Natal em 3 x 4 / Días de Navidad

3.0 out of 5.0 stars

As personagens centrais de Días de Navidad (no Brasil Natal em 3 x 4), minissérie espanhola de 2019, são quatro mulheres, quatro irmãs. A ação se passa sempre, como deixa claro o título original, nos dias em torno do Natal, na grande casa de fazenda da família, em três épocas diferentes de suas vidas.

No primeiro episódio, elas estão entre 11 e 17 anos, entre a infância e a adolescência. Há então um corte de 20 anos, e no segundo episódio elas estão na maturidade jovem. Novo corte, desta vez de 30 anos, e no terceiro episódio estão velhas, idosas, vovós.

Dois elementos principais marcam a família, e portanto a série: as mulheres são mais importantes que os homens. Têm voz mais forte, decidem mais. E há na família a presença forte da mentira – ou, se quisermos ser mais brandos do que as próprias personagens são, a omissão da verdade.

São vários esqueletos guardados nos armários da casa ampla, gostosa, isolado no meio do nada – e os esqueletos que guardamos escondidos nos armários, sabemos todos, não conseguimos jamais esquecer, e estão sempre ameaçando voltar para atazanar a vida.

É um drama, um drama às vezes bastante pesado, esta série criada por Pau Freixas, diretor, roteirista e produtor nascido em Barcelona em 1973, experiente apesar de jovem, autor de 13 títulos para a TV e três longa-metragens para o cinema. Mas, como toda história de família, tem também momentos em que é impossível não rir. O que dá pra rir dá pra chorar, como sintetizou Billy Blanco, e é duro admitir, mas às vezes é impossível não rir das pequenas desgraças da vida.

Días de Navidad é uma produção extremamente caprichada, em todos os aspectos – direção de arte, reconstituição de época, figurinos. A fotografia é irretocável. O elenco é grande, já que cada uma das quatro mulheres é representada por três atrizes, uma na infância-adolescência, uma na juventude madura, outra na velhice – e está todo muito bem.

As atrizes mais conhecidas internacionalmente são Victoria Abril e Elena Anaya, mas, segundo se vê em matérias da imprensa espanhola, diversas outras atrizes da série têm grande fama lá. Victoria Abril, é claro, dispensa qualquer apresentação; Elena Anaya é jovem (nasceu em 1975), mas já é uma veterana, com quase 50 títulos na filmografia, 10 prêmios e outras 17 indicações. Trabalhou com Almodóvar em A Pele Que Habito (2011) e em Fale com Ela (2002), e, no interessante Lúcia e o Sexo (2001), de Julio Medem, fez uma sensualíssima babá.

É uma bela minissérie. É tão interessante que, mesmo antes de ser lançada (pela Netflix, em 6 de dezembro de 2019), serviu de inspiração para uma minissérie produzida na Alemanha e também lançada pela Netflix no mesmo mês natalino de 2019, Segredos de Natal/Zeit der Geheimnisse, de Katharina Eyssen.

“A consciência volta para assuntos não resolvidos”

É gostoso comparar: a série alemã explicita as datas das épocas focalizadas: 1989, 2004 e os dias de hoje, da época em que foi realizada. Os anos de 1989 e 2004 aparecem na tela com todas as letras, perdão, todos os algarismos. E o roteiro mistura o tempo todo, ao longo dos três episódios, eventos das três diferentes épocas.

A série espanhola praticamente não mistura as épocas; quase toda ela é apresentada na ordem cronológica, e tudo organizadinho, como já foi dito: o primeiro episódio mostra as irmãs na adolescência, o segundo, na juventude madura, ali na faixa dos 30 e tantos anos, e o terceiro quando elas estão na terceira idade, na faixa dos 60 e tantos.

No entanto, diferentemente da série alemã, não há referência explícita, hora nenhuma, ao ano em que se passa a ação de cada uma das três épocas. É preciso ficar tentando adivinhar, ou deduzir, a partir de uma ou outra vaga referência.

Juntando um elemento e outro, mais informações de matéria do jornal El País sobre a série, dá para estabelecer que o primeiro Natal é o de 1968, por aí (claro que pode ser 1967, 1969, mas é por aí); o segundo é o de 20 anos depois, 1988; e o terceiro, 30 anos depois, é o de 2018 (ou 2017 ou 2019, naturalmente).

O “praticamente” não mistura as épocas do parágrafo ali acima, o “quase” não mistura épocas, isso vai por conta de apenas uma incursão de uma personagem dos dias de hoje no passado, tanto no distante, de quando as quatro eram adolescentes, quanto no um pouco mais recente, de quando já eram adultas. É a personagem interpretada por Victoria Abril, exatamente a estrela mais famosa do elenco que, para os espanhóis, é muito estelar.

