Marina, seis anos de idade, queria mais. Quando terminou a narrativa e começaram os créditos finais de Turma da Mônica: Laços (2019), ela exclamou, não para nós, mas para ela mesma: “Já???”
O primeiro filme com atores, live action, da Maurício de Sousa Produções foi o primeiro filme com atores, live action, que minha neta viu na vida, e por isso fiz questão de estar junto, de participar do momento histórico. Vejo filmes com Marina já faz uns quatro anos, e posso dizer que ela é uma absoluta apaixonada por filmes, por imagens em movimento, moving pictures, movies. Tem imensa capacidade de concentração; diante de um filme, arregala os olhões e entra em alfa.
O fato de ter expressado de imediato que queria mais, que tinha achado poucos os 97 minutos de Laços, creio que é a melhor avaliação que poderia ser feita. Afinal, Marina, com seus seis anos, é o público alvo do filme. Mas o avô, cinéfilo há seis décadas, também gostaria de fazer a avaliação dele.
E minha avaliação é: uau, que beleza!
Laços tem sido um belo sucesso de bilheteria, nestas primeiras semanas de exibição, desde seu lançamento no dia 27 de junho de 2019, véspera das férias escolares, em 700 salas – número excepcional para uma produção brasileira. Com duas semanas de exibição, chegou à marca de 1 milhão de espectadores.
Tem seguramente feito milhares e milhares de crianças felizes com o que vêem. Mas a verdade é que Laços é um filme adulto, maduro. É obra de equipe experiente, que conhece bem o ofício, que domina toda a técnica. Não tem absolutamente nada a ver com uma cinematografia, uma indústria nacional que ainda tem problemas – e, apenas 30 anos atrás, foi praticamente dizimada pela bomba atômica Fernando Collor de Mello. É trabalho perfeitamente digno de indústrias maduras, desenvolvidas, que fazem mais de 500 filmes por ano, Hollywood, Bollywood.
Coisa de gente grande.
Cada quesito é muitíssimo bem cuidado
Fui me surpreendendo com a qualidade de cada quesito, cada área. Locações muitíssimo bem escolhidas – belas locações, belos lugares. Casario, praças, parques, a floresta, tudo muito bem escolhido. As tomadas gerais do que seria o bairro do Limoeiro – que maravilha!
Os créditos finais dão a indicação de como a produção foi cuidadosa – e como trabalhou! – para achar as locações. O filme foi rodado em diversos lugares, em diferentes cidades: Poços de Caldas, Minas, e Limeira, Paulínia e Atibaia, São Paulo.
Os interiores, a direção de arte, o desenho de produção, os cuidados com os detalhes – parece coisa de filme comercial carésimo, em que tudo, em cada tomada, é visto com a maior paciência, esmero, para fazer uma peça de 30 segundos, no máximo 60 segundos.
A música, a trilha sonora, assinada por Fabio Góes. Que maravilha! A trilha acompanha cada momento da trama, cada mudança de clima, cada nova surpresa. A trilha é fantástica, inventiva, faz parte da trama tanto quanto as imagens – e os arranjos, a orquestração, é tudo de altíssima qualidade. Juro que o que me ocorre, para comparar a trilha de Fabio Góes, é a que Bernard Herrmann compôs para O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry (1955), a primeira das oito trilhas do genial músico para os filmes de Alfred Hitchcock.
A fotografia é um assombro de correção, de perfeição. De novo, digo que parece coisa de profissional que passou pela publicidade. Verdade que fotografia é uma ciência que o cinema brasileiro domina com absoluta maestria desde bem antes do cinema novo, com nomes respeitabilíssimos como Dib Lufti, Luiz Carlos Barreto, Waldemar Lima, Chick Fowle, Dudu Miranda, Edgar Moura, Walter Carvalho, mas mesmo assim é preciso reconhecer que é uma beleza de trabalho. Vejo agora que o diretor de fotografia é Azul Serra, profissional experiente, autor, entre muitos outros títulos – mais de 20 –, da fotografia do ótimo Berenice Procura (2017), de Alan Fiterman.
Um intróito, como nos filmes de James Bond
A trama é uma delícia. É de autoria dos jovens irmãos mineiros Vitor Cafaggi & Lu Cafaggi, que a criaram para um livro de quadrinhos, perdão, uma graphic novel, conforme explicitam os cuidadosos créditos finais. A história foi roteirizada – muitíssimo bem, com bastante talento – por Thiago Dottori e mais os dois autores, Vitor e Lu Cafaggi.
