esperta Sude começam finalmente a se entender – e até mesmo Serdar e seu pai, o subdelegado de Polícia Haluk, têm finalmente uma conversa sem briga.

A última sequência do quarto episódio é de comemoração entre aquelas pessoas da Unidade de Crimes Especiais. Fim. Sei lá como se diz isso em turco. Son, segundo o Google. The End.

The End, pero… Na última tomada da última sequência, uma porta se entreabre. Porque, diabo, poderia ser que a série fizesse sucesso, né?

E a série fez sucesso. Agradou. Então, diacho, por que não fazer uma segunda temporada?

E a segunda temporada veio. Foi lançada mundialmente, como já foi dito, no final de fevereiro de 2025 – e, nos países em que a primeira temporada não estava disponível, como o Brasil, ela chegou também. Agora estão disponíveis todos os 12 episódios.

A série está no Top 10 das séries da Netflix no momento em que escrevo, meados de março de 2025. No IMDb, a série está com a nota 7,7 em 10, média da opinião de 4,2 mil leitores do site enciclopédico.

É uma beleza de trabalho.

         Anotação em março de 2025

Cemitério/Mezarlik – A Primeira Temporada

De Abdullah Oguz, Turquia, 2022.

Com Birce Akalay (Önem Özülkü, a inspetora-chefe da Unidade de Crimes Especiais),

Olgun Toker (Serdar Ata, o policial mais jovem da Unidade), Sehsuvar Aktas (Hasan Duru, o policial idoso da Unidade), Baran Güler      (Berk Güleryüz, o técnico da Unidade), Elif Sevinç (Sude Özülkü, a filha de Önem), Berna Öztürk (Nergis Üzmez, a Sofia, expert em TI), Hakan Meriçliler (Haluk Ata, o subdelegado de Polícia, chefe de Önem Özülkü), Sezgin Uzunbekiroglu (Feriha Mahmudzade, a médica legista), Cem Sürgit (o promotor Savci Gökhan),

No primeiro episódio, “Mais Quente que o Sol”: Gizem Kandemir (Alev Gölpinar, a vítima), Kubilay Penbeklioglu (Erdal Bilgin, o amante abusivo de Alev), Ilgit Ucum (Gülselen Bilgin, a mulher de Erdal), Fahri Öztezcan (Metin Güreli, o apresentador de TV, chefe de Alev), Nihan Tarhan (Sevda Güreli, a mulher de Metin), Elif Tugrul (Meltem), Eylem Yildiz (Didem)

No segundo episódio. “A Um Sopro de Distância”: Selen Duman (Nefise Keskin/Nefes, a vítima), Elçin Atamgüç (a mãe de Nefise), Cihangir Kose (o pai de Nefise), Hayati Akbas (Israfil), Çaglar Ozan Aksu (Emrah), Burak Can Aras (Tekin), Filiz Bozok (Papatya), Seyda Cevahiroglu (Özge)

No terceiro episódio, “A Mulher no Lago”: Derya Sener (Ilayda Pinar, a vítima), Emir Can Kahyeri (Erkut Gümüs), Aybars Kuday (Yalcin Gurgen), Eren Küçük (Çetin Asak), Caner Nalbantoglu (Serhat Alkilic), Adem Yilmaz (Dogan Rauf), Hande Özemre (Macide)

No quarto episódio, “Nós”: Dilek Kaya (Nilüfer Steen, a vítima), Can Büyükaltay (o executivo da mineradora), Evren Duyal (Kamuran, a tia de Nilüfer Steen), Nagihan Gürkan (Melodi), Bora Karakul (Yasin), Ali Emrah Sari (Stefan), Burak Sarimola (Ferit, o empresário jornalista), Efe Uysal (Umut)

Roteiro Onur Böber, Özden Uçar, Evren Oguz

Fotografia Ferhat Uzundag

Música Tevfik Akbasli

Montagem Hamdi Deniz, Ugur Nur, Ismail Seçkin

Casting Selim Bahar

Direção de arte Sule Basak Çavdar

Produção Abdullah Oguz, Evren Oguz, ANS Production, Evrensel Filimcilik

Cor, cerca de 400 min (6h40)

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Título no Reino Unido e EUA: “Graveyard”. Na França: “La Fosse’.

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