3.0 out of 5.0 stars
Há quem diga que The Importance of Being Earnest é a peça mais inteligente de Oscar Wilde – e o filme que o ótimo diretor inglês Anthony Asquith dirigiu em 1952, com o grande Michael Redgrave no papel de John Worthing, que se diz Ernest Worthing, é o melhor de todos os vários baseados na peça.
Pode-se discordar tanto de uma avaliação quanto de outra. Afinal, o conceito de “melhor” envolve opiniões, julgamentos pessoais, e quando se trata de opiniões, não há unanimidade. Só não se pode discutir que houve vários filmes baseados na peça que estreou em Londres em 1895.
Há pelo menos 12 filmes com base na peça, segundo o IMDb, o site enciclopédico que tem tudo sobre filmes. Há filmes feitos para a TV. Há uma versão relativamente recente, de 2002, que os exibidores brasileiros chamaram de Armadilhas do Coração, e tem Colin Firth no papel de John Worthing e Rupert Everett no papel de seu amigo Algernon Moncrieff, que, como John, também se faz passar por Ernest.
O primeiro dos 12 foi feito na Alemanha do entre-guerras, pouco antes da ascensão de Adolf Hitler ao poder, em 1932, e tem o título de Liebe, Scherz und Ernst – amor, piada e Ernst, ou Ernest, ou Ernesto.
Há um The Importance of Being Earnest australiano, de 1957, feito para a TV.
Há um The Importance of Being Earnest americano, de 1992, que é all-black. Todos os atores são negros; a ação se passa na Inglaterra vitoriana, ali por 1895, e todos os personagens são negros.
Há uma adaptação feita na União Soviética em 1976 e uma feita na Checoslováquia em 1979, naquele tempo em que ainda existiam comunismo, União Soviética e Checoslováquia. O primeiro era Kak vazhno byt seryoznym, na passagem dos fonemas expressos em cirílico para os nossos; o segundo, Jak je dulezité míti Filipa.
Seguramente as versões soviética e checa serviam para mostrar aos camaradas como era ridícula a civilização britânica do capitalismo decadente, injusto, nojento.
Bem, não há nada menos próximo do comunismo do que Oscar Wilde, mas a intenção dele, como toda certeza, era mesmo mostrar como podia ser ridícula a sociedade britânica naqueles anos vitorianos…
Mas, em suma, é o seguinte: há versões para as telas de The Importance of Being Earnest para todos os gostos.
E repito: muita gente boa aponta a versão escrita e dirigida por Anthony Asquith – que no Brasil teve o título de A Importância de Ser Honesto – como a melhor de todas.
É preciso dizer, antes de mais nada: Asquith (1902-1968) é um grande realizador. Começou ainda no mudo, foi ativo até meados dos anos 1960, quando o cinema inglês já havia sido chacoalhado pelos jovens modernos, raivosos, inovadores, como Tony Richardson, Karel Reisz, Jack Clayton.
Fez grandes, importantes filmes, como, para citar só alguns, Pigmalião (1938), bela adaptação da peça de outro escritor irlandês, George Bernard Shaw, e Nunca Te Amei/The Browning Version (1951). Como fazia filmes que contavam direito boas histórias, foi muitas vezes chamado de “acadêmico”, um adjetivo que, para os críticos de cinema, equivale a quadradão, careta, horroroso.
“A mais absurda obra de arte já escrita”
Leonard Maltin deu ao filme 3 estrelas em 4: “A comédia de costumes sem par de Oscar Wilde passada na Inglaterra vitoriana tem um tratamento admirável pelo elenco extremamente competente”.
Dona Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, o texto mais cricri sobre cinema que já houve, molhou a calcinha:
“Comédia perfeita delirantemente complicada de Oscar Wilde – a mais absurda obra de arte já escrita”, ela escreve, na tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de seu livro 5001 Nights at the Movies, aqui condensado para 1001 Noites no Cinema. “O humor borbulha por toda a peça num fluxo natural. Considerada demasiado efeminada para consumo geral, jamais foi filmada até esta produção, dirigida por Anthony Asquith, que também fez a adaptação e deixou a peça tão intacta quanto possível. O filme é teatral, mas muito gostoso; as frases de múltiplo sentido de Wilde sobre amor e dinheiro são ditas no exigido estilo agudo e seco por um elenco extraordinário. Michael Redgrave (à esquerda na foto abaixo) faz Jack Worthing; Edith Evans está triunfalmente monumental como Lady Bracknell; Joan Greenwood é a Honorário Gwendolen Fairfaix; Michael Denison (à direita da foto abaixo) é Algernon Moncrieff; Dorothy Tutin, uma maravilhosa e chilreante Cecily Cardew; Margaret Rutherford, com seu enorme maxilar trêmulo de emoção, é a Senhorita Prism; e Miles Malleson, o reverendo Chasuble. Sabe-se de pessoas que assistiram a este filme e que davam risadinhas de prazer anos depois, ao se lembrarem do timbre e fraseado que Edith Evans dá às falas como ‘Prism! Mas onde anda esta criança?’”