É Victoria Abril que abre a série, e depois abre também o segundo episódio. O espectador, é óbvio, não tem idéia ainda de quem é ela, que personagem ela representa, quando ouvimos sua voz se dirigindo diretamente ao espectador:

– “É comum as pessoas acharem que, quando estão perto de morrer, você só se lembra dos bons momentos da vida, mas não é verdade. A consciência é teimosa, e insiste em voltar para assuntos não resolvidos.”

Vemos Victoria Abril, encapotada para enfrentar o frio, caminhando por um bosque, o chão coberto de neve espessa. A câmara está junto do tronco grosso de uma árvore, situada à esquerda dela. Victoria Abril vem se aproximando da árvore – e portanto da câmara. Corta, e a vemos agora em close-up. Tira, do tronco da árvore, a vegetação que cobre uma antiga inscrição feita à faca. São quatro nomes: Esther, Adela, Maria, Valentina.

Um plano geral, uma vista aérea, a câmara provavelmente num drone voando não muito no alto sobre aquele bosque, e vemos o título – Días de Navidad. A voz em off de Victoria Abril continua sua narração: – “Uma vez uma mulher disse que só vemos o mundo uma única vez. Na infância. O resto é memória. Eu concordo.”

A câmara vai seguindo Victoria Abril em sua caminhada pelo bosque, enquanto vão rolando os créditos iniciais e ela continua conversando com o espectador: – “Espero que em meus últimos Natais me lembre dos primeiros, com elas, juntas. Nós quatro.”

A voz dela continua – mas já voltamos no tempo para a época em que as quatro eram adolescentes. Um corte apenas de uma tomada para outra, uma tomada do mesmo bosque para outra tomada do mesmo bosque – só que quem a câmara mostra agora, um pouco longe, um pouco do alto, é uma garota.

– “Vivíamos no lugar mais bonito do mundo e, na nossa família, os limites eram simples. Do lago até a encosta e da estrada até os trilhos. E. no meio desses 137 hectares, nossa casa. Nosso lar.”

A casa é uma beleza, uma coisa sólida, firme. A câmara entra nela. Vemos uma garotinha descendo as escadas, chegando à sala decorada para o Natal. – “Crescemos isoladas, inocentes, mas felizes”, diz a voz em off – e, a partir daí, a narradora se retira.

Uma sequência impressionante, brutal, à la Buñuel

Vamos conhecer Esther, Adela, Maria e Valentina, aí entre os 11 e os 17 anos de idade, e seus parentes. (Neste primeiro Natal, elas são representadas respectivamente por Berta Castañé, Mariona Pagès, Mar Ayala e Carla Tous.)

Adela, a mais velha, mostra-se uma garota medrosa, um tanto tímida, pouco atraente. Esther, a do meio, é bonita, esperta, curiosa. Maria, a mais jovenzinha, é também esperta, e inquieta, destemida.

Em um trecho da grande propriedade da família, as garotas vêm um grupo de policiais, chefiados por Manuel (Antonio Dechent), uma figura conhecida de todos na região e tida como um homem cruel, brutal. Os policiais estão obviamente à procura de alguém.

Em outro pedaço da propriedade, as três meninas vão ser surpreendidas por um homem e uma outra adolescente – Valentina. O homem pede às meninas que escondam Valentina até o final do dia, quando então ele virá pegá-la junto do lago.

Não se usam palavras como fascista, franquista, de um lado, ou rebelde, republicano, socialista, comunista, de outro, em momento algum da série – mas é necessário que o espectador se lembre que a Espanha viveu até meados dos anos 70 sob a sanguinária ditadura do generalíssimo Francisco Franco, e, mesmo muitos anos depois de terminada a Guerra Civil (1936-1939), com a vitória dos fascistas, o regime continuou caçando e prendendo todos os que se opunham a ele.

É necessário que o espectador se lembre desses fatos básicos para entender por que o pai de Valentina está sendo buscado pela polícia como se fosse uma raposa no meio de uma caçada no campo inglês.

Bem no meio desse primeiro episódio, há uma sequência impressionante, apavorante, chocante.

Toda a família está reunida em volta da grande mesa da sala para o almoço de Natal. As três meninas, seu pai, Mateo (feito pelos atores Carles Arquimbau e Francesc Garrido), sua mãe, Isabel (Alicia Borrachero), seus avós paternos, o irmão de Mateo que mora em Paris, a namorada dele, uma moça toda coquete chamada Colette (Sarah Perriez). E entra na casa o chefe de polícia Manuel, um homem grande, grosseiro, tosco, brutal.