Tem até um intróito, um preâmbulo, uma historinha rápida antes da história principal – assim como muitos dos filme de James Bond, assim como Caçadores da Arca-Perdida (1981): Cebolinha apresenta para Cascão um de seus planos infalíveis para pegar Sansão, o bonequinho de pelúcia da Mônica. Um pouquinho metidos, os roteiristas e o diretor Daniel Rezende iniciam esse intróito com desenhos, em vez de com um filme com atores. Desenhos em preto-e-branco.
Marina, num primeiro momento, ficou sem entender o que estava acontecendo.
Só depois é que a câmara dá uma suave zoom para trás, e vemos que aquele desenho está sendo feito pelo Cebolinha, na mesa de seu quarto, e ele está mostrando para o Cascão. Cebolinha dá uma de Akira Kurosawa, de Alfred Hitchcock: desenha primeiro o que vai depois executar, faz os storyboards.
Em seguida vemos os dois amigos tentando botar em prática o plano infalível. Que, evidentemente, falha bem depressa – e aí temos Mônica perseguindo os dois garotos, agitando o perigosíssimo Sansão. Há o uso da câmara lenta quando Cebolinha e Cascão estão fugindo – e aí os dois amigos vêm estrelinhas, golpeados pela poderosa arma da Mônica. Só então, para marcar que terminou o intróito e em seguida vai começar a história propriamente dita, surge na tela o nome do filme.
Maior delícia: um intróito, um preâmbulo, à la Indiana Jones!
Na trama principal, um sujeito, na calada da noite (me deu vontade de escrever à sorrelfa, à socapa, mas acho que aí seria demais) rouba o Floquinho, o cachorrinho felpudo do Cebolinha. Ao longo da deliciosa hora e meia a seguir, nossos quatro heróis, Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali, vão lutar para resgatar o Floquinho do cativeiro.
Os quatro garotos escolhidos são ótimos!
Perfeição em todos os quesitos técnicos, uma trama gostosa, envolvente, que permite bons momentos, boas piadas, boas brincadeiras, bons sustos – mas ainda não falei da principal, ou, se não a principal, uma das maiores qualidades deste filme agradabilíssimo: a caracterização dos personagens centrais e os quatro garotos escolhidos para interpretá-los.
Como todo filme, Laços é um trabalho de equipe, de um grande conjunto de pessoas, de técnicos das diferentes especificidades, mas eu fico pensando que o talento do casting. da escolha do elenco, é talvez o grande truque, a maior sacada de todas.
Os quatro garotos escolhidos, entre o total de 7.500 crianças que se apresentaram para fazer Mônica, Cebolinha, Cascão e Magali – respectivamente Giulia Benitte, Kevin Vechiatto, Gabriel Moreira e Laura Rauseo – são ótimos, são demais. Estão em torno de 10 anos de idade, e têm alguma semelhança física com os personagens dos quadrinhos criados por Maurício de Sousa, sem dúvida – acrescentada e melhorada pelas equipes de maquiagem e figurinos:
* Giulia Benitte é um pouquinho, levemente cheinha, exatamente como a Mônica dos quadrinhos. Com os cabelos negros cortados à la Mônica, e uma prótese nos dois dentes da frente para ficar dentuça, mais o vestidinho vermelho, é a própria personagem, sem tirar nem pôr.
* Pentearam os cabelos de Kevin Vechiatto de forma a deixar bem no alto da cabeça aqueles cinco fios espetados que são a marca registrada do Cebolinha. E o garoto tleinou bastante pala fazel a voz do Cebolinha, o galoto que, que nem o Holtelino, tloca as letlas. A mesma camiseta verde, e plonto: Kevin é o personagem.
* Gabriel Moreira está com os cabelos um tanto grandes, bastante encaracolados e totalmente desalinhados. É um ótimo Cascão. As carinhas que ele faz diante do perigo imenso que é a água são sensacionais.
* Magali não tem assim propriamente nada extremamente marcante no seu tipo físico. É magrelinha, apesar do tanto que come, e bonitinha. Laura Rauseo faz uma Magali perfeita. Já errei mais de 20 vezes em previsões parecidas, mas já acertei muitas outras, e ouso fazer nova previsão: essa garota Laura Rauseo tem talento e poderá vir a ter uma bela carreira.
Mais adiante, volta-se a falar de Giulia Benitte, Kevin Vechiatto, Gabriel Moreira e Laura Rauseo.
