(Disponível na Netflix em 3/2024.)
Rustin, produção norte-americana de 2023, é um destes filmes sobre fatos e pessoas reais que deixam a gente com a sensação de que – apesar de tudo, apesar de tanto horror, apesar de tanta gente reacionária que faz questão de empurrar a vida, o mundo em direção ao passado, aos tempos das trevas, das cavernas – a humanidade, diacho, avança.
Eppur si muove, como teria dito baixinho Galileu Galileu, depois de, para evitar a tortura e a fogueira, ter oficialmente renegado a teoria de que a Terra se move – ao contrário do que queriam os cristãos da Santa Inquisição.
E no entanto se move.
Em 1963 estava em vigência em diversos Estados dos Estados Unidos um regime de segregação racial igual ao apartheid da África do Sul. Em 2013, Barack Obama, o primeiro negro eleito presidente do país, concedeu a Medalha Presidencial ao ativista negro Bayard Rustin.
Não por coincidência, Barack e Michelle Obama são produtores executivos deste Rustin, bela, caprichada produção de 2023.
Eppur si muove.
Tudo sobre como se organizou a Marcha sobre Washington
Razoavelmente bem informados, Mary e eu nunca tínhamos ouvido falar em Bayard Rustin, e assim dá para imaginar que muita gente também não sabia dele. Não sabia que esse cara foi fundamental para a existência e o êxito da maior manifestação popular de toda a História dos Estados Unidos da América, a marcha sobre Washington em 28 de agosto de 1963, o auge da campanha pelos direitos civis.
A gloriosa reunião de 250 mil pessoas no Lincoln Memorial, que acabaria levando à edição, em julho de 1964, do Civil Rights Act, a legislação federal encaminhada pelo governo de Lyndon B. Johnson e aprovada pelo Congresso que finalmente proibiu todas as discriminações com base em “raça”, cor, religião, sexo ou origem.
O marco legal que baniu definitivamente as Leis Jim Crow, as leis dos Estados sulistas que garantiam a segregação racial, igualinho que nem o apartheid.
Rustin conta tudo, tintim por tintim: como se teve a idéia de fazer uma gigantesca manifestação em Washington, como se planejou, como se executou. Disseca como eram divididas as lideranças negras, como foi difícil ir se chegando rumo a um acordo.
No filme, o reverendo Martin Luther King, Jr. é um coadjuvante. E é muito estranho ver como coadjuvante o líder inconteste, a figura maior do movimento pelos direitos civis, o Mahatma Ghandi da luta contra a segregação racial no país que se tem como o farol da democracia, da liberdade, da igualdade de oportunidades, e que mantinha um apartheid até meados dos anos 1960.
Conta-se a história do homem que acabou não tendo o reconhecimento que mereceria da História.
Bayard Rustin – interpretado de forma extraordinária, sensacional, maravilhosa por Colman Domingo – era seguramente avançado demais para aquela primeira metade dos anos 60. Falava demais – era um boquirroto. Era expansivo, jovial. E homossexual.
James Baldwin escreveu, creio que ali mesmo, nos anos 60, que era o homem mais triste do mundo, porque era, ao mesmo tempo, negro, homossexual e norte-americano.
Bayard Rustin, negro, homossexual e norte-americano, não era triste, de forma alguma. Era um homem gay, no sentido mais estrito do adjetivo, o de alegre. Sim, seguramente era gay demais para aqueles tempos. (Sempre é bom lembrar que na civilizadíssima Grã-Bretanha ser gay era crime, dava cadeia, até 1967.)
Não é de se estranhar, portanto, que seu nome não tenha tido nem um milionésimo do reconhecimento do que teve seu grande amigo e até aprendiz Martin Luther King, Jr. (interpretado por Aml Ameen).
Só por contar a história desse homem fantástico o filme do diretor George C. Wolfe já seria importante.
Felizmente, além de importante, esse Rustin é um bom filme.
