A Criada, produção sul-coreana de 2016, é estupidamente bem realizado, em todos os quesitos, das interpretações magníficas ao visual primoroso, requintado, da direção de arte à bela trilha sonora.
Mas isso não é nada surpreendente, já que o cinema que se faz hoje na Coréia do Sul é amplamente tido como de primeiríssimo time, e o realizador Chan-wook Park é um dos melhores de seu país.
O que mais surpreende é saber que essa história de diferenças de classe social, golpe criminoso, traição, amor, tara, surpresas, reviravoltas, passada na Coréia ainda única dos anos 1930 se baseia em um romance escrito por uma galesa cuja trama se passa no interior da Inglaterra na era vitoriana, final do século XIX.
É claro que eu não sabia nada disso quando vi o filme, mas Barbara Waters, nascida em Neyland, País de Gales, em 1966, é bastante conhecida por seus romances em geral passados na era vitoriana e com personagens lésbicas ou amores lésbicos. Dois dos mais conhecidos são Tipping the Velvet, de 1998, e Fingersmith, de 2002. O primeiro foi editado no Brasil pela Record, com o título Toque de Veludo. O segundo – que, parece, ainda não foi lançado aqui – é o livro em que Chan-wook Park e Seo-kyeong Jeong se basearam para escrever o roteiro deste filme que teve em inglês o título de The Handmaiden e aqui seu correspondente, A Criada.
O livro Fingersmith é dividido em três partes, uma divisão que é absolutamente fundamental, básica para o impacto da história sobre o leitor. E esse esquema foi seguido ao pé da letra no roteiro do filme.
Dois trambiqueiros armam um plano para seduzir uma rica herdeira
A primeira parte do livro é centrada em Sue Trinder, moça órfã que foi criada por uma mulher, Mrs. Sucksby, que dirige um covil de pequenos ladrões e aprendizes de golpistas, num estilo semelhante ao de Fagin, aquele personagem sinistro do Oliver Twist de Charles Dickens. E acho isso fascinante, porque não há nada mais essencialmente britânico que um covil de pequenos ladrões e aprendizes de golpistas à la Fagin do universo de miséria nas grandes cidades inglesas pós-revolução industrial que Dickens dissecou em suas obras.
Um conhecido de Mrs. Sucksby, um tal Richard Rivers, golpista como ela, elabora um plano de seduzir uma rica herdeira, Maud Lilly, ela também órfã, que vive com o tio em belíssima propriedade. O plano inclui enviar a jovem Sue para trabalhar como criada da herdeira; Sue deverá ganhar a confiança da jovem lady, e, com o tempo, persuadi-la a fugir das garras do tio com Richard Rivers. Depois que se casassem, o golpista daria um jeito de trancafiar a mulher num hospício, e usufruir de sua fortuna – pagando muito bem Sue e Mrs. Sucksby pelos serviços prestados.
Muita água vai rolar embaixo da ponte – e aí, quando a história dá uma grande reviravolta, começa a segunda parte, em que muitos daqueles acontecimentos mostrados na primeira são reapresentados, mas agora sob nova e diferente perspectiva, a da jovem Maud Lilly, a herdeira.
O filme não explicita isso, mas a ação se passa na Coréia ocupada pelo Japão
O diretor Chan-wook Park e sua co-roteirista Seo-kyeong Jeong elaboraram o roteiro deste A Criada seguindo à risca – repito – muitos pontos da história tal como contada no livro, inclusive esse esquema de dividir a narrativa em três partes, a primeira delas mostrando as coisas através dos olhos da criada e a segunda, através da visão da jovem herdeira.
Claro que o filme é uma obra que tem vida própria, e pode e deve perfeitamente ser apreciada como tal, como algo independente do livro em que se baseou. Mas, para mim, uma das coisas mais fascinantes deste filme bem feitíssimo é essa coisa fantástica de se pegar uma história britânica, passada no interior inglês no final do século XIX, e adaptá-la para a Coréia dos anos 30.
Chan-wook Park não se preocupou muito em facilitar as coisas para o espectador ocidental. Tudo bem: não tinha obrigação alguma de fazê-lo. Mas o fato é que eu fiquei bastante perdido no início do filme. Não conseguia entender por que aquela coisa de uma moça coreana ser enviada como criada de uma jovem herdeira japonesa.
