Todos se van

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4.0 out of 5.0 stars

A garotinha Nieve (Rachel Mojena), que vemos com 8 anos de idade, foi abençoada com uma inteligência fora de série e, de quebra, um fantástico talento para escrever. No entanto, foi também vítima de duas maldições terríveis, tenebrosas, das piores que pode haver.

A primeira: seus pais se separaram, não se entendem, brigam pela guarda da criança, o pai é estúpido, idiota, bêbado, violento.

A segunda: aconteceu de ela nascer em uma ditadura – a ditadura comunista de Cuba.

Nieve sofre tanto, mas tanto, mas tão horrivelmente, que por pouco não parei de ver este Todos se van. Não porque o filme seja ruim, fraco, qualquer coisa assim. Bem ao contrário: é um belíssimo filme. Cheguei a ter vontade de parar de ver porque me senti angustiado demais com a carga de sofrimento à qual a protagonista da história é submetida.

Quando o filme passava um pouco da metade, percebi que aquela história tão absolutamente amarga, tão nauseantemente, violentamente triste não poderia ter sido criada pela imaginação de um escritor ou grupo de escritores. Comentei com Mary: isso deve se basear em história real.

Só nos créditos finais, e nas leituras que a gente faz depois que o filme termina, vem a confirmação. Sim, Todos se van, o filme do colombiano Sergio Cabrera, lançado em 2015, se baseia no romance de mesmo nome da cubana Wendy Guerra. Todos se van, o romance que Wendy Guerra publicou originalmente na Espanha, em 2006 (e jamais foi publicado em seu país natal), é, sim, autobiográfico.

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O horror familiar e o horror geral, da ditadura, se juntam contra a criança       

Todos se van é um libelo, um panfleto contra os dois horrores – os pais que não conseguem se entender e fazem sofrer o filho, o pai violento que não só não dá carinho como ainda por cima dá tapa no filho, e a ditadura.

A principal grandeza do filme – e este é um filme grande, um filmaço – me parece ser exatamente essa: a de misturar o horror familiar com o horror maior, do país, da ideologia que, em nome da liberdade, da justiça social, da construção do homem novo, transforma a nação inteira em campo de concentração, em gulag. E faz de cada funcionariozinho, cada guarda da esquina, em uma pequena autoridade, um aspirante a ditador. De cada vizinho um espião, um policial disfarçado, um acusador, um delator, um dedo-duro.

O horror que transforma a vida da garotinha Nieve em um inferno é o resultado da junção das duas coisas, a privada e a pública, uma realimentando a outra.

Batem-se num liquidificador as imbecilidades de um pai machista, violento, e um regime opressor, de uma verdade única, e está feito e perfeito um coquetel de absurda violência que fica ainda mais forte quando encontra uma criança inteligente – a inteligência costuma não combinar com a conformidade, a submissão às palavras de ordem de um centralismo que se diz democrático mas é puramente autoritário.

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Poucos filmes retrataram tão bem o peso da ditadura na intimidade do lar

Todos se van é certamente um dos filmes que retratam, demonstram, radiografam com maior firmeza, maior clareza, e maior indignação, o peso negativo dos regimes autoritários na intimidade, no dia-a-dia da vida em família.

Que mostre uma história acontecida de verdade em Cuba, que seja um filme tão virulentamente antiditadorial feito na América Latina em 2015, em meio a tanto bolivarismo, quando parece que este pedaço do mundo se transformou em latrina onde se jogaram fora os restos de ideologias que nas outras partes do planeta já se provaram inúteis, fúteis, incapazes de realizarem um bilionésimo do que prometem, danosas, perigosas, furadas – tudo isso só aumenta a importância e a seriedade do filme.

Como se não precisasse de mais outro valor, Todos se van ainda se insurge contra estereótipos vencidos, ultrapassados, calhordas, reacionários, isso sim, com relação a comportamento, às posturas machistas, moralistas.

Não é pouca coisa. Não, de forma alguma é pouca coisa.

É um grande filme – e um filme da maior importância.

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A pequena atriz Rachel Mojena é um encanto, uma simpatia

A ação começa numa praia linda, de sonho. Um letreiro informa que é Cienfuegos, Cuba, 1979. A garotinha Nieve está escrevendo em seu diário – e a menina Rachel Mojena, que a interpreta, é bonita, simpática, agradável, e o espectador gosta dela de cara.

Como se fosse um livro, há uma espécie de epígrafe, nesse filme baseado em romance autobiográfico de autoria de uma mulher que escrevia bem em seu diário desde que tinha oito anos de idade. É uma maravilhosa frase de Charles Baudelaire que eu não conhecia:

– “A pátria é a infância.”

