Ainda Estou Aqui

4.0 out of 5.0 stars

(Disponível nas boas salas de cinema.)

Pouquíssimas vezes houve na História filme tão forte, tão poderoso, quanto Ainda Estou Aqui, de Walter Salles. Em pouco mais de dois meses, o filme levou mais de 3,6 milhões de brasileiros às salas de cinema, recorde raríssimo, reservado apenas para blockbusters de Hollywood ou comédias populares – nunca para um drama sério, denso, pesado.

Fez com que brasileiros das novas gerações ficassem conhecendo fatos da ditadura militar, a página infeliz que manchou 21 anos da nossa História, de 1964 a 1985.

Foi capaz de criar um momento de comoção nacional semelhante a uma conquista de Copa do Mundo, quando Fernanda Torres levou o Globo de Ouro de melhor atriz em filme drama por sua interpretação de Eunice Paiva, vencendo quatro gigantescas estrelas de Hollywood – Angelina Jolie, Nicole Kidman, Tilda Swinton e Kate Winslet, no primeiro domingo de 2025, 5 de janeiro.

E criou um novo momento de comoção nacional quando, no dia 22 de janeiro, a Academia de Hollywood anunciou que o filme estava indicado ao Oscar em três categorias – melhor atriz para Fernandinha, melhor filme internacional e – o máximo do máximo – melhor filme, a principal categoria do prêmio mais badalado e desejado do cinema mundial.

Tornou-se o filme brasileiro mais premiado de todos os tempos, o mais aclamado, aplaudido, reverenciado.

Fez com que as livrarias voltassem a anunciar os cinco volumes da Coleção Ditadura, do jornalista Elio Gaspari.

Foi usado como argumento por um ministro do Supremo Tribunal Federal, em dezembro de 2024, para defender que a Lei da Anistia, promulgada no fim da ditadura, não deve se estenda aos crimes de ocultação de cadáver.

E, evidentemente, não é mera coincidência que, no dia 8 de janeiro de 2025, o presidente Lula tenha assinado decreto criando o Prêmio Eunice Paiva de Defesa da Democracia, a ser entregue anualmente a uma pessoa que tenha colaborado para a preservação, restauração ou consolidação do regime democrático no Brasil.

Tampouco é mera coincidência o fato de que, com o filme em cartaz e tendo ampla repercussão nos jornais e na TV, o Cartório da Sé, em São Paulo, tenha divulgado no dia 22 de janeiro uma versão corrigida da certidão de óbito do ex-deputado Rubens Paiva, acrescentando o motivo da morte – inexistente no documento que foi entregue a Eunice Paiva em 1996. A nova versão registra que ele teve morte violenta, “causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

Ao contar, com imenso talento e sensibilidade, a história da prisão e desaparecimento de Rubens Paiva, e o drama de Eunice, viúva de um morto sem cadáver, Ainda Estou Aqui virou, ele mesmo, um importante, forte, poderoso personagem da História do Brasil.

Uma família comum, como qualquer outra

Um crítico norte-americano, remando contra a maré de elogios ao filme, escreveu que “o humanismo de Eunice fica enterrado sob uma estrutura de roteiro banal que trata sua vida extraordinária como algo bastante comum”. O crítico, Marshall Shaffer, escreveu no site The Playlist, e sua frase foi citada em reportagem do portal de O Globo, publicada sem assinatura em 16 de janeiro, exatamente o dia em que enfim – e bota enfim nisso – Mary e eu fomos ver o filme, mais de dois meses depois da estréia nos cinemas.

É fantástico como a mesma coisa pode ser vista de duas maneiras extremamente diferentes, quase ou abertamente opostas. Diante de uma foto da bola azul em que vivemos, o tal do pale blue dot, na magnífica definição de Carl Sagan, há quem veja uma tábua plana.

Ainda Estou Aqui mostra a vida da família Paiva como algo bastante comum, sim – e essa é uma das principais qualidades do belo roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega premiado no Festival de Veneza.

O roteiro foi escrito – me parece – exatamente para mostrar que aquela era uma família comum, “normal” (entre aspas porque a gente sabe que “de perto ninguém é normal”, como diz Caetano Veloso). Gente como a gente. Bem… Com uma vida mais confortável, tranquila, do que a maioria das pessoas como a gente, já que morava naquele belo, amplo sobrado na Avenida Delfim Moreira, diante do mar do Leblon. Família classe média alta, rica, tá bom – mas absolutamente comum, “normal”, com uma rotina igual a de tantas, tantas outras.