Entre os momentos especialmente gostosos, o Louco
Alguns momentos especialmente gostosos, engraçados, interessantes:
* Os quatro garotos de repente vão parar num cemitério, à noite. Cada vez que se assustam – ao ver uma caveira, ou quando se encostam pelas costas, vindo cada um de um lado –, danam a berrar de medo, com as carinhas mais deliciosas que pode haver.
* O bandidão, o sujeito que rouba os cachorros, e que roubou o Floquinho, faz um playback de Fagner, Raimundo Fagner, cantando “Deslizes”, de Michael Sullivan e Paulo Massadas, enquanto prepara o almoço. É absolutamente engraçado, hilário, delicioso. (Diacho: tenho um bando de discos de Fagner, mas não me lembrava desse “Deslizes”.)
* A estrada que se bifurca, e Mônica diz que eles têm que pegar a esquerda, e Cebolinha diz que eles têm que pegar a direita. Os dois disputam a liderança da turma – e os dois liderados, Cascão e Magali, estão absolutamente cansados daquela bobagem, e fazem deliciosas caras e bocas demonstrando isso.
Admito que esse tema da estrada que se bifurca me fascina desde que, adolescente, conheci (perdão, não é frescura, não é querer parecer nada, é só uma história de vida) o poema de Robert Frost, “two roads diverged in a yellow wood, / And sorry I could not travel both”.
* O momento em que os quatro amigos estão colando cartazes de “procura-se este cãozinho”, e chegam a uma banca de jornais – e o dono da banca é Maurício de Sousa! Nesse momento há exclamações gerais na platéia, os adultos comentando com as crianças que aquele ali é o Maurício de Sousa, o autor das histórias da Mônica e do Cebolinha. Uma gostosa sacada.
* E, é claro, é óbvio, o Louco.
Que coisa feliz – para o filme e para ele – que Rodrigo Santoro tenha topado fazer o Louco. Crescem, os dois, o filme e o ator. Rodrigo Santoro, um dos mais belos atores de toda a História do cinema brasileiro, um sujeito de carreira brilhante, que já fez desde Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laís Bodanzky, até Simplesmente Amor/Love Actually (2003), de Richard Curtis, brincar de fazer o Louco é uma maravilha. E Santoro dá um show, uma beleza de show.
Em entrevista a Alessandro Giannini, de O Globo, Santoro contou: “Meu avô, imigrante italiano, era dono de uma banca de jornal em Petrópolis. E meu prêmio, se eu me comportasse bem, era um gibi no fim de semana. E um personagem que sempre me fascinou era o Louco. É o meu preferido da Turma da Mônica.”
Maurício de Sousa diz que agora só pensa no 2
Laços é apenas o segundo longa metragem dirigido por Daniel Rezende, depois de Bingo, o Rei das Manhãs, de 2017. Mas ele tem larga experiência como montador, e foi o responsável pela montagem de diversos filmes muito importantes, no Brasil e no exterior, entre eles Cidade de Deus (2002), Diários de Motocicleta (2004), Água Negra (2005), O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), Tropa de Elite (2007), Ensaio Sobre a Cegueira (2008), 360 (2011). Por Cidade de Deus, foi indicado ao Oscar e venceu o Bafta.
Quando ficou sabendo que a Maurício de Sousa Produções iria fazer um filme live action, Rezende apresentou-se e disse que gostaria de ser o diretor. Deu certo.
Nas entrevistas antes do lançamento do filme, tanto para Alessandro Giannini de O Globo quanto para Luiz Carlos Merten do Estadão, Rezende falou que sua preocupação não era reproduzir exatamente, literalmente, as páginas dos quadrinhos. “Queria responder à seguinte pergunta: ‘Como seriam esses personagens se eles existissem de verdade?’ Não queria que fosse um filme de HQ farsesco, e sim uma tradução dos quadrinhos para a realidade.”
Rezende diz que que escolheu os garotos para os principais papéis não tanto pela semelhança física, mas pelo temperamento. “Partimos de uma premissa: não estamos procurando a Mônica, o Cebolinha, a Magali, o Cascão. Procuramos crianças que atraíam nossa atenção.”
Dos quatro felizardos finalmente escolhidos após as 7.500 entrevistas, apenas Kevin Vechiatto, o Cebolinha, tinha experiência como ator – o garoto já participou de novelas do SBT e da Record. Os outros três são absolutos estreantes. E estão todos ótimos.