Não me lembrava de Dame Kael tão feliz diante de um filme.
Faço aqui duas observações e um reparo.
O reparo é que, ao contrário do que ela afirma, e como foi dito mais acima, já haviam sido feitos vários filmes antes deste aqui de 1952. Quem tiver dúvida poderá checar esta página do IMDb.
A observação é de que, de fato, praticamente todo o texto, todas as falas, são absolutamente veadas, ou viadas. Veadas, ou viadas, aqui, não tem absolutamente nada a ver com opção sexual; o adjetivo é usado no sentido de fresco, metido a besta, exagerado, desmunhecado, sem medidas, estridente, fora do normal, artificial, teatral, circense, hiperbólico.
Viado, sacumé?
A segunda observação é que a palavra “earnest” do título original tem, ou teve, na gíria do inglês britânico, o sentido de veado – aí, sim, com a conotação de opção sexual. Como diz Elton John no belo Rocketman (2019): ”Homossexual. Veado. Bicha.”
No original, o ator Taron Egerton, que interpreta o grande cantor e compositor, se define com as seguintes palavras, em telefonema para a mãe: “A homosexual… A poofter… A fairy… A queen…” Se tivesse vivido na segunda metade do século XIX, assim como Oscar Wilde, poderia ter dito: “An earnest”.
Não sabia que earnest já teve essa acepção. Vi isso em um texto no IMDb de um leitor apaixonado por este filme aqui – mas é preciso registrar que não há referência a essa acepção da palavra nem no Cambridge Learner’s Dictionary, nem no Dictionary of English Language and Culture, nem no portentoso Webster’s International Dictionary de três volumes de mais de mil páginas cada.
Ernest e Earnest. Homófonas, embora não homógrafas
Earnest. A palavra é fundamental na peça de Oscar Wilde. Porque, a rigor, a rigor, The Importance of Being Earnest é uma grande brincadeira em cima de um jogo de palavras. A rigor, a rigor, um trocadilho. Com perdão do jogo de palavras, um trocadalho do carilho.
Um jogo com as palavras “earnest” e “Ernest”. Ernest, é claro, é óbvio, é aquele que nós, da última flor do Lácio inculta e bela, chamamos de Ernesto. O mesmo nome daquele lá que mora no Brás e nos convidou prum samba, e o gênio de Adoniran Barbosa transformou em Arnesto.
“Earnest” significa, segundo os dicionários citados acima, as palavras em inglês correspondentes a determinado, sério, sério demais, muito sério e sincero.
O Exitus, um ótimo dicionário Inglês-Português que tem a grife de Antonio Houaiss, traz estes adjetivos portugueses no verbete “earnest”: sério, austero; ativo, zeloso, diligente; extremo, fervoroso, atento, cuidadoso; grave, importante.
Oscar Wilde escreveu a peça com base na brincadeira entre essas duas palavras – o adjetivo “earnest” e o nome próprio Ernest. Duas palavras, se me permitem a viadagem, que são homófonas, embora não homógrafas.
John Worthing, o protagonista da história, aqui interpretado por Michael Redgrave, é um dândi (à imagem e semelhança de seu criador) que vive entre sua propriedade no campo e seu apartamento na cosmopolita Londres, então capital do mundo. Quando está em Londres, gosta de dizer que se chama Ernest – e tem um irmão no campo que se chama John, ou Jack, que é o apelido dos Johns, assim como Zé substitui José ou Chico, Francisco.
Em Londres, uma jovem dama chamada Gwendolen Fairfax (no filme interpretada por Joan Greenwood, uma perfeita Barbie) fica muito interessada por Ernest Worthing. O sujeito é bonito, simpático – mas, sobretudo, chama-se Ernest. E tudo que Gwendolen Fairfaix quer na vida é um homem, um possível marido, que seja earnest – sério, austero, ativo, zeloso, diligente, extremo, fervoroso, atento, cuidadoso, grave, importante.
Na propriedade de campo de John Worthing vive uma jovem de 18 anos, Cecily (Dorothy Tutin, na foto abaixo) – ele é o tutor dela.