A abertura do filme é impressionante, forte, bela – e triste
George C. Wolfe abre seu filme com informações para ajudar o espectador a compreender um mínimo do contexto: “1954. A Suprema Corte decidiu que a segregação é inconstitucional”, diz um letreiro, letras brancas sobre fundo negro. “Mesmo assim…”
Um close-up de uma jovem negra com sangue no rosto. Tomada de uma garotinha negra saltitando, segurando uma pasta de escola – protegida por policiais armados. Close-up de uma jovem negra com óculos escuros – dá para perceber, claro, que ela está indo para uma escola em que o fim da segregação acabava de ser imposto. Atrás dela uma moça branca de expressão raivosa xinga – mas não ouvimos as besteiras que ela grita. Estamos ouvindo suaves notas de um piano solo, que realçam a dramaticidade das imagens. Corta e há novo close-up, um hiper super big close-up agora dos óculos escuros – e, refletida nas lentes, uma moça branca esbraveja. Corta, fundo negro, a palavra Rustin, em maiúsculas, ocupa a maior parte da tela.
Mary e eu tínhamos ficado impressionados com a força da abertura do filme. Mas, pô, revendo esse início agora, enquanto faço esta anotação, percebo ainda\ mais claramente como é impressionante, como é forte, como é belo – e profundamente triste. Revoltante.
Depois do título, surge outra data na tela – 1960. Um grupo de líderes negros está discutindo o plano de fazer uma grande demonstração na Convenção Nacional do Partido Democrata que formalizaria a escolha do jovem senador por Massachusetts John F. Kennedy para ser o candidato a enfrentar o republicano Richard M. Nixon nas eleições presidências de novembro.
Close-up de um jovem e belo negro: – “Querem que eu leve cinco mil negros até Los Angeles para atrapalhar a Convenção Democrata? Desculpem. Isso não é para mim.”
O jovem e belo negro – o pastor batista Martin Luther King, Jr., que cinco anos antes, em 1955, havia liderado um boicote aos ônibus de Montgomery, no Alabama, se tornaria o primeiro presidente da Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC), e logo a mais importante figura da luta pela igualdade racial – se levanta para sair da sala em que ocorria a reunião.
Um homem que não estava na mesa das principais lideranças se levanta de um lugar no fundo da sala e se dirige a Luther King com voz alta e gestos largos. É a primeira aparição na tela do homem que é o protagonista da história, o título do filme, Bayard Rustin: – “Quem disse que isso não é para você? Isso não era para você quando assumiu o boicote aos ônibus em Montgomery? Ou falou com grande eloquência quando explodiram a sua casa?”
Luther King responde com voz baixa, calma, suave – a imagem perfeita do ativismo não-violento do homem que liderou a independência da Índia do Império Britânico: – “Esqueceu que eu sou co-pastor da Ebenezer”. (Igreja Batista de Ebenezer, Atlanta, Geórgia.)
Rustin: – “Quando C.L. ouviu você ele me ligou e disse: ‘Bayard, algo mágico está acontecendo aqui.’ Sabe o que ele viu? Uma estrela. E quando ela começa a brilhar mais que as outras, inclusive os líderes negros mais poderosos que vieram antes, eles farão de tudo o que puderem para apagar sua luz, e colocar você em seu lugar.”
E em seguida: – “Amigo, uma das minhas maiores alegrias é ver sua ascensão. Precisamos que nos lidere em Los Angeles, onde vamos fazer com que Kennedy e todo o Partido Democrata compreendam que, a menos que apoiem o nosso povo, que se posicionem contra a segregação, nosso povo não vai apoiá-los. Faça isso, Martin. Assuma seu poder.”
Termina a sequência, e Rustin e Luther King estão em uma lanchonete conversando, rindo. No meio da conversa, Rustin pergunta como estão Coretta e os garotos. (Coretta Scott King é interpretada por Carra Patterson,) Luther King responde que eles vão bem, e que os filhos sempre perguntam pelo Tio Bayard.
Muitas siglas, várias linhas diferentes no movimento negro
“Quando C.L. ouviu você…”
Diabo, quem ou o que seria C.L.?