O filme começa assim (com o aviso de que aquela é a Parte 1): uma bela jovem coreana, muito bela e muito jovem, é escolhida para se empregar como criada de uma herdeira japonesa que vive numa imensa, fabulosa propriedade com o tio.
A jovem está felicíssima com a oportunidade. Uma moça que está ao lado dela chora de tristeza por não ter sido a escolhida.
A escolhida chama-se na verdade Sook-Hee (o papel de Tae-ri Kim), mas será apresentada na casa dos novos senhores como Okju, que em japonês é Tamako. Num flashback que virá ainda bem no início, o espectador verá um moço bonito – um golpista, um trambiqueiro – na casa da senhora Sasaki (Hae-suk Kim), ela também uma grande golpista, trambiqueira, líder de um grupo de jovens ladras, malfeitoras. O jovem (Jung-woo Há) está se passando, junto ao tio de uma japonesa herdeira de gigantesca fortuna, por um nobre japonês, o conde Fujiwara. Ele, o falso conde Fujiwara, bolou o plano de seduzir a jovem herdeira, e usaria Sook-Hee no plano: ela iria se apresentar para o posto de criada da rica japonesa, conquistar sua confiança, e falar bem de Fujiwara para ela, vender a imagem dela para ela. Ajudá-lo, enfim, a conquistar o coração da herdeira.
Esse flashback apresentado, o espectador sabe então o que está se passando.
Pelos carros, por um ou outro detalhe, dá para perceber que aquilo ali se passa na Coréia ali pelos anos 1920, 1930. Não poderia ser os anos 1940 por causa da Segunda Guerra Mundial – não há referência alguma a guerra.
O difícil para o espectador ocidental é compreender aquele relacionamento entre coreanos e uma japonesa herdeira de fortuna vivendo na Coréia.
O filme não explicita isso, mas a ação se passa de fato nos anos 30, antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial, na época em que a Coréia estava sob domínio japonês.
Os planos podem não dar certo: a prática costuma dar muita risada da teoria
Chan-wook Park quis incrustrar na história criada pela galesa Sarah Waters um monte de elementos da história de seu país, os anos de domínio japonês sobre a Coréia. Quis, muito provavelmente, denunciar o comportamento servil, canino, hipócrita, fraco, de muitos de seus conterrâneos, que não apenas não se revoltaram contra o inimigo invasor como muito ao contrário fizeram de tudo para bajulá-lo, agradá-lo, para cair em suas graças e obter com isso algum benefício.
Para o espectador ocidental – perdão pela insistência nesse ponto, mas ele é muito importante –, que não é obrigado a saber que a Coréia esteva sob o domínio do japonês invasor desde 1910 e até 1945, fica um tanto confuso, difícil de se compreender o contexto histórico.
O contexto, apenas. A trama, não – a trama é mostrada de forma bastante clara.
A criada passa a ficar bem perto da rica herdeira Hideko (o papel de Min-hee Kim). Cada vez mais perto.
E aí o golpe tão bem planejado pelo falso “conde Fujiwara” começa a correr perigo.
As coisas que planejamos fazer, que bolamos na cabeça, na teoria, correm sérios riscos quando tentamos colocá-las em prática. A prática costuma dar muita risada da teoria – ou dar muito motivo de choro e ranger de dentes para quem fez os planos tão bem planejadinhos.
Adiantar aqui, relatar com todas as letras o que virá pela frente, ainda na primeira das três partes que compõem o filme, seria spoiler.
Mas talvez seja possível dizer que a trama deste A Criada, adaptada para a Coréia dos anos 30 a partir do livro sobre um plano de golpe no interior da Inglaterra da época da Rainha Victoria, tem algo do Quarteto de Alexandria, do também inglês Lawrence Durrell (1912-1990) – a estrutura da mesma história contada sob vários pontos de vista. E também tem algo da esplêndida canção de Tim Hardin que volta e meia ouço, desde que Joan Baez a gravou no disco Joan, de 1967, “The Lady Came From Baltimore”. “I was there to steal the money, take the rings and run, but I fell in love with the lady”, diz a canção triste.
E me parece que não chega a ser spoiler dizer mais uma vez que, ao final da primeira parte, há uma grande reviravolta e, na segunda, passamos a ver os acontecimentos sob a perspectiva de Hideko, a jovem herdeira.