Caetano Veloso, eterno citador, quase tão citador quanto eu mesmo, cantou que “minha pátria é minha língua”. Não sabia se essa frase era dele, ou se ele estava citando outro autor sem dar o devido crédito – algo em que Caetano é mestre. Meu amigo José Luís Fino me informou que é de seu conterrâneo Fernando Pessoa a frase “Minha pátria é a língua portuguesa.

“Minha pátria é minha língua”, “Minha pátria é a língua portuguesa” é um conceito impressionantemente belo e impressionantemente forte.

“A pátria é a infância” é ainda mais belo e mais forte.

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A mãe está casada de novo, e bem casada. O pai se corrói de ciúme, de inveja

Em seu diário, Nieve fala bem de Dan – e logo Dan (Scott Cleverdon) aparece na praia, vestido só de cueca, e os dois entram na água. Brincam, fazem estripulia.

De dentro de uma belíssima casa, no alto de uma colina debruçada sobre a praia, um furioso, invejoso Manuel (Abel Rodríguez, bastante fraco), vê a cena, e discute sobre ela com Eva (a espanhola Yoima Valdés, bela e competente)

O filme não nos explicitará tudo detalhadamente – teremos que ir entendendo as relações aos poucos, enquanto vamos vendo as sequências seguintes.

Manuel e Eva tinham sido casados no passado. É bem provável que eles fossem de Havana. Agora, 1979, quando a filha deles, Nieve, está com oito, estão separados já faz um bom tempo.

(Wendy Guerra, que contou parte da história de sua vida no romance que deu origem ao filme, nasceu exatamente em 1970. Estaria, como Nieve, aí com oito, nove anos de idade em 1979.)

Eva é uma artista plástica, cria maravilhosamente marionetes – e é fantástico que em espanhol marionetes sejam títeres…

Manuel é escritor.

Haviam se separado, então, fazia bastante tempo. Manuel tinha se radicado em Escambray, que é – pelo que dá para entender – um dos muitos acampamentos rurais estabelecidos por gente de confiança do governo implantado a partir de 1959, com a destituição da ditadura sanguinária de Fulgencio Batista e a chegada ao poder dos revolucionários barbudos comandados por Fidel Castro e Ernesto Che Guevara.

Eva estava agora casada com Dan, um engenheiro sueco levado até a ilha pelos russos, para participar da construção de uma usina nuclear ali em Cienfuegos. O cargo especial de Dan dava a ele direito de viver naquela casa majestosa, agora pertencente ao governo, diante de uma belíssima praia.

O espectador vê, já pelo primeiro diálogo entre Eva e Manuel, que ele ainda a ama – ou precisa da presença dela perto dele. Eva já está muito longe do ex-marido, ama o engenheiro sueco que vive com ela e trata muitíssimo bem sua filha única.

Manuel se corrói pela falta de Eva, pela inveja do sueco que come a ex-mulher e ainda por cima nada só de cueca com sua filha.

Fica sempre absolutamente claro para o espectador, o tempo todo, que Dan é um excelente padrasto para Nieve. Que Dan não tem absolutamente nada a ver com um molestador de crianças. Que ele de fato tem afeto e carinho pela garotinha filha da mulher que ama.

O fato de ele nadar de cueca, a possibilidade de que ele seja um pedófilo, um criminoso, essa ignomínia toda será usada quando Manuel levar à justiça sua vontade de ter a guarda da filha.

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Quando se leva para o Estado a decisão sobre a guarda de filhos, todos sofrem

Ao falar de outros filmes, já comentei aqui que é um absurdo que a questão da guarda dos filhos seja decidida pelo Estado – um juiz, um júri, um conselho tutelar, seja lá o que for.

Só quando pai e mãe se demonstram absolutamente incompetentes, imprestáveis, não merecedores de terem sido pai e mãe, é que a questão da guarda chega ao Estado.

Quando se leva para o Estado a questão da guarda de uma criança, todos sofrem – mas quem sofre mais, evidentemente, obviamente, é a pobre criança, que não merecia ter aqueles pais incompetentes, imprestáveis.

Quando a guarda dos filhos é decidida por um juiz formado, estudado, conhecedor das leis, já é ruim.

A Cuba “revolucionária” do final dos anos 1970 pretendia criar el hombre nuevo, mas só se conseguiu, como sempre se faz nos regimes autoritários, antidemocráticos, exacerbar o pior que los hombres viejos sempre tiveram – machismo, autoritarismo, inveja, vingança, ódio, pequenez, idiotice.

A disputa de Manuel e Eva pela guarda da pequena Nieve vai ser decidida por um “juiz popular” – alguém que se alistou no Partido, que puxou o saco de alguns comissários do Partido e com isso ganhou o cargo, a boquinha. Ao juiz popular escolhido pelo partido único vão depor o chefe do Partido em Escambray, Armando (Félix Antequera), que dirá que Manuel é um revolucionário autêntico, e o chefe de Eva na rádio em que ela trabalha, ele também, é claro, um membro do Partido, puxa-saco dos comissários, que entregará ao “magistrado” fotos em que Dan aparece de cueca na praia.