Os cinco filhos de Rubens (o papel de Selton Mello) e Eunice (o de Fernanda Torres) eram adolescentes e crianças como milhares, centenas de milhares de outros. Iam para a escola, se reuniam com amigos, se divertiam – exatamente como milhões de outros adolescentes e crianças do país inteiro, do continente inteiro, do mundo inteiro.

Todos os 20, 30 primeiros minutos do filme são feitos para mostrar isso. Que aquela era uma família comum.

Em 1970 – um letreiro deixa clara a data em que a ação se passa –, Rubens Paiva não era mais um político. O filme não fica explicando isto, não é sua obrigação, mas o fato é que ele havia tido seu mandato de deputado federal pelo PTB cassado pela ditadura logo no seu início, pelo Ato Institucional nº 1. O Ato, de 9 de abril de 1964, trazia as primeiras cassações de políticos, jornalistas, escritores, numa lista que incluía o próprio presidente deposto, João Goulart, e mais Jânio Quadros, Luís Carlos Prestes, Celso Furtado, Josué de Castro, Darcy Ribeiro e Samuel Wainer, entre muitos outros.

Cassado, Rubens Paiva havia se exilado, saído do país, mas voltara e reassumira sua vida de pai de família, seu trabalho de engenheiro – comum, normal, igual a tantos outros profissionais liberais.

Uma família absolutamente comum.

De vez em quando Rubens e Eunice ouviam no noticiário de TV uma informação sobre o sequestro de um embaixador.

Há um momento em que Eunice está na praia, alegre, contente – e seu rosto é tomado por uma expressão dura ao ver a passagem pela Delfim Moreira de caminhões lotados de soldados.

Era uma vida absolutamente comum, com apenas alguns poucos momentos em que eles eram lembrados de que o país vivia sob uma ditadura.

De repente, despencamos em um mundo nonsense

Até que, de repente, absolutamente de repente, do nada, chegam os homens para levar Rubens Paiva.

A sequência é bastante longa, e de repente, absolutamente de repente, do nada, muda absolutamente tudo. Como assim? Por que aqueles homens ficam na casa da família, depois que Rubens é levado? Para que aquilo? Como assim?

Vínhamos acompanhando uma vida comum de uma família comum – e num piscar de olhos muda absolutamente tudo.

Não sei o quanto os roteiristas Murilo Hauser e Heitor Lorega e o diretor Walter Salles estudaram detidamente de que forma fariam aquilo, até que ponto eles queriam que os espectadores sentissem exatamente o que eu senti – mas o fato foi que eu me vi despencando em um universo paralelo, em um mundo de nonsense, maluco, louco, ilógico, um mundo em que as regras normais da vida deixaram de ter validade.

Ainda Estou Aqui consegue, de uma maneira incrível, fortíssima, poderosíssima, transportar você para o universo sem lógica que é a vida numa ditadura.

De uma maneira incrível, fortíssima, poderosíssima. Exatamente porque vínhamos num clima de vida comum, banal, normal – e de repente, num piscar de olhos, tudo muda.

O espectador se sente tão absolutamente perdido quanto a própria Eunice.

Eunice não tinha idéia se o marido vinha tendo – além do seu trabalho, da sua rotina junto com a família – alguma atividade política, se mantinha alguma ligação com grupos de oposição, em especial com grupos que haviam passado para a luta armada. Isso fica claríssimo: Eunice não tinha idéia. Vai perguntar aos amigos: será que o marido estava tendo atividades políticas que não revelava para ela? Num diálogo preciso, enxuto, ouve de um amigo que, sim, eles trocavam informações, procuravam ajudar os companheiros que estivessem necessitando de apoio – mas nada mais que isso.

Rubens Paiva não comia criancinhas. Não dava armas para os bem-intencionados mas equivocados jovens que aderiram à guerrilha. Não promovia reuniões secretas planejando derrubar o regime. Era um engenheiro que trabalhava normalmente e amava a mulher e os cinco filhos.

Mas nas ditaduras os que estão no poder e seus vassalos armados têm sua própria lógica, sua própria razão – e destroem as famílias, essa instituição que sempre juram estar defendendo. Torturam e matam o quanto querem.

