Gente de Bem / The Land of Steady Habits

3.5 out of 5.0 stars

O cinema já fez muitos filmes que criticam dura, ferozmente, a sociedade americana, a forma com que ela se organiza, os valores que cultiva, seu apego ao dinheiro, às posses, aos bens materiais, a tudo que a rigor importa pouco. Este Gente de Bem/The Land of Steady Habits, de 2018, é um dos mais virulentos de que me lembro.

É um poderoso, forte, violento tapa na cara de boa parte do que é o American way of life.

O protagonista da história, Anders Harris (o papel do australiano Ben Mendelsohn), é um sujeito de meia-idade, que ganhou muito dinheiro na vida, trabalhando no mercado financeiro, mas que, de repente, resolveu deixar de seguir o fluxo e nadar contra a maré. Rebelou-se: em vez de continuar trabalhando e ganhando uma quantidade absurda de dinheiro, cascou fora. Ousou cascar fora. Deu uma banana para o emprego fantástico, e aposentou-se. Saiu do carrossel, para usar a imagem que John Lennon usou em uma de suas últimas composições – “I’m just sitting here watching the wheels go round and round / I really love to watch them roll / No longer riding on the merry-go-round”.

Virou um pária – passou a ser odiado e evitado como um leproso nos tempos de Ben-Hur.

Por um erro, um equívoco, um engano, o casal Mitchell e Sophie Ashford (interpretado por Elizabeth Marvel e Michael Gaston) convida Anders para uma festa – e Anders faz a besteira de ir, embora sempre tenha achado Mitchell e Sophie uns babacas. Sophie é a maior amiga de Helene (Edie Falco), a mulher de Anders – na verdade, ex-mulher. Haviam se separado seis meses antes.

Na festa, um velho conhecido (todos ali, naquela cidade, um subúrbio de ricos, são velhos conhecidos) pergunta por que razão, afinal de contas, Anders resolveu abandonar o emprego tão maravilhoso, e se aposentar tão cedo, tão absurdamente cedo.

Anders pergunta se ele realmente quer saber – e então fala: – “É um sistema de ganância monstruosa, e esse é o negócio. Salve sua pele. Ataque o outro cara – e não ligue para as consequências. E para quê? Mais brinquedos? Casas maiores? Mais viagens para a porra do Caribe? Peitos com silicone? Não, obrigado.”

Anders se rebela – mas continua comprando, comprando

Nem Anders está à vontade para explicar as razões pelas quais resolveu sair do carrossel, cascar fora, sair do Grande Esquema, nem aquele sujeito, Wes, está gostando de ouvir aquilo – os dois estão apenas cumprindo seus papéis na porra da peça ruim e mal escrita em que têm que atuar ali naquele lugar, como diria Paul Simon.

Mas eles estão numa festa, e então Wes se sente na obrigação de fazer uma pergunta: – “Então, você tem grandes planos?”

E Anders responde: – “Sim, estou no momento decorando minha casa nova. Você sabe, vida em condomínio.”

E aí é está o ponto em que a ótima diretora e roteirista Nicole Holofcener se apega, e, pelo jeito, também o romance em que seu roteiro se baseia também se apega: ao chegar à meia-idade, Anders Harris quis parar com aquele tipo de vida maluco de trabalhar feito um camelo no mercado financeiro, ferrando a vida dos outros para ganhar dinheiro; cansou-se daquele esquema de viver para comprar mais brinquedos, ter uma casa maior, ter mais dinheiro para passar férias no Caribe, ter mais dinheiro de tal maneira que a mulher enfie silicone nos peitos – mas, ao cascar fora, ao saltar fora do carrossel, continuou fazendo quase exatamente as mesmas coisas. Em especial: comprando, comprando, comprando – no caso, comprando coisinhas para enfeitar sua nova casa de homem agora solteiro.

Nas primeiras sequências do filme, antes desta em que ele vai à festa do casal Ashford – porque Sophie se enganou e deixou de tirar o nome daquele chato da lista dos convidados –, vemos Anders comprando coisas. Não são coisas carésimas – até porque ele deixou o emprego muitíssimo bem pago, se aposentou, tem muito menos dinheiro que antes –, mas são coisas. Coisa materiais. Trens. Teréns. Stuff.

Boa parte da humanidade vive, e trabalha, muitas vezes duramente, loucamente, insanamente, para ter dinheiro para comprar coisas. Bens materiais. Trens. Teréns. Stuff.

Aí morre – e, como perfeitamente define a canção de Wilson Batista, nada mais vai no caixão.

A gente trabalha feito mouro, feito louco, feito camelo, feito cavalo, feito imbecil para comprar coisas, ter uma casa maior – e de repente morre, e não leva coisa alguma no caixão.

