
(Disponível na Netflix em 10/2025.)
The Woman in Cabin 10, co-produção Reino Unido-EUA de 2025, é um belo filme de mistério/suspense durante boa parte de seus curtos 92 minutos. A protagonista da história, uma bem-sucedida jornalista do Guardian de Londres, não é A Mulher na Cabine 10 do título: ela ocupa a cabine 8 do que é chamado de iate, mas mais parece um transatlântico. Ela ouve gritos na cabine do lado, vê marcas de uma mão ensanguentada na parede e garante que viu uma pessoa sendo jogada ao mar.
Ninguém acredita nela. Acham que ela está louca – e o filme tem um belo, envolvente clima que prende, contagia o espectador, faz o espectador sentir simpatia pela jornalista que está sendo desprezada por aquele monte de ricaços reunidos para o que se anunciava como um gesto benemérito de doação de imensa fortuna para a luta contra o câncer.
Na terça parte final do filme dirigido pelo jovem Simon Stone e estrelado por Keira Knightley – a razão pela qual quisemos ver a fita assim que ela foi lançada –, a coisa desanda. Como tantas vezes acontece, em especial no cinemão comercial americano, vira um filme de ação, e a jornalista Laura Blacklock da bela Keira Knightley se transforma em uma super-heroína à la Mulher Maravilha.
Mas os primeiros 60 minutos fazem valer a pena ver este The Woman in Cabin 10. Além da bela trama que vai fisgando o espectador, o filme consegue também fazer um interessante retrato de uma profissional que se mete em um mundo desconhecido – o mundo dos extremamente ricos.
Não dá para não lembrar de F. Scott Fitzgerald, aquele gênio que se encantava pelo universo dos endinheirados. “Os ricos são diferentes de você e de mim”, ele escreveu no conto “The Rich Boy”, de 1926, um ano depois da obra-prima O Grande Gatsby. Ao que seu contemporâneo e em parte rival Ernest Hemingway replicou, com aquele jeito de machão tosco dele: “Claro! Eles têm mais dinheiro!”
Laura Blacklock leva uma advertência de uma comissária de bordo assim que pisa no iate-transatlântico do multimilionário Richard Blummer e sua mulher Anne Lyngstad Blummer, a herdeira de uma das maiores fortunas da Noruega: teria que tirar os sapatos; não se sobe em iate de sapatos, em especial de saltos altos.
No primeiro almoço a bordo, ela aparece de jeans – e as ricaças comentam com desdém aquela falta de etiqueta da moça que é uma jornalista elogiada, respeitada, admirada, mas não é rica. Para o jantar, então, Laura põe um vestido de gala, brilhante – e de novo destoa, porque no iate-transatlântico os ricos não vão jantar de soirée e black-tie.
Estranha no ninho, peixe fora d ‘água, Laura vira objeto de ódio quando insiste em dizer que aconteceu ali um crime que todos se recusam a admitir.

“Um tema de interesse humano em uma época desumana”
Os textos têm muitas vezes a mania de se escrever por eles mesmos, de se encaminhar para onde bem entendem – e eu acabei relatando de cara o que é o grande evento climático da trama, o momento em que a jornalista Laura tem a certeza de ter presenciado o lançamento de um corpo ao mar.
A rigor, a rigor, não chega propriamente a ser um spoiler revelar isso, já que acontece quando o filme está com uns 22 minutos.
Mas é que eu gosto mesmo é de começar bem pelo comecinho – e devagar. Detalhadamente.
A Mulher na Cabine 10 abre com a personagem interpretada por Keira Knightley chegando com uma mala à redação do Guardian, depois de passar vários dias fora. Uma rápida tomada permite que o espectador mais atento veja o logotipo do jornal em uma parede na entrada da redação. Um colega que se encontra com ela a cumprimenta pela matéria sobre as ONGs. Outras pessoas elogiam a matéria enquanto ela se dirige à sua mesa de trabalho. Uma sorridente estagiária leva para ela um copo de café.
