(Disponível no YouTube em 8/2023.)
Em 1948, seis anos depois de ter interpretado o herói antinazista Victor Laszlo em Casablanca, Paul Henreid resolveu produzir um filme em que ele pudesse brilhar. Fez não apenas o papel principal, mas dois, de dois sósias – um bandido espertíssimo, inteligentíssimo, na verdade um super-homem, e um psicanalista rico e famoso.
Há quem goste de A Cicatriz/Hollow Triumph, uma produção fora dos grandes estúdios, dirigida – segundo os créditos e os cartazes – pelo húngaro Steve Sekely. Consta que Sekely e Henreid se desentenderam, e o ator e produtor assumiu também a direção, embora os créditos tenham apenas o nome do primeiro.
Eis alguns títulos de comentários de leitores no IMDb, com a nota de 1 a 10 dada por eles:
* “Excelente thriller hard-boiled de dupla identidade no gênero noir”. Nota 8.
* “Irônico filme noir.” Nota 8.
* “Grande surpresa entre os filmes de baixo orçamento.” Nota 9.
* “Melodrama noir surpreendentemente bom.” Nota 7.
* “Um final poderoso.” Nota 8.
* “Sekely dirige uma muitas vezes esquecida obra-prima noir.” Nota 9.
Não há, é claro, uma unanimidade entre os leitores que comentaram o filme no grande site enciclopédico. Um leitor usa o adjetivo de um dos dois títulos originais, Hollow Triumph, triunfo raso, e diz “Raso mesmo”. Um outro abusa da ironia: “Na próxima vez que você fizer uma cicatriz no rosto, cuidado para cortar do lado certo.” É que o bandido-super-homem Johnny Muller, um dos papéis de Paul Henreid, corta seu próprio rosto do lado errado.
O filme teve dois títulos. Foi lançado como Hollow Triumph, e depois mudaram para The Scar, a cicatriz.
“Tenso melodrama”, “memorável”…
Não há apenas espectadores entre os apreciadores do filme – os críticos também gostaram do troço. Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Tenso melodrama de assassino assumindo a identidade de um sósia doutor. Retitulado como The Scar.”
O guia de Steven H. Scheuer igualmente dá 3 estrelas em 4, e faz uma sinopse maior, com afirmações um tanto estranhas: “Um gângster consegue uma nova cara, e uma garota faz uma nova personalidade para combinar com ela, mas tarde demais, porque ele tem que pagar pelo que fez. Melodrama cheio de suspense.”
Huuuum… Não é que o gângster consegue propriamente uma nova cara. A cara dele é quase absolutamente idêntica à do outro homem – a única diferença é que o psicanalista tem a cicatriz, e então o gângster corta seu próprio rosto para que não haja mais diferença alguma… E a garota – Evelyn Nash, a secretária do dr. Bartok, interpretada pela linda Joan Bennett – não cria propriamente uma nova identidade… Mas vá lá, é o que diz o guia de Steven H. Scheuer, e eu em geral gosto muito dele.
O guia de Mick Martin e Marsha Porter se entusiasmou com o filme, ao qual deu 4 estrelas em 5: “Os fãs dos filmes noir hardboiled vão querer ir atrás deste menos conhecido mas memorável exemplo do gênero. Paul Henreid faz dois papéis: um jogador fugindo da polícia…”
Ahnn… Aí é erro mesmo, erro claro.
Aproveito então para apresentar os fatos básicos da trama. Johnny Muller, o protagonista da história, não está fugindo da polícia, e não é um jogador – é um bandido, um bandido educado, que havia estudado medicina e psicologia, mas também já havia sido preso algumas vezes por diversos crimes. Ao ser solto mais uma vez, no início da narrativa, reúne um bando de conhecidos que o seguem como a um guru, e os convida, ou melhor, os intima a participar com ele do assalto a um cassino.
O bando consegue fazer o caixa do cassino esvaziar a banca na boa, na maior tranquilidade, e foge em dois carros; Johnny e o comparsa Marcy (Herbert Rudley) conseguem escapar da perseguição dos capangas do mafioso dono do cassino, Stansck (Thomas Browne), mas o segundo carro, com uns três ou quadro outros bandidos, é alcançado – e Stansck fica sabendo da identidade dos dois que haviam conseguido fugir.
Mafioso roubado não perdoa, e logo Marcy, que havia fugido para o México, é encontrado morto lá.
É aí que, na sua fuga dos capangas de Stansck, Johnny por acaso fica conhecendo um psicanalista que é a sua cara – e resolve virar o psicanalista. Assumir a identidade do psicanalista.
Volto ao texto do guia de Mick Martin e Marsha Porter:
“Os fãs dos filmes noir hardboiled vão querer ir atrás deste menos conhecido mas memorável exemplo do gênero. Paul Henreid faz dois papéis: um jogador (erro) fugindo da polícia (erro) e um psiquiatra que é seu sósia perfeito. O jogador planeja escapar da lei (erro de novo – é escapar dos bandidos) matando o doutor e assumindo sua identidade. Procure por Jack Webb em um pequeno papel.”
“Estréia de Jack Webb”, diz o IMDb. Mas quem é Jack Webb, meu Deus? Jack Webb ((1920-1982), informa o IMDb, “era autor e ator e foi conhecido pelo seu trabalho em Dragnet (1951), Dragnet 1967 (1967) e Crepúsculo dos Deuses (1950). Foi casado com Opal Wright, Jackie Loughery, Dorothy Towne e Julie London. Morreu em 23 de dezembro de 1982 em Los Angeles, Califórnia, EUA.”
Faz o papel de Bullseye, olho de boi – um bandido.
“Argumento cheio de absurdos”. Ah, bom!