Quarteto de Alexandria, “The Lady Came From Baltimore”, reviravoltas como em thrillers tipo Os Suspeitos/The Usual Suspects. Dá para dizer que A Criada tem a ver também com outra canção americana, aquela de Willie Nelson que diz que sempre há dois lados da mesma história.
Dois – ou até mais.
O filme é extremamente forte nas cenas de sexo e de violência
Há diversas características impressionantes no filme de Chan-wook Park. Fotografia e direção de arte são um deslumbre. As tomadas gerais de exteriores, as que mostram carros antigos rodando por estradas junto do mar e, do outro lado, vegetação densa, são literalmente de deixar o espectador sem fôlego. Não sei que tipo de lente ou de truque o diretor de fotografia Chung-hoon Chung soube usar, mas a cor do mar que ele mostra consegue ser mais bela que a do mar da Grécia, ou do Caribe, e o verde das matas é muito mais extasiante do que qualquer foto que a gente já viu de trecho virgem da floresta amazônica.
A direção de arte é impressionante. A riqueza de detalhes de cada aposento é algo absolutamente notável – e cada enquadramento da câmara, nessas cenas de interiores, parece ter sido pensado para realçar a beleza com que se reconstituiu a época.
As interpretações são todas magistrais. O trio central, Min-hee Kim (que faz a dama rica), Tae-ri Kim (a criada) e Jung-woo Ha (o falso conde) são extraordinários.
Mas talvez a característica mais estonteante do filme – além do fato de ele ser uma adaptação de história feita do outro lado do planeta – seja a forma com que ele mostra a violência e o sexo.
O cinema sul-coreano tem surpreendido o mundo com filmes de suspense e terror da maior explicitude possível. Aqui, Chan-wook Park ultrapassa limites do tolerável ao exibir cenas de violência explícita.
Faz décadas que o cinema vem esticando a corda da explicitude da violência. Arthur Penn chocou as audiências com Bonnie and Clyde em 1967; nos anos 2000, aquilo parece brincadeira de criança comparado aos slasher movies, os filmes de terror sanguinolentos que parte dos adolescentes adora.
Duvido um tanto se adolescente fã de slasher teria coragem de ver as cenas de tortura física da terceira parte de A Criada.
O mesmo fenômeno de explicitude cada vez maior acontece com relação às cenas de sexo.
As cenas de sexo de A Criada não chegam à explicitude dos filmes abertamente pornográficos hoje fartamente à disposição dos interessados na televisão e na internet. Não, não chegam. Mas são bastante ousadas, bastante fortes.
Aliás, aqui é bom lembrar que o título do livro que deu origem ao filme é Fingersmith. Fingersmith, ensina a Wikipedia em inglês, no verbete sobre o livro de Sarah Waters, é “petty thief”, pequena ladra, ladra de pequenas coisas. Punguista, batedor de carteira, eu diria. Ladrão que usa com arte os dedos. “É também claramente – diz a enciclopédia da Rede – uma alusão à masturbação feminina ou sexo entre mulheres, de maneira semelhante ao uso de gíria erótica no primeiro título da autora, Tipping the Velvet.” Claro: tipping the velvet – pegando o macio com a ponta dos dedos.
Insistindo: as cenas de sexo de A Criada não chegam à explicitude dos filmes dos canais de sexo. Nem se poderia de forma alguma dizer que são gratuitas, forçação de barra: são vitais para o desenvolvimento da trama. Mas são, sim, bastante ousadas. E sensuais. E belas. Ah, sim, belas. O sujeito é um grande diretor de cinema.
A atriz que faz a criada foi escolhida entre 1.500 jovens coreanas
Chan-wook Park nasceu em Seul em 1963, exatos 10 anos depois do fim da guerra que dividiu a Coréia em duas partes, a do Norte comunista, com influência da então União Soviética e da China, e a do Sul capitalista, que recebeu ajuda e investimentos dos Estados Unidos.
Consta que o jovem – que estudou Filosofia na Universidade Sogang – decidiu que iria trabalhar com cinema depois de ver Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958), de Alfred Hitchcock.
Rapidamente estabeleceu grande fama e respeito entre os críticos do Ocidente, e tornou-se queridinho dos três mais importantes festivais de cinema do mundo. Teve filmes admitidos para competir em Cannes, Berlim e Veneza; em Cannes, competiu pela Palma de Ouro com Old Boy (2004), Sede de Sangue (2009) e este A Criada. Em Veneza apresentou Lady Vingança (2005), e em Berlim Zona de Risco (2001). Pertenceu ao júri de Veneza em 2006 e ao de Cannes em 2017. E é membro da Academia de Hollywood.