Em Londres, John Worthing tem um grande amigo, Algernon Moncrieff, que aliás é primo de Gwendolen Fairfax. Algernon viaja até a propriedade de campo de John, encanta-se com Cecily e garante que se chama Ernest.
E é essa a trama genial do genial Oscar Wilde. A peça mais inteligente de Oscar Wilde, como afirma o CineBooks’ Motion Picture Guide Review. Como diria João Gilberto, é só isso o meu baião, e não tem mais nada, não.
Nas outras línguas, o jogo de palavras se perde
Os jogos de palavra, os trocadalhos, mesmo os que não são tão do carilho assim, têm um sério problema: eles em geral só falam uma língua. São monoglotas, como boa parte dos americanos, Lula, Jair e Dudu Bolsonaro – embora este último garanta que fala com perfeição a língua de Shakespeare e Oscar Wilde.
O título do filme de 1932, Liebe, Scherz und Ernst, literalmente Amor, Piada e Ernst, conseguiu a proeza de passar para o alemão o jogo de palavras, já que Ernst, na língua de Goethe, é ao mesmo tempo o nome próprio que para nós é Ernesto e também o adjetivo sério, conforme me informa minha filha Inês, que há décadas virou tedesca.
Em Portugal, na Espanha e na Itália, os exibidores escolheram a tradução literal: A Importância de se Chamar Ernesto, La Importancia de Llamarse Ernesto, L’importanza di Chiamarsi Ernesto.
Literal – mas o jogo de palavras se perdeu. Dançou. Tudo existe em torno do jogo de palavras – e o jogo de palavras não existe no título do filme.
É a mesma coisa no Brasil – com a diferença de que, como os exibidores brasileiros sempre foram muito criativos, eles resolveram inovar, e então aqui é A Importância de Ser Honesto. Não faz jogo de palavras – nem acerta a tradução de earnest, que, como foi visto logo acima, não inclui “honesto” na ampla relação de adjetivos citada no dicionário Exitus,
No quesito título que não tem nada a ver, o título brasileiro empata com o francês, Il Importe d’être Constant.
Earnest não significa nem honesto nem constante, diacho.
(Na foto abaixo, Edith Evans, que faz Lady Augusta Bracknell.)
Dois guias franceses não se rendem ao filme
O Guide des Films do mestre Jean Tulard rema contra a corrente dos que endeusam Il Importe d’être Constant. O verbete é extremamente curto. Como sempre, ele usa um parágrafo como sinopse, resumo da trama, e um parágrafo para a apreciação. É assim:
“Dois elegantes e ricos solteiros têm problemas com seus projetos de casamento.
“Adaptação muito acadêmica de Wilde. A impressão de teatro filmado acaba por destilar um distinto tédio.”
Os franceses parecem torcer o nariz para Il Importe d’être Constant. Le Petit Larousse des Films, guia de que gosto mais a cada vez que consulto, diz:
“Sucessão de quiproquós de dois solteiros afortunados que desejam se casar. Um humor tipicamente britânico.”
Não foi à toa que britânicos e franceses guerrearam durante cem anos sem parar.
Eis a avaliação do anglo-saxão Cinebook’s, ao final de longo texto:
“O diretor-roteirista Asquith não tentou fazer nada além de fotografar uma peça, e começa o filme com um casal entrando num camarote e se sentando à espera do abrir da cortina. Em seguida, entramos na espumosa história de costumes que Wilde escreveu nos anos 1890. Estilosa, ensolarada e cheia de nonsense como qualquer trabalho pode ser (pelo menos na superfície), The Importance of Being Earnest faz instantâneos das pessoas pretensiosas da época, sob a capa de brincadeiras contendo alguns dos melhores epigramas e belas frases de Wilde. Se ele tivesse sido cuidadosamente cinematográfico, teria sido um grande clássico do cinema. Do jeito que foi feito, The Importance of Being Earnest é tão próximo da perfeição quanto se pode chegar.”
(Na foto abaixo, Joan Greenwood, que f Gwendolen Fairfax.)
O diretor deixa os atores como se estivessem no palco
Há muitos fatos interessantes sobre The Importance of Being Earnest – o filme e como foi a história de sua produção. Por exemplo: John Gielgud foi convidado para o papel de John Worthing, que ele já havia interpretado várias vezes nos teatros do West End. O maravilhoso ator, no entanto, recusou, porque preferia trabalhar nos palcos. Argumentozinho um tanto pobre, para quem, ao morrer, em 2000, aos 96 anos, deixou uma filmografia de 138 títulos.
