Noites de Bruma / Gas-Oil

 

 

 

 

3.0 out of 5.0 stars

(Disponível no YouTube em 3/2024.)

Um homem comum, um caminhoneiro honesto, trabalhador, benquisto por todos, se vê envolvido em um caso policial. Sem ter feito absolutamente nada de errado, torna-se para a polícia um suspeito e para um grupo de bandidos um alvo a ser perseguido e quem sabe abatido.

Essa é a trama básica de Gas-Oil, no Brasil Noites de Bruma, drama policial francês de 1955 – um dos 14 filmes em que o monstro-sagrado Jean Gabin foi dirigido por Gilles Grangier. Mas a característica mais marcante do filme, para mim, é o fato de que a trama policial muitas vezes parece secundária, acessória. Em boa parte dos 92 minutos, o que vemos é o dia-a-dia desse homem, Jean Chape, seu trabalho, as viagens seguidas em seu grande caminhão, o relacionamento dele com os amigos e, em especial, com a namorada, Alice, uma professorinha do primário que vive numa casa anexa à école communale em que dá aula.

E aí é que está a cereja do bolo: Alice vem na pele de Jeanne Moreau.

Jeanne Moreau é de 1928; estava, portanto, com 27 aninhos quando foi lançado este Gas-Oil. Já não era uma novata: havia começado a carreira no cinema em 1949, aos 21 anos, e havia feito nada menos que 14 filmes. Em muitos deles, é verdade, tinha tido participações pequenas – como em Grisbi, Ouro Maldito (1954), de Jacques Becker, em que o protagonista também era interpretado por Jean Gabin. Mas já começava a ter papéis importantes, como em Julieta (1953), de Marc Allégret, contracenando com Jean Marais, e Os Amores de uma Rainha (1954, de Jean Dréville, em que fazia a protagonista, a rainha Margot.

Três anos mais tarde, em 1958, estrelaria Ascensor para o Cadafalso e Os  Amantes, ambos de Louis Malle – e quando começou a grande revolução do cinema francês, a nouvelle vague, a partir de 1959, já era uma das maiores estrelas européias.

Pode ser coisa de fã apaixonado, mas achei que a câmara do diretor Gilles Grangier e seu diretor de fotografia Pierre Montazel não soube aproveitar bem a beleza e a expressividade do rosto da jovem Jeanne Moreau. Não há um único close-up do rosto dela. E olhe que há pelo menos dois momentos em que a professorinha Alice sorri – e quando Jeanne Moreau sorri, o mundo fica muito mais belo.

O filme vai mostrando o cotidiano do protagonista

É um policial, sim. Mas, mais do que um policial, Gas-Oil é um filme sobre o dia-a-dia de pessoas comuns, gente “normal”, trabalhadora, classe média média no interior da França de meados dos anos 50, apenas uma década – diacho, é preciso sempre levar isso em conta! – após o fim da Segunda Guerra Mundial, em que o país da Liberté Fraternité Egalité viveu sob as botas dos invasores nazistas, sem nenhuma liberdade nem fraternidade nem igualdade.

Um filme sobre o dia-a-dia de pessoas comuns no interior de uma França que se reaprumava depois do domínio nazista.

Os créditos iniciais são mostrados sobre longo plano geral feito por uma câmara colocada atrás de veículo em movimento em uma longa estrada de província, de interior. E as primeiras sequências após os créditos vão nos mostrando detalhes do cotidiano desse caminhoneiro Jean Chape. O despertador toca às 5 para as 5 da madrugada. O homem se levanta, senta na cama, bota os pés em um chinelo, se veste – camisa xadrez em cima de camiseta, jardineira de jeans –, vai até a cozinha, bota no fogão coisas para seu petit déjeneur, coloca um casaco em cima dos ombros, vai até a garagem, abre a tampa do motor, verifica o óleo, checa mais algumas coisas de que não faço a menor idéia, fecha de novo a tampa, sobe na boléia, dá a partida, desce, volta para a cozinha…

Sim, sim: fazia frio, e era preciso deixar o motor esquentando.