O crítico americano escreveu que “o humanismo de Eunice fica enterrado sob uma estrutura de roteiro banal que trata sua vida extraordinária como algo bastante comum”. OK, todo mundo tem direito à sua opinião – neguinho pode ver uma foto da bolota azul em que vivemos e achar que é uma grande placa plana.

Ainda Estou Aqui é um filme de roteiro extraordinário, que mostra como as vidas banais, comuns, inocentes, são absolutamente reviradas, abaladas e muitas vezes destruídas pelas ditaduras.

Uma beleza de filme – que, além disso, teve muita sorte

Woody Allen, aquele gênio, volta e meia diz que os livros de auto-ajuda que nos perdõem, mas, além de a gente ter que se esforçar muito, é preciso ter sorte na vida. Creio que com os filmes, da mesma maneira que com as pessoas, acontece a mesma coisa – e Ainda Estou Aqui teve, além de talento em dose descomunal, muita sorte.

Veio na hora certa, precisa – não apenas no contexto político brasileiro, quando estão para ser julgados os homens que planejavam um golpe de estado, mas também na época de lançamento, exatamente nos meses que precedem a temporada das grandes premiações. A estratégia dos realizadores de manter o filme em cartaz nos cinemas, prolongando ao máximo a chegada ao streaming, mostrou-se acertadíssima. A repercussão natural, espontânea, tanto no boca-a-boca quanto na mídia, foi exponencialmente maior, com o filme em cartaz nas salas, do que se estivesse já disponível na televisão. Tenho certeza disso.

E aí vieram os primeiros prêmios, as indicações aos mais badalados, a recepção entusiástica dos espectadores e dos críticos – no Brasil, na Europa, nos Estados Unidos. Formou-se uma bola de neve morro acima, um círculo virtuoso. Newton talvez equacionasse que sucesso atrai sucesso na razão direta do número de ingressos vendidos e das matérias nos jornais e na TV.

Há aí, na coisa de haver um período longo entre a estréia no circuito comercial e a liberação para exibição na TV, uma interessante ironia, Uma das companhias produtoras do filme (são várias, inclusive a respeitadíssima Conspiração Filmes e empresas francesas) é exatamente a Globoplay, a empresa de streaming das Organizações Globo, o maior grupo de comunicação do país. Uma empresa de streaming ajudou a produzir um filme que só vai entrar na sua programação vários meses após ficar em exibição nas salas comerciais! E, enquanto isso, exatamente por ter a Globoplay como uma das produtoras, o filme teve garantida toda a simpatia nos diversos noticiários da Rede Globo, jornais O Globo e Extra, Rádio CBN e empresas irmãs…

Fiquei pensando: diacho… Pra Frente, Brasil, que Roberto Farias lançou em 1982, os generais ainda no poder, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e Zuzu Angel, de Sergio Rezende (ambos, por coincidência, de 2006), belos e importantes filmes denunciando as prisões, as torturas e os desaparecimentos durante a ditadura militar e seus efeitos sobre a vida de famílias de gente como a gente, não tiveram tanta sorte.

Que não se entenda que estou querendo desmerecer o filme de Walter Salles. PelamordeDeus, não tem nada a ver com isso. Quero apenas realçar que, além de ser extraordinário, espetacular, Ainda Estou Aqui veio no momento certo e contou com uma maré de fatos favoráveis.

Depois de uma vitória em Veneza, diversos outros festivais

Registro alguns dos fatos e datas da carreira do filme:

* A avant-première de Ainda Estou Aqui foi no dia 1º de setembro de 2024, no Festival de Veneza, onde participava da mostra competitiva – o que por si só já é uma honraria. Ao final da exibição, a platéia aplaudiu longamente – falou-se em 14 minutos de aplausos. E, no dia 7 de setembro (ah, as coincidências), no anúncio das premiações, o filme levou o troféu pelo melhor roteiro, de autoria de Heitor Lorega e Murilo Hauser, com base no livro de Marcelo Rubens Paiva, o penúltimo dos cinco filhos do casal Eunice e Rubens Paiva.

Foi o primeiro dos vários prêmios que Ainda Estou Aqui viria a ganhar – e a primeira vez que um filme brasileiro era premiado em Veneza, um dos três festivais mais importantes do mundo, ao lado dos de Cannes e Berlim, desde 1981, quando Eles Não Usam Black-tie, de Leon Hirszman, levou o prêmio especial do júri.

