(Disponível na Netflix em maio de 2024.)
O Último Vagão, produção mexicana de 2023, é daqueles filmes carregados de boas intenções e feitos na medida certa para emocionar as pessoas de bem. Fala de educação, da necessidade da educação, de injustiça social, da generosidade e da solidariedade que existe entre as pessoas pobres, de vida difícil, dura.
É a história de um garoto aí de uns 10 ou 11 anos de idade que ainda não havia tido a oportunidade de estudar: o pai é operário de uma ferrovia, e está sempre mudando de cidade em cidade, à medida que a ferrovia vai avançando pelo interiorzão do México. Acontece de a família ficar por um período maior em uma pequenina cidade, e pela primeira vez na vida o garoto Ikal (o papel de Kaarlo Isaac, um encanto, uma revelação, uma maravilha) tem a oportunidade de estudar.
E é uma oportunidade de ouro. A escola é paupérrima, funciona em um vagão de trem, mas a professora, Georgina (o papel da ótima Adriana Barraza), é a simpatia, a amabilidade, a bondade em pessoa. E se encanta com Ikal, percebe que o garoto é inteligente, sensível – chão bom, terreno que pode dar os melhores frutos, caso receba os nutrientes que vêm da educação.
Não é só para os filmes de Hollywood que funciona aquela lei de que é preciso sempre haver um female interest, uma figura feminina para dar charme à história, e então temos que na escola da professora Georgina há uma garotinha linda, simpática, maior gracinha, chamada Valeria (o papel de Frida Sofía Cruz Salinas, outra criança absolutamente encantadora).
É bom que haja também uma pessoa para competir com o herói da história, enfrentá-lo, para criar um clima de rivalidade, desafio, tensão, e esse é o papel de Chico (Diego Montessoro), um garotão bem mais alto e mais forte do que Ikal. Chico se diz o líder da classe, e logo quer impor sua autoridade sobre o garoto recém-chegado. É rebelde, brigão, se insurge sempre que pode e do jeito que pode contra o patrão do pai, o homem mais rico do pedaço. Sofrerá as consequências disso, é claro.
Só há boas intenções neste O Último Vagão; é um filme inspirador, e então veremos que, quando Chico precisa de ajuda, todos o ajudam, inclusive e principalmente Ikal. A solidariedade entre as pessoas da classe trabalhadora é sempre maior do que as possíveis rixas.
Um elenco homogeneamente muito bom, bem dirigido
O filme se baseia no romance de Ángeles Doñate, jornalista e escritora espanhola nascida em Barcelona em 1971. O livro, lançado em 2019, foi saudado pelo site Lecturalia como “uma ode aos professores comprometidos e com vocação, capazes de se sacrificar pelo ensino e deixar sua impressão digital em seus alunos”.
Ángeles Doñate conhece bem de perto seu tema: como registra esse site dedicado à literatura e aos livros, Ángeles Doñatae “dedica parte de seu tempo a ensinar a ler e a escrever pessoas adultas, como voluntária”.
O romance foi adaptado para o cinema pelo roteirista e produtor mexicano Javier Peñalosa, co-autor do roteiro de O Eterno Feminino/Los Adioses (2017), sobre a escritora, poeta, diplomata e feminista mexicana Rosario Castellanos (1925-1974).
O roteiro trocou o sexo do mestre que é fundamental na vida daquelas crianças. No romance, é um homem. No filme, é essa Georgina, mulher iluminada, daquele tipo que, segundo Bertold Brecht, são os imprescindíveis.
Ainda não vi nenhum dos outros filmes do diretor Ernesto Contreras, um realizador que coleciona 23 prêmios, fora outras 16 indicações, mas, pelo que demonstra neste O Último Vagão aqui, dá para dizer, com segurança, que tem um especial talento para dirigir atores. O filme tem muitas qualidades, inclusive a capacidade de emocionar os espectadores – Mary chorou em uma sequência climática quase ao final da narrativa, e no IMDb há vários comentários de leitores que se dizem emocionados com a obra.
Na minha opinião (que vale tanto a de qualquer espectador, como gosto sempre de lembrar), a maior das qualidades do filme são as atuações. É impressionante como todo o elenco está muito, muito bem.