O chefe de polícia quer saber se ninguém ali viu um homem fugitivo e sua filha.

Não conseguiria explicar exatamente por que, mas tive a imediata sensação de que o catalão Pau Freixas, autor e diretor da série, quis – nessa sequência longa, bem longa, em que o brutal chefe de polícia se mostra um absoluto déspota na casa da família rica do lugar – usar um estilo à la Luís Buñuel. De fato não sei dizer exatamente o que me fez pensar nisso, mas, para mim, aquela sequência impressionante, fortíssima, violentíssima, poderia perfeitamente ter sido filmada pelo mais rebelde, mais iconoclasta e mais anti-franquista de todos os grandes cineastas.

Spoiler: revela-se um ponto fundamental da história

Vou relatar aqui um acontecimento que é fundamental na história, e que acontece perto do fim do primeiro dos três episódios da minissérie. Se o eventual leitor tiver interesse em ver este Días de Navidad, deveria parar de ler aqui, ou no mínimo pular para o próximo intertítulo.

Felizmente, nem sempre os maus vencem, e, pouco depois daquela exibição descomunal de força bruta do chefe de polícia Manuel – que é um retrato feito com profunda ira da bestialidade das ditaduras –, acontece de ele ficar entre suspenso a vida e a morte. Literalmente.

É um belo achado da imaginação dos criadores da série, e um momento de dramaticidade fortíssimo: as quatro meninas caminham, com cuidado, na superfície do lago em que se formou uma camada de gelo. O brutal Manuel vai atrás delas, mas ele é um homem grande, pesado, pisa forte – e a casca de gelo se quebra, ele afunda na água gelada.

Quando volta à tona, pede socorro àquelas mesmas pessoas que acabara de espezinhar, humilhar poucos momentos antes, àquelas pessoas a quem exibira seu poder, sua força.

Perto dele, sobre a superfície gelada do lago, estão as quatro meninas – uma delas a filha do rebelde que o homem queria prender, arrebentar. Perto dele também, junto da margem do lago, estão os adultos que ele havia humilhado: os pais e os avós das adolescentes.

No meio dos dois grupos, o homem mau, o símbolo da ditadura, pede socorro.

No segundo episódio, a mãe está à morte

A partir daí, Valentina é adotada como como mais uma filha do casal Mateo e Isabel – e as três moças, Adela, Esther e Maria, a recebem de fato como uma nova irmã.

Nos dois episódios seguintes, a vida das quatro mulheres tomará os mais diversos caminhos, e vão se amontoando mais esqueletos nos armários, segredos, coisas que não podem ser ditas. Tudo vai, é claro, explodir no terceiro Natal mostrado na história, o que se passa nos dias atuais, os dias em que a série foi feita.

No segundo dos três Natais que vemos, o aí de 1988, ou 1989, as quatro mulheres estão, como já foi dito, na faixa dos 30 e tantos anos. A Esther da maturidade jovem, interpretada pela bela Elena Anaya, é uma mulher cheia de vida, vaidosa (talvez um pouco demais), irrequieta, um tanto instável, um tanto perdida, sem saber direito o que quer. Tem uma filha apenas, um adolescente que parece interessante, Lorena. A paternidade de Lorena é um dos segredos guardados a sete chaves.

Adela (agora interpretada por Anna Moliner), a mais velha, que quando adolescente era medrosa, tímida, virou uma mulher pobre, sem brilho, sem inteligência. Casou-se com Antonio, o filho daquele chefe de polícia brutal, Manuel – e o filho tem muito do pai. É autoritário, machista a não mais poder, e enche a mulher de filhos.

A caçula Maria (agora interpretada por Verónica Echegui) chega com uma amiga, Sofia (Nausicaa Bonnín) – e não tem coragem de admitir e falar para a família o óbvio, que Sofia não é apenas amiga, mas amante.

Todas as três haviam saído de casa, e a tarefa hercúlea, jupeteriana, de cuidar dos mais velhos havia sobrado toda para Valentina (o papel agora de Nerea Barros). Valentina está casada com Juan (David Solans), bom sujeito, médico – que, quando jovem, havia namorado Esther.

Nesse Natal em que as quatro estão aí ainda jovens mas já maduras, a mãe, Isabel, está muito doente – à beira da morte. E anuncia que tem algo muitíssimo importante para revelar para as filhas.

Não tem sentido relatar mais nada a partir daqui.