Esse filme tristíssimo parece que foi feito para demonstrar isso. Não que seja propriamente uma novidade – mas, como as pessoas, em sua imensa maioria, parecem não compreender, é bom que um filme repita essas verdades.

O filme mostra que esse Anders, coitado, poor soul, tentou remar contra a maré, descer do carrossel, se rebelar, fazer diferente – mas, diacho, não conseguiu se desapegar direito dos velhos hábitos.

O título original do filme é fortíssimo, violentíssimo, uma porrada na cara da sociedade americana, em especial dos americanos ricos, os mais ricos do país mais rico que já houve na história: The Land of Steady Habits. A terra dos hábitos constantes, contínuos, firmes, regulares.

Mesmo quando você tentar ir contra a maré, não tem jeito, meu: não adianta. Seus hábitos são agarrados demais, arraigados demais. Você não consegue romper com o Sistema.

Eles estão abrindo mão de coisas que nunca tivemos

Não teve jeito: Gente de Bem/The Land of Steady Habits me fez lembrar de Movidos pelo Ódio/The Arrangement (1969), que o gigante Elia Kazan lançou em 1969; me fez lembrar do filme, e do comentário que um amigo e colega fez quando nos encontramos na saída do cinema.

O protagonista de The Arrangement, Eddie Anderson (o papel de um Kirk Douglas no auge da beleza madura, aos 53 anos), é um publicitário absolutamente bem sucedido em termos materiais – tem uma casa imensa, com uma beleza de piscina, e um monte de coisas materiais, teréns, stuff, lá dentro. Mas está profundamente infeliz, insatisfeito, angustiado, e então, numa das primeiras sequências do filme, tenta se matar, jogando seu carro esporte caríssimo para sob as rodas imensas de um caminhão.

Quando eu estava saindo do Cine Astor, no Conjunto Nacional, zonzo com a beleza estúpida do filme de Kazan, aquele pau violento no American way of life, na escala de valores que privilegia a luta para ter mais e mais dinheiro, me encontrei com o colega de jornal – eu estava começando no Jornal da Tarde, e ele era um fotógrafo já experiente,

E meu colega me disse algo assim: – “Porra, meu, eles estão abrindo mão de um monte de coisas que a gente está tão longe de conquistar!”

Jamais me esqueci desse comentário. Volta e meia penso nele.

Os adultos traem, os jovens se drogam

Anders Harris, bastante parecido com o Eddie Anderson do filme do mestre Kazan, não está nem aí para a casa cada vez maior, cheia de mais e mais brinquedos. Ele percebe que aquele tipo de vida não tem sentido, é idiota, não vale a pena… Mas não sabe o que botar no lugar.

Quando a ação começa, Anders ainda não digeriu a separação com Helene, acontecida meio ano antes. E sente um ciúme quase furioso do novo namorado dela, Donny O’Connell (Bill Camp), um sujeito que ele conhecia de vista – todos, naquela cidade pequena, conhecem todos, repito.

Anders até que tem sorte com as mulheres: logo no início da narrativa, ele conversa com a balconista de uma loja, ela pergunta se ele está de férias ou de folga, ele conta que se aposentou – e na cena seguinte estão na cama. E isso vai acontecer mais uma vez com outra mulher que ele encontra em alguma loja.

Mas são trepadas eventuais, casuais, nada parecido com um namoro, uma relação. E então Anders tem um tanto de saudade da mulher de quem ele resolveu se separar – e tem um ciúme imenso do namorado dela.

E os dois, ele e Helene, carregam o peso de um filho que, apesar de estar já com 27 anos de idade, ainda não se resolveu na vida, em termos profissionais: Preston (Thomas Mann) no passado teve problemas com droga e álcool; passou uma temporada em uma clínica de reabilitação, sarou, não se droga nem bebe mais, mas não se define quanto ao que fazer na vida. Helene resolveu então dar a ele um emprego na escola que ela mantém, voltada basicamente para imigrantes que não dominam o inglês.

O retrato que Nicole Holofcener pinta em seu filme é assim: os casais maduros são infelizes, e muitos deles se dedicam ao esporte infidelidade para enfrentar a chatice que são suas vidas; e os jovens são absolutamente perdidos, não têm a mínima idéia do que querem – e se drogam, e se drogam e se drogam.

Na tal festa na casa do casal do casal Ashford, Anders dá uma escapadinha: sai da casa, dá uma passeada pelo jardim – e não consegue evitar de ver que o filho dos Ashford, Charlie (Charlie Tahan), rapagão mais ou menos da idade de Preston, está ali no escurinho, com um grupo de amigos, fumando algo que Anders acha que é um baseado. Os dois, o adulto que pediu demissão do emprego bom e o jovem que ainda não tem emprego algum, perspectiva alguma, iniciam uma conversa. Charlie oferece uma tragada, Anders aceita – e se assusta ao ver que não é apenas maconha, é uma mistura danada de drogas fortes.