Os quatro atores foram levados à presença de Maurício de Sousa – o artista e empresário é centralizador, gosta de acompanhar tudo, cada etapa da realização do filme. E ele aprovou a escolha. “Sabia que não conseguiria satisfazer todos os fãs”, disse o diretor. “Guiei-me pelo criador. Se o pai havia reconhecido suas crianças, quem seria contra?”
“Sempre quis ver meus personagens de carne e osso”, disse Maurício de Sousa a Luiz Carlos Merten. “Mas tinha receio de que as crianças não dessem conta de interpretá-los e de captar suas características e complexidades. Está certo que foi preciso um senhor diretor, como o Daniel, mas são todos maravilhosos.” E depois: “Foram 60 anos esperando por esse filme. Agora só penso no 2, se Deus e o público quiserem”.
Acho que o público vai querer. E Deus também.
Até porque o filme – como não poderia deixar de ser – tem uma ótima moral: o mais importante de tudo é a amizade, a solidariedade, e as coisas ficam boas quando todos os amigos trabalham juntos, em equipe, como um time. Como diz outra obra que atravessa gerações, que a mãe da Marina ouvia quando criança, e Marina também ouve, Os Saltimbancos: todos juntos somos fortes.
Tem um P.S.: Quatro dias depois de ver o filme, Marina foi de novo, com mais seis colegas de escola, num evento para marcar a despedida de uma menina do grupo, que está se mudando para Portugal. Gostou de rever, e disse para a mãe que quer ver mais uma vez. Sei que toda criança é assim, mas gosto de pensar que, nisso de gostar de rever filmes, puxou o avô.
Anotação em julho de 2019
Turma da Mônica: Laços
De Daniel Rezende, Brasil, 2019
Com Giulia Benitte (Mônica), Kevin Vechiatto (Cebolinha), Laura Rauseo (Magali), Gabriel Moreira (Cascão)
e Rodrigo Santoro (Louco), Cauã Martins (Titi), Sofia Munhoz (Aninha), Gabriel Blotto (Xaveco), Pedro Souza (Jeremias), Isabela Santos (Cascuda), Monica Iozzi (Dona Luisa), Luiz Pacini (Seu Sousa), Paulo Vilhena (Seu Cebola da Silva), Fafá Rennó (Dona Cebola da Silva), Ana Carolina Godoy (Dona Lili Lima)
Roteiro Thiago Dottori & Vitor Cafaggi & Lu Cafaggi
Baseado na história em quadrinhos de Vitor Cafaggi & Lu Cafaggi
Com os personagens criados por Maurício de Sousa
Fotografia Azul Serra
Música Fabio Góes
Produção Karen Castanho, Fernando Fraiha, Cao Quintas, Bianca Villar, Bionica Filmes, Latina Estudio, Maurício de Souza Produções, Globo Filmes, Paramount Pictures.
Cor, 97 min (1h37)
***1/2
Olá!
Se já foi tão divertido assistir a este filme, imagino com a própria netinha! Parabéns pela “herança” que deixa a ela, e que venham muitos mais filmes assistidos juntos!
Só de ler sua avaliação já me deu vontade de ver o filme outra vez…
Obrigado!
Eu adoro suas críticas Sérgio, vc é referência de boas críticas pra mim, mas que de sites grandes e conhecidos. Acompanho seu trabalho há anos. Q escrita perfeita e empolgante.
Eu levei minha filha – ela tem 7 anos e também foi seu primeiro ‘live-action’.
Como gostou! Ela se assusta fácil, então na hora de cemitério, e depois onde estava o floquinho, se levantava,virava prá trás, escondia a cara no banco…ainda bem que não tinha ninguém do lado rs
No final, falou que foi a primeira vez que ela gostou de ficar assustada e também quer ver de novo.
Como adulto, o que pensei é: como é bom ter um filme de ‘cultura pop’ no Brasil. Como é bom ter um filme infantil que não é animação e não trata as crianças como bocós.
E saí torcendo pelo segundo, antes que o quarteto cresça demais.
Também levei uma criança para assistir: eu, 34 anos. A Magali é a melhor 🙂
PS: Esse texto, poxa, ficou TÃO lindo, com a presença da pequena Marina 😀
Olá, Alex!
Sim, parece que eles vão mesmo filmar o segundo, justamente aproveitando que o primeiro foi feito há pouco e os meninos ainda não cresceram.
Bom pra nós e para as nossas crianças, né?
Um abraço!
Sérgio