Uma das primeiras coisas que Laura vê na tela de seu laptop é um convite – “Junte-se à comemoração” – com a foto do super-iate Aurora Borealis, uma gigantesca embarcação de quatro andares visíveis, acima do nível do mar. “A Fundação Lyngstad convida Laura Blacklock…”
Uma mulher jovem passa por Laura e pede que ela vá até a sala, antes que a reunião diária comece. Veremos que é a editora dela – Rowan, o papel de Gugu Mbatha-Raw (se eu não estiver enganado). Laura vai até a sala de reuniões carregando seu laptop com o convite que havia acabado de ver.
Pela conversa entre a repórter e a editora, o espectador fica sabendo que uma mulher que Laura havia ouvido para fazer sua reportagem investigativa sobre corrupção havia sido assassinada. – “Eles a afogaram”, diz a moça. “Eles a mataram só porque ela topou falar comigo.”
Fica sabendo também que os romances conturbados de Laura eram de conhecimento das pessoas da redação – inclusive da chefe dela. As duas falam de Ben Morgan, o sujeito de “dois desastres atrás” – ele havia deixado mensagens no celular de Laura.
Rowan diz que ela não precisava ter voltado direto do aeroporto para a redação, sugere que ela tire uma folga. Laura diz que não sabe lidar bem com folgas – e faz uma proposta para sua chefe: – “Acaba de surgir uma coisa que poderia fazer eu recuperar minha fé na humanidade. Anne Lyngstad, sabe? Norueguesa, herdeira do setor naval. Tem leucemia, em estágio avançado. O marido vai criar uma fundação em nome dela. Esta é a parte divertida” – Laura exibe a tela de seu laptop para a editora. – “Ele quer levar os conselheiros no seu iate enorme para uma festa de arrecadação de doações na Noruega. Quer que eu faça a cobertura da viagem, para conscientizar as pessoas.”
– “Deixe eu ver se eu entendi”, diz a editora. – “A coitada adoece, e os bilionários que ela conhece decidem que o câncer é horrível e devem fazer algo. Mas só se você contar como eles são incríveis.”
– “É mais ou menos isso. Eles contam com meu talento jornalístico.”
– “Onde está a matéria nisso aí?” – pergunta a editora.
– “Ah, é um tema de interesse humano em uma época desumana… Você me sugeriu uma folga…”
– “Desde que seja uma folga – não uma licença.”
Laura dá um daqueles sorrisos de que Keira Knightley é capaz: – “Tenho certeza de que o jornalismo investigativo pode sobreviver uma semana sem mim…”
O filme não mostra a editora cedendo ao pedido da repórter – mas ela cede. A tomada seguinte mostra uma lancha levando Laura Blacklock para o gigantesco, imponente, belíssimo iate. Estamos aí com cinco minutos de filme.

Dois encontros com a milionária Anne
Em cinco minutos, o filme apresenta os fatos básicos da trama para o espectador – e consegue, como a Mary reparou de imediato, fazer um belo retrato da protagonista da história.
Laura Blacklock é uma repórter importante, reconhecida, admirada, de um dos principais jornais do Reino Unido e do mundo. Tem plena consciência de que é uma excelente profissional; tem imensa segurança em si mesma. Isso para não dizer que é uma pessoa convencida, petulante, metida. Ao mesmo tempo, no entanto, sua vida pessoal, afetiva, é uma danada de uma zona, um caos – e ela está naquele momento chocada, traumatizada, com o assassinato de uma fonte, uma mulher que falou com ela sobre ladrões que estavam botando a mão no dinheiro de uma ONG dedicada à caridade.
Na chegada ao super-iate, àquele estranho mundo dos bilionários, de cara leva a advertência de uma comissária – e logo em seguida é surpreendida porque o fotógrafo convidado pelo bilionário Richard Bullmer para documentar a viagem dos criadores da Fundação Lyngstad vem a ser… Ben Morgan, o ex-amante, de quem havia se separado de forma nada amigável. O homem de “dois desastres atrás”.