O grande Jean Tulard adorou o filme, que, na França, teve o título de Le Balafré, a cicatriz, igualzinho que nem em Portugal e no Brasil. No seu Dicionário de Cinema – Os Diretores, Tulard classifica o diretor Steve Sekely (1889-1979) como “cosmopolita”, que “trabalhou em todos os estúdios”. Relata que, húngaro de nascimento, ele fez filmes em seu país, na Alemanha antes da Segunda Guerra e na França, antes de emigrar para os Estados Unidos. Depois da guerra, voltou à Europa e trabalhou na Itália e na Inglaterra. O grande estudioso e crítico termina assim seu verbete: “Destacam-se hoje em dia apenas um filme de ficção científica, The Day of the Triffids/O Terror Vem do Espaço, a invasão da humanidade por plantas gigantes, e Hollow Triumph, um thriller original cujo herói assume a identidade de outro homem”.
E, em seu monumental Guide des Films, o próprio Jean Tulard fez o verbete sobre Le Balafré: ”Um gângster toma o lugar de outra pessoa, mas ele se engana com a cicatriz, cortando a face errada. Ele é (…). Um soberbo filme B.”
Na penúltima frase, “ele é…”, mestre Tulard faz o spoiler absoluto. Ele simplesmente conta o finalzinho do filme.
O qual é de fato interessante, extremamente irônico, com uma ironia típica do filme noir. Mas não vou explicitar aqui, porque de fato seria o máximo do spoiler.
Já vou até avançar mais do que seria o indicado nos meus comentários que virão abaixo – embora, a rigor, não vá acrescentar novidade em relação ao que já foi relatado da história nos textos que transcrevi acima.
Filme noir ou filme B? Ou os dois? Fiquei curioso para saber em qual dos dois livros do pesquisador e professor carioca A.C. Gomes de Mattos o filme estaria – se em O Outro Lado da Noite: Filme Noir ou se em A Outra Face de Hollywood: Filme B.
Está no livro sobre os filmes noir. Gomes de Mattos elogia a fotografia de John Alton, o fato de o diretor Sekely “manter o espectador sempre intrigado com as ações do protagonista”, a elipse usada na cena do assassinato, “quando se vê apenas as mudanças das setas do sinal de trânsito e o som de uma música de ópera que cessa subitamente”.
Mas Gomes de Mattos cita um fato que considero absolutamente fundamental, ao qual nenhum dos críticos e espectadores que citei acima haviam se referido:
“Drama de mistério com argumento cheio de absurdos e modestos recursos de produção, mas contendo alguns elementos noir (tema do sósia, herói cínico e amoral, final irônico e pessimista, iluminação escura) que o valorizam.”
Ah, enfim! Enfim alguém diz que o argumento é cheio de absurdos!
Se você comprar a premissa maluca, implausível…
Um dos leitores do IMDb escreveu: “Se você conseguir comprar a premissa – um sujeito caçado encontra um sósia perfeito e assume a vida dele –, o resto segue bem efetivamente.”
Bem, se você admitir que um bandido que estudou quatro anos de Medicina pode se fazer passar por um famoso, rico, bem-estabelecido psiquiatra-psicanalista, e continuar o tratamento de todos os seus pacientes na maior, e convencer a mulher do cara que ele é o marido, e convencer a amante e secretária do cara que ele é o amante e patrão…
Bem, se você admitir isso, então você vai gostar do filme. Tem louco pra tudo.
Eu, quietinho aqui no meu cantinho, percebi que o filme é muito ruim na sequência em que Johnny Muller explica a seus velhos comparsas o seu plano de assaltar o cassino de Stansck. É bem no começo do filme. Estamos com 7 minutos, apenas, dos intermináveis 83 que o filme dura quando, ao ouvir de seu comparsa Marcy que não topa participar do assalto, Johnny Muller dá um tapa na garrafa que ele tinha pertinho da boca – e o bandido agredido, depois de arregalar os olhos, continua conversando na boa com o agressor.
O que rolara antes já não havia me parecido bem elaborado. Mas aquela sequência do tapa me assustou. Pensei em parar ali mesmo – mas depois deixei rolar, porque, afinal de contas, eu tenho um site de filmes, aquilo ali era um noir, um filme B, dos anos 1940, e é disso que eu gosto especialmente, e então…
Bem. Talvez a explicação mais simples para eu não ter desligado a TV quando a porcaria estava ainda com cinco minutos seja que eu também sou louco… E, se fosse paciente do dr. Bartok, nem teria reparado que a cicatriz dele tinha mudado de face.
Anotação em agosto de 2023
A Cicatriz/Hollow Triumph ou The Scar
De Steve Sekely (e Paul Henreid, não creditado), EUA, 1948.
Com Paul Henreid (John Muller/dr. Bartok)
e Joan Bennett (Evelyn Nash, a secretária do dr. Bartok), Eduard Franz (Frederick Muller, o irmão de John), Leslie Brooks (Virginia Taylor, a mulher do dr. Bartok), John Qualen (Swangron), Mabel Paige (a faxineira), Herbert Rudley (Marcy), Ann Staunton (a loura), Mack Williams (o caixa do cassino), Morgan Farley (Howard Anderson), Joel Friedkin (Williams), Thomas Browne (Henry Stansck, o dono do cassino assaltado)
Roteiro Daniel Fuchs
Baseado no romance de Murray Forbes
Fotografias John Alton
Música Sol Kaplan
Montagem Fred Allen
Direção de arte Edward L. Ilou, Frank Durlauf
Figurinos Kay Nelson
Produção Paul Henreid, Bryan Foy Productions.
P&B, 83 min (1h23)
1/2
Título na França: Le Balafré. Em Portugal: A Cicatriz.