Sobrou para Michael Redgrave – o que, para o filme, não foi uma perda, de forma alguma. Michael Redgrave (1908-1985) era da mesma geração sagrada de John Gielgud, Ralph Richardson e Laurence Olivier – e era tão grande quanto eles. Fez 77 filmes, entre 1936 e 1975, entre eles vários clássicos, como A Dama Oculta (1938), de Alfred Hitchcock, Nunca te Amei (1951), também de Anthony Asquith, e Os Inocentes (1961), de Jack Clayton.
Deixou também uma dinastia, uma das mais nobres do cinema mundial. Com a atriz Rachel Kempson, presenteou o mundo com Vanessa, Lynn e Corin Redgrave. Que, por sua vez, nos deram Natasha Richardson, Joely Richardson, Carlo Gabriel Nero e Jemma Redgrave.
O diretor Anthony Asquith rodou boa parte do filme em sequência, em ordem cronológica das canas, o que não é, de forma alguma, a maneira tradicional de se filmar. E usou tomadas longas. Com isso, pretendeu realçar, e não esconder, a origem teatral do filme, deixando os atores atuarem seguindo o ritmo dos diálogos, como se estivessem no palco.
Outro fato, tirado na página de Trivia sobre o filme do IMDb: atriz basicamente de teatro, a veterano Edith Evans, que interpreta Lady Bracknell, a mãe de Gwendolen Fairfax, mostrava-se pouco afeita ao trabalho no cinema, em especial na questão de obedecer à marcação no estúdio. Lá pelas tantas, disse ao diretor Anthony Asquith: – “Eu sempre acho que a câmara deveria vir até a mim, em vez de eu ter que ir até a câmara”.
Uma questão: um filme pode ser bobo e ao mesmo tempo bom?
Enquanto escrevia esta anotação, me lembrei de uma conversa – quase discussão – que tive com um caro amigo, José Luís Fino. Com aquele apego firme à lógica que caracteriza os portugueses, uma vez José Luís me questionou a respeito do adjetivo “bobo” que usei para um determinado filme, não consigo me lembrar qual, que eu elogiava. Meu texto dizia que era uma comédia boba, mas gostosa – e elogiava.
José Luís argumentou – se é que me lembro com acuidade – que “bobo” é uma palavra que expressa algo negativo. Não dá para ser ao mesmo tempo “bobo” e agradável, interessante, engraçado, gozado, fascinante.
Segundo ele, se é bobo, é ruim.
Bem… Esta seria então uma grande diferença entre a acepção do vocábulo em Portugal, onde a língua nasceu, e a que vale aqui, nesta terra fim de mundo onde muitas vezes fazemos de tudo para destruí-la.
(E aí me lembrei do filólogo Mister Higgins, de Pigmalião, outro filme de Anthony Asquith, já citado lá em cima, quando ele diz: – “Na América, eles não falam inglês há séculos!”)
Aqui, nesta terra fim de mundo, ao contrário de em Portugal, “bobo” tem um lado bom. “Bobo” pode ser engraçado, divertido. Bem-humorado.
Nos desenhos da Peppa Pig, ela fala, com imenso carinho: – “Papai bobinho…”
Minha neta diz que eu sou bobinho. É uma declaração carinhosa.
Eu definiria The Importance of Being Earnest como um filme bobo.
Se você o vir num dia em que está bem humorado, de bem com a vida, é bobo na acepção brasileira do termo. Se não, é bobo na acepção portuguesa mesmo.
Anotação em julho de 2020
A Importância de Ser Honesto/The Importance of Being Earnest
De Anthony Asquith, Inglaterra, 1952
Com Michael Redgrave (John Worthing), Michael Denison (Algernon Moncrieff), Edith Evans (Lady Augusta Bracknell), Joan Greenwood (Gwendolen Fairfax), Dorothy Tutin (Cecily Cardew), Margaret Rutherford (Miss Letitia Prism), Miles Malleson (Chasuble, o reverendo), Aubrey Mather (Merriman), Richard Wattis (Seton), Walter Hudd (Lane)
Roteiro Anthony Asquith
Baseado na peça de Oscar Wilde
Fotografia Desmond Dickinson
Música Benjamin Frankel
Montagem John D. Guthridge
Casting Weston Drury Jr.
Produção Teddy Baird, Javelin Films, British Film-Makers. Rank.
Cor, 95 min (1h35)
***
Título na França: Il importe d’être constant. Em Portugal: A Importância de se Chamar Ernesto. Na Espanha: La importancia de llamarse Ernesto. Na Itália: L’importanza di chiamarsi Ernesto.
Disponível em DVD.
Um comentário para “A Importância de Ser Honesto / The Importance of Being Earnest”