Ben Morgan é o papel de David Ajala (na foto abaixo), jovem e belo ator londrino de ascendência nigeriana que eu não conhecia. Richard Bullmer é interpretado pelo sempre bom Guy Pearce, inglês de nascimento, australiano de criação, drag queen e bicha-louca em Priscilla, a Rainha do Deserto (1994), tira absolutamente honesto da L.A.D.P. em Los Angeles: Cidade Proibida (1997), entre tantos outros bons papéis.
Anne Lynkstad Bullmer, a herdeira da gigantesca fortuna familiar, é interpretada por Lisa Loven Kongsli, norueguesa como sua personagem. Não me lembrei dela ao ver este A Mulher na Cabine 10, mas ela está em dois filmes comentados neste site, Força Maior (2014) e Número 24 (2024).
Acho que não é necessário relatar mais do que já foi falado da trama – a não ser, talvez raspando bem perto no spoiler, dizer que, lá pelas tantas, Anne manda chamar a repórter inglesa para uma conversa na biblioteca do super-iate. Quer a opinião da profissional da imprensa sobre um texto que havia escrito – seu novo testamento, em que dedica toda a sua imensa fortuna diretamente para a Fundação Anne Lynkstad – não deixando nada especificamente para o marido.
Nessa conversa, ela conta para Laura que resolvera parar com toda a medicação. Não havia mais esperança alguma, e então ela decidira que gostaria de sentir tudo, de estar alerta, atenta, e não derrubada, quase fora de seus sentidos, por causa dos remédios.
Um dia depois Laura é chamada de novo para estar com Anne – e ouve dela que a medicação a estava deixando tonta.
Pouco depois disso, durante a noite, Anne ouve gritos na cabine ao lado da sua, sai para o pequeno balcão externo e tem a certeza de um corpo havia sido lançado ao mar naquele momento.

O romance original teve uma sequência uma década depois
Uma bela trama.
The Woman in Cabin 10 não tem créditos iniciais; vemos que “Netflix presents a Sister Production” e o título do filme, em letras vermelhas, maiúsculas, enquanto começa a surgir o rosto de uma Keira Knightley no elevador do prédio do Guardian com uma expressão de cansaço, stress.
Os créditos finais informam que o roteiro é de Joe Shrapnel & Anna Waterhouse e Simon Stone, baseado em uma adaptação de Emma Frost baseada no romance de Ruth Ware. Assim mesmo – aparecem duas vezes a expressão “based on”.
Pelas regras consagradas pelo antigo Screen Writers Guild, o sindicato dos roteiristas depois dividido em dois, o do Oeste e o do Leste, isso aí – em especial o sinal & e a conjunção and – indica que, claro, Ruth Ware escreveu o romance, que foi então adaptado por Emma Frost. Com base nessa adaptação, Joe Shrapnel & Anna Waterhouse escreveram o roteiro juntos, a quatro mãos. Em seguida o diretor Simon Stone pegou aquele roteiro e o reescreveu, deu a ele a forma final.
Isso não é um conjunto de detalhinhos desimportantes, de forma alguma. É uma indicação clara, dada por escrito nos créditos finais, vermelho em cima do preto, de que não foi fácil o trabalho de passar para a linguagem cinematográfica a trama bolada e escrita por Ruth Ware.
Ruth Ware. Escritora inglesa, da classe de 1977, autora de dez romances policiais até aqui. The Woman in Cabin 10, lançado em 2016, foi o segundo deles – e pela breve sinopse apresentada na Wikipedia, fica claro que os principais elementos do livro estão na trama do filme, mesmo após quatro autores mexerem na história.