* Entre 6 de setembro de 2024 e 6 de janeiro de 2025, o filme foi exibido em festivais no Canadá (Toronto), Espanha (Donostia-San Sebastián), Suíça (Zurique), Grécia (Atenas), Estados Unidos (Honolulu, Nova York, Woodstock, Filadélfia, Chicago, Los Angeles, Austin, Miami, Palm Springs), Reino Unido (no British Film Institute London Film Festival), França (La Roche-sur-Yon International Film Festival), Áustria (Viennale Film Festival).

* No Brasil, o filme foi apresentado nos festivais de São Paulo, em 18 de outubro, e do Rio, logo depois, no dia 21.

* A estréia nas salas do circuito comercial brasileiro foi no dia 7 de novembro.

* Uma espertíssima, fantástica estratégia de marketing dos realizadores e das empresas distribuidoras – entre elas a Sony Pictures Classics, a StudioCanal e a Wild Bunch – espalhou o lançamento nos diversos países por várias datas, em vez de concentrar tudo no mesmo dia. Garantia de notícias sobre o filme no exterior ao longo de semanas…

Assim, Je Suis Toujours Là estreou na França em 15 de janeiro de 2025, Ainda Estou Aqui em Portugal no dia 16. I’m Still Here teve estréias em Nova York, e Los Angeles no dia 17. Estava programada a estréia de Io Sono Ancora Qui na Itália em 30 de janeiro, de Aún Stoy Aquí na Espanha e de I’m Still Here no Reino Unido em 21 de fevereiro. Os alemães poderiam ver Für Immer Hier a partir de 13 de março.

* Fernanda Torres foi premiada com o Globo de Ouro de melhor atriz em filme drama em 5 de janeiro, e as três indicações ao Oscar foram anunciadas em 22 de janeiro, como já foi dito, mas repito aqui pelo registro e porque é uma delícia repetir coisa boa.

Walter Salles dirigiu Fernandinha três vezes

É preciso lembrar que a abertura das portas de tantos festivais mundo afora para o filme tem tudo a ver, naturalmente, com a fama, a respeitabilidade internacional de Walter Salles. O currículo do cara é impressionante. A filmografia dele como diretor no IMDb tem 22 títulos – mas longa-metragens de ficção são apenas 10, ao longo de 33 anos. Poucos, mas, meu, que filmes…

Walter Salles acumulava, até o momento em que escrevo, 17 de janeiro de 2025, 74 prêmios. Em Berlim, ganhou o Urso de Ouro de melhor filme e o prêmio do júri ecumênico com Central do Brasil (1998). Teve cinco indicações ao Bafta, o Oscar britânico, e levou os prêmios de melhor filme em língua não-inglesa por Central do Brasil e por Diários de Motocicleta (2004).

Cannes escolheu para fazer parte de suas exclusivas mostras competitivas nada menos de três filmes do diretor, Diários de Motocicleta, Linha de Passe e Na Estrada. O primeiro dos três levou o prêmio do júri ecumênico.

Tanto Central do Brasil quanto Diários de Motocicleta foram indicados ao César, o Oscar francês. E ao Oscar italiano, o David di Donatello, foi indicado Central do Brasil – que também teve duas indicações ao prêmio mais badalado de todos, o Oscar da Academia de Hollywood, nas categorias melhor filme estrangeiro e melhor atriz para Fernanda Montenegro.

É preciso registrar: nunca antes um filme brasileiro havia sido indicado na principal categoria do Oscar, a de melhor filme. “Ainda Estou Aqui” é o primeiríssimo e único.

É fantástica a parceria do diretor com as duas Fernandas, a mãe e a filha. Fernandinha Torres trabalhou sob a direção dele e de Daniela Thomas em Terra Estrangeira (1995) e em O Primeiro Dia (1998). Ainda Estou Aqui é o terceiro longa em que Fernandinha é dirigida pelo cineasta que deu à sua mãe aquele que seguramente é seu melhor papel no cinema, o da ex-professora Isadora em Central do Brasil. Por sua interpretação ali, Fernanda Montenegro teve uma indicação tanto ao Globo de Ouro quanto ao Oscar.