Muitas siglas são faladas ao longo dos 106 minutos de Rustin. Não me lembro se a SCLC, de South Christian Lidership Conference) é citada, mas a NAACP, essa é falada diversas vezes, como se fosse uma sigla que todo mundo sabe desde sempre, como ONU ou Fifa. NAACP é National Association for the Advancement of Colored People, Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor. A AFL-CIO, a poderosíssima Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais, também é citada, naturalmente.
O início do filme pode deixar o espectador um tanto confuso, com a citação de tantas organizações sociais. O que fica claríssimo como água da fonte, desde sempre, é que o movimento em defesa dos direitos dos negros e contra a segregação racial tinha diversas linhas, diversas tendências, e o entendimento entre elas era algo bem difícil.
Rustin demonstra com clareza que os líderes da NAACP, a maior e mais abrangente organização da população negra, não viam com bons olhos a ascensão fulminante de Martin Luther King, Jr – e abominavam a figura de Bayard Rustin. O primeiro era uma ameaça à proeminência da própria NAACP. O segundo era tido como um agitador, um radical – além daquela coisa desagradabilíssima, aos olhos dos líderes da associação, de ser homossexual assumido.
Outro líder negro que não gostava nada nem de Luther King nem muito menos de Bayard Rustin era Adam Clayton Powell Jr. (interpretado por Jeffrey Wright), ele também pastor, eleito deputado federal basicamente pela comunidade do Harlem, o tradicional bairro dos negros de Nova York.
Diversas correntes, diversas linhas – algo presente em vários, vários movimentos. Como dizem alguns ambientalistas, se houver uma reunião de cem ambientalistas, haverá pelo menos umas 12 diferentes tendências. O mesmo vale para a esquerda. O PT, por exemplo, tem 16 tendências distintas, cada uma com nome e sobrenome. Não é exagero, nem piada: está na Wikipedia.
O que Rustin mostra é que o movimento dos negros dos Estados Unidos naquela primeira metade da década de 60 – que foi absolutamente fundamental para a luta de todos – era um gigantesco balaio de gatos, uma fantástica fogueira das vaidades.
Outra característica que o filme mostra muito bem – e, cacete, como é bom ver isso! – é que o movimento pelos direitos civis incluía muitos brancos. Não era um ambiente que, ao defender os negros, se antagonizava com os brancos. Não era um “racismo ao contrário” – como o que passaria a existir nos Estados Unidos nas últimas décadas, em um movimento imitado no Brasil, ao ponto de lideranças negras dizerem que miscigenação é uma forma de genocídio dos negros.
Sempre há ativistas brancos nas sequências que mostram as pessoas reunidas por Bayard Rustin nos preparativos para a grande Marcha Sobre Washington.
Mais ainda: Tom, o jovem ativista que era o namorado firme de Rustin, era branco (o papel de Gus Halper).
É uma maravilha ver isso, negros e brancos trabalhando juntos. Quem gosta desse negócio de raça pura é nazista.
Um cineasta com especial talento para dirigir atores
George C. Wolfe, diretor, Colman Domingo no papel título. Não conhecia nenhum dos dois.
Nascido no interior do Kentucky em 1954, George Costello Wolfe formou-se em Redação Dramática/Teatro Musical pela Universidade de Nova York, começou a carreira como dramaturgo, e trabalhou um bom tempo no teatro antes de se voltar para o cinema. O que provavelmente explica o fato de que os números de sua filmografia não são grandes: tem cinco títulos como ator, quatro como roteirista e nove como diretor.
É muito interessante: concentrou seu trabalho como realizador em filmes que, como Rustin, relatam histórias reais ligadas ao universo dos negros. Em 2017, lançou A Vida Imortal de Henrietta Lacks, a história da mulher que foi doadora involuntária de células cancerosas, mantidas em cultura pelo cientista George Otto Gey para criar a primeira linhagem celular imortal jamais obtida.
É dele também A Voz Suprema do Blues, sobre uma sessão de gravação especialmente tensa da cantora Ma Rainey, tida como a Mãe do Blues (1886-1939), na Chicago de 1920. Ma Rainey é interpretada – com absoluto brilho – por Viola Davis, que recebeu indicação ao Oscar de melhor atriz; Chadwick Boseman foi também indicado ao Oscar de melhor ator.