Quatro atrizes que estão no imaginário dos espanhóis

É necessário registrar os nomes das atrizes que interpretam as irmãs no terceiro episódio. Charo López faz Esther, Verónica Forqué faz Adela,

Ángela Molina faz Valentina. E Maria é o papel de Victoria Abril. O autor e diretor Pau Freixas fala assim de seu elenco: “São quatro atrizes que formaram parte de nosso imaginário a vida inteira. Primeiro escolhemos o elenco do capitulo 3, e depois fomos baixando. Buscar atrizes que interpretem estas personagens, que são elas mesmas personagens, era complexo.”

Pau Freixas definiu sua minissérie como “um conto de Natal com toque trágico”: “Há um acontecimento no primeiro capítulo que acaba marcando esta família e as irmãs de uma forma particular. É uma viagem que, de alguma forma, é um conto de Natal, sobretudo o primeiro capítulo com as meninas, que têm uma visão idealizada da família e dos pais. No capítulo 2, já se passaram 20 anos, e essas irmãs são mais autoconscientes dessas coisas que fizeram mal e do que escondem de sua família, convertendo-se em uma história mais complexa quanto à psicologia dos personagens. E o terceiro capítulo, o das atrizes mais idosas, é uma tragicomédia.”

Desta aqui, a série alemã tomou alguns elementos

Aconteceu conosco algo curioso. Vimos primeiro a minissérie alemã Segredos de Natal/Zeit der Geheimnisse, de Katharina Eyssen. Eu não tinha idéia, quando começamos a ver a alemã, que ela se inspirava em uma outra série. Claro que, depois de ver Segredos de Natal, deu vontade de ver a original, esta Días de Navidad.

Esquisito ver primeiro a que se inspira numa outra, e só depois ver a original.

Mas a verdade é que Katharina Eyssen, a autora do roteiro da série alemã, só usou alguns pontos da espanhola, e criou uma outra história, com diferentes personagens e um diferente drama familiar. Deste Días de Navidad, Segredos de Natal/Zeit der Geheimnisse manteve alguns pontos, apenas. O esquema de mostrar três épocas diferentes, três períodos natalinos bem distantes uns dos outros. O fato de a família guardar muitos segredos dentro do armário (embora seja segredos diferentes). As personagens femininas serem as mais importantes, deixando para os homens uma posição secundária. Uma das personagens aparecer em casa com uma companheira, uma ligação homo. E o fato de que cada história em um pano de fundo político.

São duas minisséries bem diferentes, na verdade. Duas boas minisséries.

Anotação em dezembro de 2019

Natal em 3 x 4/Días de Navidad

De Pau Freixas, criador, diretor, Espanha, 2019

Com Victoria Abril (Maria na terceira idade), Charo López (Esther na terceira idade),Verónica Forqué (Adela na terceira idade), Ángela Molina (Valentina na terceira idade),

Elena Anaya (Esther jovem), Verónica Echegui (Maria jovem), Anna Moliner (Adela jovem), Nerea Barros (Valentina jovem),

Mar Ayala (María criança), Berta Castañé (Esther adolescente), Mariona Pagès (Adela adolescente), Carla Tous (Valentina adolescente),

Carles Arquimbau (Mateo, o pai da família), Francesc Garrido (Mateo, o pai da família), Alicia Borrachero (Isabel, a mãe da família), Manel Barceló (Antonio, o marido de Adela), Iván Morales (Antonio, o marido de Adela), Antonio Dechent (Manuel, o policial, pai de Antonio), Miquel Fernández (Juan jovem), David Solans (Juan adulto), Nausicaa Bonnín (Sofía, a namorada de Maria, jovem), Susi Sánchez (Sofía, a namorada de Maria, na terceira idade), Sarah Perriez (Colette, a namorada do irmão de Mateo), Andreu Benito (Ramón), Gonzalo Cunill (Diego), Julio Manrique (Rafael), Carme Sansa (María Ángela)

Argumento e roteiro Pau Freixas, com Marta Armengol, Clara Esparrach e Ivan Mercadé

Fotografia Gris Jordana

Montagem David Gallart, Queralt González

Casting Timothy Cubbison

Produção Arca Audiovisual, Filmax, Netflix.

Cor, 174 min (2h54)

***

Título nos EUA: Three Days of Christmas.

3 Comentários para “Natal em 3 x 4 / Días de Navidad”

  1. Acabei de ver há minutos. Gostei, achei muito interessante.
    É incrível como uma família guarda tantos segredos; é uma ficção e aceita-se.
    Não vi a versão alemã, apenas uns minutos e pareceu-me pouco inspirada e além disso usa do vai e vem, para trás e para a frente; não sou apreciador embora haja grandes filmes que usam esta forma de narrativa.
    Não confundir com a “In medias res” que é a forma de começar uma narrativa algures no meio.
    Boa série mas não entusiasmante.

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