Neste Ainda Estou Aqui Fernanda Montenegro faz uma participação especial nos momentos finais dos seus 136 minutos de duração, como a Eunice Paiva já devastada pelo Alzheimer, em 2014. (Eunice morreria em 2018, aos 89 anos, depois de finalmente receber um atestado de óbito do marido, em 2014, mas sem que jamais tivesse sido encontrado o corpo.)

Tinha absolutamente todo sentido que Fernandinha dedicasse à sua mãe o Globo de Ouro que recebeu quando no Brasil já era a madrugada da segunda-feira, 6 de janeiro. “Quero dedicar este prêmio à minha mãe”, disse ela, em seu bom inglês. “Ela esteve aqui há 25 anos e isso é uma prova de que a arte pode sobreviver na vida, mesmo durante tempos difíceis, assim como os que Eunice Paiva passou.”

Uma atuação “um tanto monocórdica”. Uma atuação soberba.

O crítico Marshall Shaffer, do site The Playlist, não gostou.

O crítico Jacques Mandelbaum, do Le Monde, também não. Definiu a atuação de Fernanda Torres como “um tanto monocórdica”.

Na edição de 16 de janeiro do New York Times, em texto sob o título “Quando a polícia invade uma casa feliz”, a crítica Alissa Wilkinson afirmou que “é fácil entender” o motivo de I’m Still Here ter se tornado um fenômeno de bilheteria nos cinemas brasileiros, e define o filme como uma obra “   habilmente trabalhada e ricamente filmada”.

“Em sua performance — que ganhou um Globo de Ouro e está mirando uma indicação ao Oscar — Torres atordoa. Proteger seus filhos significa se inclinar para a alegria dentro do medo, para a esperança em meio à dor. Torres entrega em sua atuação todas essas camadas de emoções, e seus olhos à procura são magnéticos.”

E adiante: “Mas este não é apenas um filme sobre uma mulher forte, embora certamente seja isso. É também sobre o que regimes autoritários fazem para manter as pessoas na linha, a tática totalitária de fazer as pessoas duvidarem do que sabem que viram, insistindo em mentiras descaradas.”

E mais: “O filme também foi lançado no momento em que surgiram detalhes de um golpe planejado para manter no poder o ex-presidente Jair Bolsonaro, que defendia a ditadura militar, após perder a eleição de 2022. Então a popularidade do filme não é mistério. No entanto, I’m Still Here não se apresenta como uma simples polêmica sobre uma situação histórica e política, e esse é o segredo de seu apelo global.”

Como I’m Still Here estreou nos Estados Unidos em 17 de janeiro, dia em que escrevo este texto, não havia ainda número no Popcornmeter do site agregador de opiniões Rotten Tomatoes – a média de avaliação dos leitores do site. Mas o Tomatometer – a média de avaliação dos críticos checados pelo site, 49 até então – era de estupefacientes 94%. E o “consenso da crítica” era:

“Carregado pela soberba atuação de Fernanda Torres, I’m Still Here explora de forma pungente a convulsão de uma nação através da busca de uma família por respostas.”

Uma atuação “um tanto monocórdica”. Uma atuação que atordoa. Uma atuação soberba.

É assim. Diante da foto do nosso lindo e pobre pale blue dot, neguinho pode ver uma tábua plana.

Não que a gente defenda unanimidade. Mais de 95% dos votos, só em Cuba ou na Coréia do Norte. Neste Brasil literalmente dividido ao meio na eleição presidencial de 2024, é claro que os eleitores do capitão que defende a ditadura não têm motivo algum para ver este filme, quanto mais para gostar dele. O que, aliás, para mim, é mais uma qualidade de Ainda Estou Aí: quanto mais os críticos de cinema e/ou os demais seres humanos falam bem do filme, mais furibundos ficam os bolsonaristas.

Brincadeira à parte…

(Brincadeira? Como assim? Eu não estava brincando!)

Brincadeira à parte, quero transcrever aqui parte do artigo de Dorrit Harazin, essa mulher que é um dos melhores textos do jornalismo brasileiro, no Globo do dia 12 de janeiro, o domingo seguinte à consagração de Fernanda Torres no Globo de Ouro:

“A terra arde na Califórnia, falta ar respirável na Venezuela de Nicolás Maduro, Mark Zuckerberg assume sua covardia cívica, e o mundo gira aparvalhado às vésperas de uma nova era — a era Trump II. Assunto para desesperança não falta, daí a importância de relembrar também aqui, e sempre que necessário, a felicidade coletiva que inundou o Brasil nas últimas horas do domingo passado.