De Adriana Barraza, que faz a doce professora Georgina, seria mesmo de se esperar uma bela interpretação. Adriana é uma veterana com 70 títulos como atriz e 11 como diretora; venceu 14 prêmios, fora outras 20 indicações, uma delas ao Oscar de melhor atriz coadjuvante por Babel (2006), o filmaço de Alejandro G. Iñárritu com elenco multiestelar.
Mas, meu, e esses garotos Kaarlo Isaac e Frida Sofía Cruz Salinas (na foto abaixo), que fazem Ikal e Valeria? Que maravilhosas são as atuações dos dois!
Papel importante coube também a Guillermo Villegas, que aparece nos créditos como Memo Villegas. É bem jovem – nasceu em 1987, e estava portanto com apenas 36 anos em 2023, quando foi lançado este O Último Vagão aqui. Bem jovem e, parece, está com tudo: o sujeito trabalhou em sete longa-metragens ao longo de 2023! Em meados de maio de 2024, havia três produções estreladas por ele – duas séries de TV e um filme – para serem lançadas.
Memo Villegas faz o papel de Hugo Valenzuela, um inspetor de ensino de uma secretaria provincial ou do Ministério da Educação (não gravei se é um organismo de uma das províncias mexicanas ou da federação), que surge lá pela metade da narrativa, em ações paralelas à principal trama, a que acompanha o garoto Ikal.
Hugo Valenzuela é encarregado por seus superiores da ingratíssima, duríssima missão de visitar pequenas escolas rurais – como aquela em que Ikal estudou – para comunicar que elas serão fechadas.
Bem no final da narrativa, o roteiro revela um truque que, ao menos para mim e para Mary, conseguiu ser surpreendente, inesperado.
“Aventura com um toque de mágica de conto de fadas”
Encontro uma crítica delicada sobre o filme em um site chamado Art Here, Art Now, assinada por Sophie Hacsek. Eis alguns trechos:
“Where The Tracks End é um delicioso filme mexicano que captura a essência do encanto e da aventura da infância ao mesmo tempo em que trata de importantes questões sociais. Dirigido por Ernesto Contreras (de Párpados Azules), o filme tem pesada influência dos trabalhos de Jules Verne, resultado em uma história autenticamente mexicana de aventura com um toque de mágica de conto de fadas.
“No cerne de Where The Tracks End está a história de Ikal e sua família da classe trabalhadora. Vivendo em vagões e constantemente viajando de um vilarejo empoeirado para outro, eles representam a resiliência e a força de muitas famílias mexicanas que levam uma vida nômade. Apesar de sua pobreza, sua verdadeira riqueza está na paz, no amor e harmonia entre eles. O filme admiravelmente demonstra o valor da dinâmica de uma família do bem no meio de circunstâncias desafiadoras e trabalho perigoso. Nós, dos países do Primeiro Mundo, deveríamos tomar essas famílias como exemplo.”
Anotação em maio de 2024
O Último Vagão/El Último Vagón
De Ernesto Contreras, México, 2023
Com Kaarlo Isaac (Ikal),
Adriana Barraza (Georgina, a professora),
Guillermo Villegas (Hugo Valenzuela, o inspetor de ensino),
Frida Sofía Cruz Salinas (Valeria, a garotinha da escola),
Diego Montessoro (Chico, o garoto que se diz líder da turma), Ikal Paredes (Tuerto, o garoto legal), Tete Espinoza (Lucero), Jero Medina (Tomas), Gabriela Cartol (Mirna), Nova Coronel (Diamantina), Leonardo Alonso (capataz), Fátima Molina (Valeria adulta), Blanca Guerra (Maga Etérea, do circo)
Roteiro Javier Peñalosa
Baseado no romance de Ángeles Doñate
Fotografia Juan Pablo Ramírez
Música Gus Reyes, Andrés Sánchez
Montagem Jorge Macaya
Direção de produção Antonio Muño-Hierro
Figurinos Laura García de la Mora
Produção Maria Jose Cordova, Alejandro Cortés Rubiales, Rafael Ley, Mónica Vértiz, Woo Films, Netflix.
Cor, 95 min (1h35)
**1/2
Título nos EUA: “Where The Tracks End”.