Chega um senhorzinho, amigo e vizinho, morrendo de frio, é bem recebido por Jean – e o espectador percebe que aquilo é habitual, acontece sempre. O senhorzinho, Lucien (o papel de Camille Guérini), ele também um caminhoneiro, se senta à mesa da cozinha, Jean vai servindo alimentos para ele. Algumas frases da conversa dos dois amigos nos soam especialmente significativas hoje, quase 70 anos depois, o Planeta dando sinais inequívocos de que não aguenta mais:

– “Que frio!”, diz Lucien. Nevou esta noite. Em junho! Você pode acreditar nisso?”

Daí a pouco chega o filho de Lucien, Pierrot (o papel de Marcel Bozzuffi). Veremos que Pierrot trabalha com Jean, divide com ele o volante do caminhão. Os três conversam ali na mesa da cozinha de Jean. Pai e filho não se entendem, discutem – Jean só observa.

Depois do café da manhã, Jean tira o caminhão de sua garagem. Vão enfrentar 500 quilômetros até Paris para entregar uma carga.

Um filme – insisto – sobre o dia-a-dia de pessoas comuns, gente “normal”, trabalhadora, classe média média no interior da França de meados dos anos 50.

Um absoluto acaso muda a vida do personagem

Quando estamos com 10 minutos de filme, o caminhão dirigido por Jean, com Pierrot sentado ao lado, passa por uma placa que diz que Paris está a 93 quilômetros. E aí surge uma sequência que não tem absolutamente a ver com Jean Chape e seu mundo. Um grupo de cinco ou seis bandidos, em dois carros, persegue e cerca um carro em que um homem carregava uma pasta com uma grande fortuna – vai se falar muito no número 50 milhões. O homem é morto a tiros, os bandidos fogem levando a pasta no carro de um deles.

Quando o filme está com 27 minutos, vemos que um carro pára numa estrada à noite, e alguém joga no asfalto o corpo de um homem morto. O sujeito que se livrou do corpo sai do carro e se manda do lugar.

E aí acontece o que é o ponto central da trama policial deste Gas-Oil.

Jean Chape, depois de passar a noite na casa de sua namorada, a professorinha primária Alice, havia saído de lá pouco depois das 5 da manhã e pegado a estrada com seu caminhão. Pouco depois das 5 da manhã, noite fechada, chuva – e, depois de uma curva, Jean percebe que seu caminhão passou por cima de um volume.

Ele desce com uma lanterna para ver o que era – e era um corpo de homem. Examina, mexe.

Sim, há toda uma boa trama policial em Gas-Oil. Um homem trabalhador, absolutamente inocente, que, por um desses desígnios absurdos, incompreensíveis, de Deus, ou do destino, se vê envolvido em um crime. Algo tipo O Homem Errado, que Alfred Hitchcock faria em 1956. exatamente um ano depois deste filme aqui, em que o personagem interpretado por Henry Fonda é confundido com um ladrão armado.

E Gas-Oil tem o ator que era, no cinema francês, algo assim como em Hollywood seria a soma, a junção de Henry Fonda, John Wayne, Gary Cooper e James Stewart. Forte, imenso, simpático, bom caráter, gente do povo, gente boa.

Pois é. Uma boa trama policial – e Jean Gabin e Jeanne Moreau.

Mas, para mim, Gas-Oil é sobretudo um filme sobre o dia-a-dia de pessoas comuns, gente “normal”, trabalhadora, classe média média no interior da França de meados dos anos 50.

E nisso aí ele é uma maravilha.

“As mulheres cozinhavam, limpavam, passavam…”

O relacionamento do caminhoneiro Jean e a professorinha Alice é fascinante.