“Dada a excepcional safra de concorrentes ao Globo de Ouro de Melhor Atriz, poucos ousavam esperar que Fernanda Torres saísse premiada pela atuação em Ainda Estou Aqui, o precioso filme de Walter Salles baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. O filme já havia corrigido uma lacuna colossal na História do país (e da ditadura militar) dando voz, corpo e alma à figura de Eunice Paiva. Já havia sensibilizado mais de 3 milhões de brasileiros e devolvido vida a salas de cinema. Já havia gerado análises fluviais e pertinentes em todas as mídias nacionais. Mas foi o anúncio surpresa transmitido ao vivo de Beverly Hills que fez com que o Brasil (ou boa parte dele) acordasse na manhã seguinte em estado de euforia coletiva. Uma alegria não estridente nem impositiva, de mera felicidade impregnada pela arte. Como foi gostoso sentir orgulho compartilhado e sem soberba. De repente, o amanhã fugidio e incerto foi substituído por um presente generoso, marcante, esperançoso.”

Anotação em 16 e 17/1/2025, com atualização em 24/1/2025.

Ainda Estou Aqui

De Walter Salles, Brasil, 2024

Com Fernanda Torres (Eunice Paiva)

e Selton Mello (Rubens Paiva), Guilherme Silveira (Marcelo Rubens Paiva em 1971), Antonio Saboia (Marcelo Rubens Paiva em 1996 e 2014), Valentina Herszage (Vera Sílvia Facciolla Paiva em 1971), Maria Manoella (Vera Sílvia Facciolla Paiva em 2014), Luiza Kosovski (Maria Eliana Facciolla Paiva (em 1971), Marjorie Estiano (Maria Eliana Facciolla Paiva (em 2014), Bárbara Luz (Ana Lúcia Facciolla Paiva, Nalu, em 1971), Gabriela Carneiro da Cunha (Ana Lúcia Facciolla Paiva, Nalu, em 2014), Cora Mora (Maria Beatriz Facciolla Paiva, Babiu, em 1971), Olívia Torres (Maria Beatriz Facciolla Paiva, Babiu, em 1996 e 2014),

Maeve Jinkings (Dalva Gasparian), Charles Fricks (Fernando Gasparian), Dan Stulbach (Baby Bocaiúva), Camila Márdila (Dalal Achcar), Humberto Carrão (Félix), Carla Ribas (Martha), Daniel Dantas (Raul Ryff), Caio Horowicz (Ricardo Gomes, Pimpão), Maitê Padilha (Cristina), Thelmo Fernandes (Lino Machado), Helena Albergaria (Beatriz Ryff), Luana Nastas (Helena Gasparian), Isadora Ruppert (Laura Gasparian), Pri Helena (Maria José, Zezé), Felipe Barreto (Reinaldo), Lourinelson Vladimir (interrogador), _Thelmo Fernandes (Lino Machado), Carla Ribas (Martha), Antonio Furtado (George, marido da Vera), Fagundes Emanuel (Chico), Bernardo Bibancos (Juca), Matheus Canto (Daniel)

e, em participação especial, Fernanda Montenegro (Eunice Paiva em 2014)

Roteiro Murilo Hauser e Heitor Lorega      

Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva

Fotografia Adrian Teijido

Música Warren Ellis

Montagem Affonso Gonçalves

Casting Leticia Naveira 

Desenho de produção Carlos Conti

Figurinos Cláudia Kopke, Helena Byington

No Cine Reserva Cultural, Sala 2. Produção Maria Carlota Bruno, Martine de Clermont-Tonnerre, Rodrigo Teixeira, VideoFilmes, RT Features, MACT Productions, Arte France Cinéma, Conspiração Filmes, Globoplay, Arte France Cinéma, Canal+, Ciné+OCS.

Cor, 136 min (2h16)

****

2 Comentários para “Ainda Estou Aqui”

  1. Impressionante como, em um texto dessa extensão , Sérgio Vaz consegue nos manter ligados, atentos do começo ao fim. Muita qualidade, domínio da informação… Parabéns, companheiro.

Comentário

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