Eis aqui algumas informações sobre o filme e sua produção, quase todas tiradas da página de Trivia do IMDb:
* Esta não foi a primeira vez que o romance foi filmado. Em 2005, apenas 3 anos após o lançamento do livro, a BBC pôs no ar uma minissérie de 3 capítulos, Fingersmith, com Sally Hawkins no papel de Sue Trinder, a ladra que se apresenta como criada, Elaine Cassidy como Maud Lilly, a rica herdeira, Imelda Staunton como Mrs. Sucksby, a chefe do clã de pequenas ladras, e Rupert Evans como o golpista Richard Rivers.
* Antes de começar a filmar, Park enviou o roteiro para a escritora Sarah Waters. Consta que ela gostou do que leu, mas indicou que achava mais apropriado que os créditos dissessem “inspirado no livro Fingersmith” do que “baseado em”.
* Ao contrário do título adotado em diversos países ocidentais, que se referem à personagem Sook-Hee (A Criada no Brasil e em Portugal, The Handmaiden nos EUA e na Grã-Bretanha), o título original coreano (que no nosso alfabeto é Ah-ga-ssi) fala da personagem Hideko – significa A Dama. Nisso, os distribuidores franceses foram mais fiéis: lá o filme se chamou Mademoiselle, senhorita.
* Os atores do filme, em sua grande maioria, são coreanos – inclusive os três principais, que fazem a criada coreana, a dama japonesa e o falso conde japonês. Parte dos diálogos é em coreano, e parte em japonês – os atores tiveram que estudar japonês na preparação para os papéis. Consta que, depois da apresentação do filme em Cannes, Min-hee Kim, que faz a dama, foi aplaudida por jornalistas japoneses.
* Para o lançamento em cinemas europeus, foram usadas cores diferentes nas legendas para realçar a distância entrre as duas línguas faladas: as legendas para as falas em coreano foram em branco, e as para o japonês, em amarelo.
* Cerca de 1.500 jovens atrizes se apresentaram para os testes para a escolha de quem faria o papel de Sook-Hee. A escolhida, Tae-ri Kim, nascida em 1990, estava portanto com apenas 24 em 2014, quando as filmagens começaram. Antes mesmo de saber que contracenaria com Min-hee Kim, declarou, em entrevista ao diretor, que aquela era sua atriz preferida. Deram-se muito bem, a mais nova, quase iniciante, que fez aqui sua estréia em longa-metragens, e a praticamente veterana. “Praticamente” porque Min-hee Kim, de 1982, é apenas 8 anos mais velha que a outra.
Ao receber o prêmio de Melhor Nova Atriz em um festival asiático, Tae-ri Kim o dedicou a Min-hee Kim, por quem “se apaixonou à primeira vista”.
* The Handmaiden se tornou o filme de Chan-wook Park de maior bilheteria nos Estados Unidos, e também o filme estrangeiro de maior bilheteria ali (excluídos os da Índia).
Um sucesso merecido. É um belo filme.
Anotação em novembro de 2017
A Criada/Ah-ga-ssi
De Chan-wook Park, Coréia do Sul, 2016
Com Min-hee Kim (Hideko, a dama rica), Tae-ri Kim (Sook-Hee, a criada, também chamada de Tamako e Okju), Jung-woo Ha (o “conde Fujiwara”), Jin-woong Jo (Kouzuki, o tio de Hideko), Hae-suk Kim (Sasaki), So-ri Moon (a tia de Hideko)
Roteiro Seo-kyeong Jeong & Chan-wook Park
Inspirado no romance Fingersmith, de Sarah Waters
Fotografia Chung-hoon Chung
Música Yeong-wook Jo
Montagem Jae-Bum Kim e Sang-beom Kim
Produção Moho Film, Yong Film
Cor, 144 min (2h24)
***1/2
Título em inglês: The Handmaiden. Em Portugal: A Criada. Na França: Mademoiselle.
O romance saiu no Brasil, sim; com o título “Na Ponta dos Dedos”. Li emprestado por uma amiga.
Ah, esquecia de dizer: tem um outro da Sarah Waters que gostei mais, uma história de fantasmas, contada de forma bem pessoal: “Estranha Presença”. A gente até se questiona se há fantasmas mesmo…