Não moram juntos – cada um tem sua casa. Mas dormem juntos, sim, na boa. Alice menciona que os vizinhos todos sabem da vida dos dois – mas não fala com raiva, vergonha, embaraço. Não, não, absolutamente. Não se importa, de forma alguma, com o fato de ser solteira e abrigar o namorado em casa durante algumas noites.

Meu, era 1955!

Nas últimas décadas, isso é a coisa mais absolutamente normal do mundo – mas não era assim nos caretíssimos anos 50. No Brasil, nos Estados Unidos, mulher solteira ter amante era quase um crime – uma ofensa à sociedade, um absurdo, um pecado mortal. Mulheres assim “não prestavam”, eram “vagabundas”.

No cinema americano, ainda estava em vigor o Código Hays, a série de regras de censura admitidas por todos os estúdios. Falar de sexo fora do casamento era algo em princípio proibido – só admitido em alguns poucos casos.

E este drama policial francês aqui trata o tema com a maior naturalidade do mundo.

Mais ainda: discute-se a liberdade de ação da mulher, quase uma década antes do movimento feminista mostrar sua força.

Há um sensacional, extraordinário diálogo entre Jean e Alice sobre casar ou não casar, morar junto ou não.

Estamos com uns 23 minutos de filme. Jean está na casa da namorada – levou para ela um presente, uma negligée linda. Estão fazendo um lanche.

Ele: – “Se você viesse comigo, em vez de ficar nesse lugar esquecido…”

Ela: – “E daí?”

Ele: – “Bem… Eu comeria melhor…”

Ela: – “Eu gosto do seu lado romântico. Cheio de mistérios.”

Ele: – “Brincadeira à parte, me pergunto por que você fica aqui. Não me diga que as crianças não têm ninguém mais para ajudá-las na escola. Você devia vir morar comigo. E em dois anos eu pararia de dirigir…”

Ela: – “E em mais dois anos você odiaria ter abandonado seu trabalho.”

Ele: – “Claro, a perspectiva de viver comigo…”

Ela: – “Eu não hesitaria em viver com você. E você sabe. Só que muitas vezes você não estaria em casa. E quando estivesse, nunca estaríamos sozinhos. E quanto a seus amigos? Ahn? Eu conheço você muito bem. Eu viveria entre dois extremos – uma casa cheia e uma casa vazia. O restaurante ou a sala de espera.”

Ele: – “Você nunca está feliz.”

Ela: – “Ao contrário! Sou feliz como estou agora. Seria mais feliz se visse você mais vezes.”

Ele: – “Não é verdade que você esteja feliz. Você seria a primeira mulher a ser sempre feliz. Mas não… A senhora tem estudos. A senhora quer preservar a sua independência. A senhora é muito moderna. Era uma vez as mulheres que ficavam em casa. Elas cozinhavam, limpavam, passavam e lavavam os pratos. Hoje em dia, votam e lêem romances policiais.”

Ela: -“Se em vez de marido eu arrumasse um amante, seria para me divertir… Eu sempre digo que o pecado não compensa.”

E daí a pouquinho, já no quarto, se preparando para deitar, ele botando o despertador dela para 5 para 5 da madrugada…

Ela: – “Perfeito. Além de tudo eu tenho que acordar de madrugada.”

Ele: – “Eu tenho que carregar verduras às 5 horas.”

Ela: – “Cinco horas? Fantástico. Além de não ser mais muito jovem, é rude, mal-humorado,,. Me pergunto por que eu te amo.”

Ele: – “Porque eu sou bonito.”

Que delícia de diálogo…

Algumas horas depois, antes de o Sol se levantar, o caminhão de Jean passa por cima do homem morto largado pelo bandido no meio da estrada.

O público gostava muito mais do diretor do que a crítica

         Gas-Oil. Demorei para aprender o que significa essa expressão um tanto estranha que é o título original. Pois é pura e simplesmente óleo diesel – o combustível fundamental para o motor dos caminhões. O Francês usa gas-oil, mas tem uma palavra adaptada do original inglês, gazole – e em Português também existe gasóleo, um sinônimo de diesel, de que eu jamais tinha ouvido falar até agora!