Não poderia haver dúvida alguma de qual seria a decisão do “juiz popular”.

Nieve é arrastada pelo pai para Escambray – e, lá, sofrerá feito uma condenada, comerá o pão que o diabo amassou. Foi aí que quase parei de ver o filme, incomodado por ver tanto sofrimento.

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A autora do romance autobiográfico continua morando em Cuba

Todos se Van foi o primeiro romance escrito por Wendy Guerra, em 2006, quando a autora estava com 36 anos de idade. Depois de sair na Espanha, o livro teve edições na França, Itália, Alemanha, Bulgária, Suécia e Estados Unidos. Depois deste, ela já lançou três outros romances. Só um deles, Posar Desnuda en La Habana, de 2010, foi publicado em Cuba.

Parece ser daquele tipo de gente tipo Yoani Sánchez, que, como diz o verso de Leonard Cohen, tenta mudar o Sistema pelo lado de dentro: embora tenha feito cursos em Paris, Nova York e Los Angeles, e escreva para o jornal espanhol El Mundo, continua vivendo em Cuba.

Em 2010, recebeu do governo francês o título de Chevalier des Arts et des Lettres.

O diretor colombiano Sergio Cabrera, que é também um dos autores do roteiro de Todos se Van, tem uma vida digna de filme. Nasceu em Medellín, em 1950, filho de um ator espanhol comunista fugido da ditadura franquista e uma atriz colombiana. Em 1960, a família se mudou para a China; aos 16 anos, bem no início da Revolução Cultural de Mao Tsé Tung, o garoto se tornou membro da guarda vermelha.

Chegou de volta ao país natal com toda a ideologia da China de Mao, e dos 19 aos 23 anos, participou do grupo guerrilheiro Exército Popular de Libertação. Voltou à China nos anos 1970, mas já então decidido a estudar filosofia e fazer cinema. De lá foi para Londres, onde estudou na London Film School.

Já dirigiu 12 curta-metragens, diversos documentários e séries para a televisão. Todos se Van foi seu sexto longa-metragem.

Pelo que se vê neste seu filme maravilhoso, já não tem mais admiração por regimes totalitários. Muito ao contrário.

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Este é um filme que deve, que precisa ser visto

No site de um jornal colombiano, El País (o mesmo nome do grande jornal espanhol), encontro uma crítica assinada por David Franco que termina assim:

“Rodada em Cartagena e Ciénaga, devido à proibição de fazê-lo em Cuba, Todos se Van, apesar da insistência no social e no ideológico, apela principalmente ao emocional, e nessa busca encontra toda a sua força. Cabrera, que passou parte de sua infância na China comunista dos anos 60, conhece de primeira mão os temores da infância em meio às turbulências provocadas pelos excessos do poder. Permitindo-se uma enorme liberdade na adaptação da novela, o diretor colombiano conseguiu criar um comovedor relato que tem Cuba como cenário mas que poderia se desenrolar em qualquer outra parte do mundo. Afinal, não há país que não tenha passado por revoluções e momentos de grande ilusão. E não há infância que não termine com a difícil aterrissagem na realidade. Infelizmente o filme ficou pouco tempo em cartaz, como costuma acontecer com frequência devido à pressão das superproduções de Hollywood. No entanto, quem tiver a oportunidade de ver o filme não deve deixar de fazê-lo.”

Assino embaixo: este é um filme que deve ser visto. Um belo e importante filme.

Anotação em maio de 2016

Todos se van

De Sergio Cabrera, Colômbia, 2015

Com Rachel Mojena (Nieve)

e Yoima Valdés (Eva), Abel Rodríguez (Manuel), Scott Cleverdon (Dan), Indhira Serrano (Chela), Mateo Giraldo (Yuri, o filho de Chela), Félix Antequera (Armando), Dunia Mattos (professora em Escambray), María Teresa Carrasco (Marlen, a funcionária do orfanato), Caleb Casas (Mauricio), Carlos Ever Fonseca (Luis), Alison García (Laura), Ulises Gonzalez (Juez Generoso), Bárbaro Marín (funcionário do governo), Glenmy René Rodríguez (Saúl)

Roteiro Sergio Cabrera, Ramón Jimeno & Laura Martel

Baseado no romance homônimo de Wendy Guerra

Música Iván Wyszogrod

Montagem Pablo Barbieri Carrera

Produção A Cuatro Manos, Dramax, Jimeno Acevedo

Cor, 100 min

****

Um comentário para “Todos se van”

  1. Gostava muito de ver este filme mas infelizmente não chegou cá.
    Fui tentado a escrever aqui por causa da citação que o Sérgio faz de Caetano Veloso. Fernando Pessoa escreveu isto que é citado constantemente: Minha patria é a lingua portuguesa.
    Curioso não é verdade?

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