Inicia-se ali uma estranha, esquisita, inesperada relação entre os dois, que será muito importante na trama.

Daí a pouco, Anders já de volta para a festa na qual não era bem-vindo, Mitchell Ashford é avisado de que o filho está passando mal, com uma overdose, e tem que ser levado para um hospital.

Uma mulher que vem se firmando como grande realizadora

Relações familiares, relações afetivas, pessoas com dificuldades de lidar com os sentimentos, com a vida, com os outros: esses são os temas dos filmes de Nicole Holofcener, uma nova-iorquina nascida em 1960. Este foi seu sexto longa-metragem: no início de 2019, ela tinha 23 títulos na sua filmografia como diretora, mas a maioria é formada por episódios de séries de TV. E este foi o quarto filme dela que vejo, depois de Amigas com Dinheiro/Friends with Money (2006), Sentimento de Culpa/Please Give (2010) e À Procura do Amor/Enough Said (2013).

Sobre este último, uma beleza de filme com Julia Louis-Dreyfus e James Gandolfini, escrevi que Nicole Holofcener é uma realizadora que aborda sempre os mesmos temas. “E faz belos filmes. Na minha opinião, cada vez melhores.” Lembrei que defini Sentimento de Culpa como “uma pequenina jóia do cinema independente americano”, e expliquei:

”O adjetivo ‘pequenina’ não procurava desmerecer Please Give. De forma alguma. Era uma coisa carinhosa – e um indicativo de que achei o filme simples, direto, despretensioso. Não um afresco, mas um pequeno retrato. Não uma sinfonia, mas uma peça de câmara. À Procura do Amor também é assim – simples, direto, despretensioso, não um afresco, e sim um pequeno retrato, não uma sinfonia, e sim uma peça de câmara. Mas a impressão que se tem é de que Nicole Holofcener está se tornando uma ourives cada vez mais experiente, mais perfeita. Sua jóia mais recente é ainda mais resplandecente.”

Agora, depois de ter visto o quarto dos seus seis filmes, mantenho tudo o que disse antes. Essa moça Nicole Holofcener vem se destacando como uma grande realizadora.

Um detalhe fascinante: todos os três filmes anteriores que citei têm roteiros originais da própria realizadora. Ela é a autora das histórias, criadas diretamente para os filmes.

Este aqui é o primeiro dos filmes dela que vejo que não é uma história escrita por ela. Como já foi dito, ela é a autora do roteiro, que se baseia no romance homônimo, escrito por Ted Thompson. Não há muita informação sobre o autor no próprio site dele.

Não se diz quando nasceu, mas diz que foi em Connecticut, exatamente o Estado em que se passa a ação de The Land of Steady Habits – o Estado que fica bem perto da área metropolitana de Nova York, e está ligado a ela por excelente sistema ferroviário. O filme mostra, em dois momentos diferentes, uma rua diante da estação de trem da cidade em que se passa toda a trama, repleta de carros em que as esposas esperam a chegada dos maridos que vão chegar de Manhattan.

A foto mostra que Ted Thompson é bem jovem – e The Land of Steady Habits foi seu primeiro romance. Críticos compararam o estilo do autor a ninguém menos que John Updike.

Deve seguramente ser um livro fascinante. Não é à toa que Nicole Holofcener quis filmá-lo. Até porque trata dos mesmos temas de sempre dos filmes dela.

Anotação em fevereiro de 2019

Gente de Bem/The Land of Steady Habits

De Nicole Holofcener, EUA, 2018

Com Ben Mendelsohn (Anders Harris), Edie Falco (Helene, a ex-mulher de Anders), Thomas Mann (Preston, o filho), Elizabeth Marvel (Sophie, a grande amiga de Helene), Bill Camp (Donny O’Neil, o novo marido de Helene), Charlie Tahan (Charlie, o filho de Sophie), Connie Britton (Barbara, a namorada de Anders), Natalie Gold (Dana), Mary Catherine Garrison (Sandy), Victor Slezak (Wes Thompson), Antonio Ortiz (Arnie), Michael Gaston (Mitchell Ashford, o marido de Sophie), Victor Williams (Howard), Josh Pais (Larry Eichner), Georgia X. Lifsher (Gwen)

Roteiro Nicole Holofcener

Baseado no romance de Ted Thompson

Fotografia Alar Kivilo

Música Marcelo Zarvos

Montagem Robert Frazen

Casting Rori Bergman e Jeanne McCarthy

Produção Likely Story.

Cor, 98 min (1h38)

***1/2

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