Os créditos iniciais não trazem a palavra “scénario”, roteiro. Depreende-se que é de autoria de Gilles Grangier e Michel Audiard, seu colaborador em diversos e diversos roteiros. Mas o que os créditos iniciais dizem é o seguinte: “Baseado no romance Du Raisin dans le Gas-Oil, de Georges Bayle” – e até se menciona que o livro foi editado pela Gallimard, talvez para realçar que é obra de respeito. “Adaptação de Michel Audiard, com a colaboração de Gilles Grangier, diálogos Michel Audiard.”

Georges Bayle, 1918-1987 – aprendo agora – não foi um autor de obra vasta. Bem ao contrário: além de Du Raisin dans le Gas-Oil, de 1954, publicou apenas um outro romance, Les Déserteurs.

Os filmes de Gilles Grangier tinham muito sucesso popular – e certamente a pecha de “autor de filmes populares” é um dos motivos que explicam seu insucesso entre os críticos. O grande estudioso e crítico Jean Tulard, em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, dedica pouquíssimas linhas a Grangier. Traz a relação de seus filmes – e a lista dos títulos dos filmes é umas cinco ou seis vezes maior que as linhas que falam do realizador e sua obra. Transcrevo:

“Alguns bons filmes policiais (Danger de Mort, Assassinato em Montmartre, Barragem do Vício, Un Cave) redimem a mediocridade do conjunto (A Velha Guarda, O Marido de Minha Mulher) de uma produção desprovida de toda e qualquer ambição, mas de sucessos comerciais.”

Mas o realizador tem defensores. Um deles é o grande Bertrand Tavernier, que afirmou: “Gilles Grangier é um diretor que qualificamos de artesão – em tudo que essa palavra tem de nobre, e não de restritivo.”

Diz de Gas-Oil o Guide des Films de Jean Tulard: “Um ‘policial’ costurado a mão. É verdade de Grangier não trabalha com renda, nem Gabin tem muita fineza, mas o tecido é sólido. O filme ainda se mantém.”

Concordo perfeitamente com esta última frase. O filme ainda se mantém. É – repito de novo – um fascinante retrato da vida de gente simples no interior da França em meados dos anos 1950. E como policial é, sim, um filme sólido. A sequência do clímax final – diversos, diversos caminhões, em várias estradas, cercando o carro dos bandidos – é impressionante, e executada de forma maravilhosa.

Anotação em março de 2024

Noites de Bruma/Gas-Oil

De Gilles Grangier, França, 1955

Com Jean Gabin (Jean Chape),

Jeanne Moreau (Alice),

Gaby Basset (Camille Serin), Simone Berthier (Annie, uma servente), Charles Bouillaud (policial), Marcel Bozzuffi (Pierrot Ragondin), Robert Dalban (Félix), Albert Dinan (Émile Serin), Gilbert Edard (comissário de polícia), Camille Guérini (Lucien Ragondin), Guy Henry (Jojo, caminhoneiro), Roger Hanin (René Schwob), Bob Ingarao (um gângster), Jean Lefebvre (um motorista), Lisette Lebon (Mauricette, uma servente), Jacques Marin (um policial), Germaine Michel (Maria Ragondin, a mãe de Pierrot), Albert Michel (o carteiro), Marcel Pérès (o barbeiro)

E, em participações especiais, Henri Crémieux (o primeiro comissário), Ginette Leclerc (Madame Scoppo)

Baseado no romance “Du Raisin dans le Gas-Oil”, de Georges Bayle

Adaptação de Michel Audiard, com a colaboração de Gilles Grangier

Diálogos Michel Audiard       

Fotografia Pierre Montazel      

Música Henri Crolla

Montagem Jacqueline Thiédot

Direção de arte Jacques Colombier

Produção Jean-Paul Guibert, Intermondia-Films

P&B, 92 min (1h32).

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Título nos EUA; Hi-Jack Highway

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