Wolfe – é inegável – é daqueles realizadores com especial talento para a direção de atores, à la Elia Kazan.
Por sua interpretação como Bayard Rustin. Colman Domingo foi indicado ao Oscar, ao Bafta, ao Globo de Ouro e aos prêmios Critics Choice e do Festival de Chicago. A atuação do ator é de fato sensacional, esplendorosa, impressionante.
Colman Domingo. Vamos lá. Da Fildélfia, classe 1969, 62 títulos na filmografia em março de 2024. Entre eles, Lincoln (2012), O Mordomo da Casa Branca (2013), Selma: Uma Luta Pela Igualdade (2014), o já citado A Voz Suprema do Blues (2020) e a refilmagem de A Cor Púrpura, em que tem o principal papel masculino, o do Mister, o marido machista e brutal da protagonista Cellie – papel que, na obra de Steven Spielberg de 1985, foi de Danny Glover.
Ainda que com atraso, uma luz sobre personalidade importante
Rustin teve 67 indicações a prêmios no total, e obteve 12 vitórias em diversos festivais e premiações de associações.
Entre 12 mil leitores do IMDb, ficou com a média de 6,5 em 10. Nota baixa para um filme tão bom, me parece.
No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, os números são bem melhores. O filme teve 84% de aprovação – média das avaliações de 107 críticos consultados – e exatamente o mesmo número, 84%, na média das avaliações dos leitores do site.
O “consenso dos críticos” foi o seguinte: “Colman Domingo está sensacional em Rustin, uma movimentada cinebiografia que traz uma luz atrasada sobre um notável legado de serviço público”.
É isso. Apesar das ondas de retrocesso, de reacionarismo, apesar de monstruosidades tipo Trump, Bolsonaro, Putin, Netanyahu, a Terra se move, a História avança. A História seguramente não é “um carro alegre cheio de um povo contente que atropela indiferente todo aquele que a negue”, como na tradução de Chico Buarque para a ufanista “Canción por la Unidad de Latino America” de Pablo Milanés, mas ela avança, sim.
Aos trancos e barrancos, mas avança.
Anotação em março de 2024
Rustin
De George C. Wolfe, EUA, 2023
Com Colman Domingo (Bayard Rustin)
e Aml Ameen (Martin Luther King, Jr.), Glynn Turman (A. Philip Randolph, líder sindical), Chris Rock (Roy Wilkins, o líder da NAACP), Gus Halper (Tom, o jovem namorado de Rustin), Johnny Ramey (Elias Taylor, o jovem pastor por quem Rustin se apaixona), CCH Pounder (Dra. Anna Hedgeman, escritora, educadora, política), Michael Potts (Cleve Robinson, presidente do Comitê Administrativo da Marcha), Audra McDonald (Ella Baker),Jeffrey Wright (Adam Clayton Powell, deputado por Nova York), Lilli Kay (Rachelle), Jordan-Amanda Hall (Charlene), Jakeem Powell (Norm Hill), Ayana Workman (Eleanor Holmes, deputada pelo D.C.), Grantham Coleman (Blyden), Jamilah Rosemond (Dorie Ladner), Jules Latimer (Joyce Ladner), Maxwell Whittington-Cooper (John Robert Lewis, mais tarde deputado pela Geórgia),Frank Harts (Jim Farmer), Kevin Mambo (Whitney Young), Carra Patterson (Coretta Scott King, a mulher do pastor Martin Luther King, Jr.). Da’Vine Joy Randolph (Mahalia Jackson), Adrienne Warren (Claudia Taylor), Bill Irwin (A.J. Muste), Rashad Demond Edwards (Medgar Evers, ativista no Mississipi, assassinado)
Roteiro Julian Breece e Dustin Lance Black
História Julian Breece
Fotografia Tobias A. Schliessler .
Música Brandford Marsalis
Montagem Andrew Mondshein
Casting Cherelle Cargill, Avy Kaufman
Desenho de produção Mark Ricker
Figurinos Toni-Leslie James
Na Netflix. Produção Bruce Cohen, Tonia Davis, George C. Wolfe,
Higher Ground Productions.
Cor, 106 min (1h46)
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