Fascinante: em 2025, Ruth Ware lançou seu décimo romance policial, The Woman in Suite 11. É uma sequência do livro de quase uma década antes, e mostra Laura Blacklock, agora já casada e mãe de dois filhos, decidindo voltar à carreira de repórter. Ela viaja a um resort luxuoso na Suíça, onde se reencontra com vários dos passageiros do super-iate Aurora Borealis.

O jovem diretor volta ao tema das diferenças de classes
The Woman in Cabin 10 é apenas o quarto longa-metragem do jovem diretor Simon Stone, nascido na Basiléia, Suíça, em 1984, e criado em Melbourne e depois em Cambridge. Seu primeiro longa foi A Filha/The Daughter, de 2015, inspirado em uma peça do norueguês Henrik Ibsen de 1884. Em 2017 filmou para a televisão outra peça de grande autor, Yerma de Federico García Lorca. E em 2021 realizou A Escavação/The Dig, um filme bonito, sensível, baseado em uma história real, com excelentes interpretações de Ralph Fiennes e Carey Mulligan.
Sobre A Escavação, escrevi: “Ao resgatar o caso de como foi descoberta a relíquia arqueológica que passaria a ser chamada de Tesouro de Sutton Hoo, o jovem, extremamente jovem realizador Simon Stone não apenas criou um pequeno grande filme, como deu uma bela contribuição à honrosa luta para atribuir o devido valor às pessoas humildes que fazem avançar a História mas permanecem anônimas, sem o devido reconhecimento.”
E é fascinante notar que um elemento muito importante de A Escavação é a diferença das classes sociais dos dois principais personagens. O mesmo tema que tem presença forte neste A Mulher na Cabine 10.
O filme teve lançamento mundial pela Netflix em 10 de outubro de 2025. Como já foi dito, Mary e eu resolvemos vê-lo poucos dias depois que ele chegou ao streaming, e, assim, ainda há poucas referências a ele. No mês de lançamento, ele estava com nota 5,9 no IMDb, média da avaliação já de 21 mil leitores do site enciclopédico.
No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, a aprovação entre os críticos – com 59 críticas analisadas – era de apenas 29%. Entre os leitores do site, tinha aprovação de apenas 32%,
Acho estranho que a avaliação seja tão ruim. Sem dúvida o filme perde muito no final, quando vira uma aventura de ação, mas os dois terços iniciais são muito bons.
Anotação em outubro de 2025
A Mulher na Cabine 10/The Woman in Cabin 10
De Simon Stone, EUA-Reino Unido, 2025
Com Keira Knightley (Laura Blacklock),
Guy Pearce (Richard Bullmer, o milionário),
Art Malik (dr. Robert Mehta, o médico), Gugu Mbatha-Raw (Rowan), Kaya Scodelario (Grace), Daniel Ings (Adam Sutherland), Hannah Waddingham (Heidi Heatherley), David Ajala (Ben Morgan, o fotógrafo, ex-amante de Laura), David Morrissey (Thomas Heatherley), Gitte Witt (Carrie, a sósia), Christopher Rygh (Lars Jensen), Pippa Bennett-Warner (Karla), John Macmillan (John Addis, o capitão do navio), Paul Kaye (Danny Tyler), Amanda Collin (Sigrid Nilssen), Lisa Loven Kongsli (Anne Lyngstad Bullmer), Ayọ̀ Owóyẹmi-Peters (Izzy, a comissária chefe)
Roteiro Joe Shrapnel & Anna Waterhouse e Simon Stone
Baseado no romance de Ruth Ware
Adaptação Emma Frost
FotografiaBen Davis
Música Benjamin Wallfisch
Montagem Mark Day, Katie Weiland
Casting Jessica Ronane
Desenho de Produção Alice Normington
Figurinos Eimer Ní Mhaoldomhnaigh
Na Netflix. Produção Ilda Diffley, Debra Hayward, CBS Films, Sister Pictures, Gotham Group.
Cor, 92 min (1h32)
**1/2

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