Rosa Morena é o resultado da combinação de esforços de brasileiros e dinamarqueses. Provavelmente a única co-produção Brasil-Dinamarca até hoje, teve o roteiro original escrito a quatro mãos por um brasileiro e um dinamarquês, depois reescrito por outro dinamarquês.
Toda a ação se passa no Brasil, em São Paulo – e o filme foi todo rodado aqui. O ator principal é dinamarquês, há um sueco que interpreta outro dinamarquês e o resto do elenco é todo brasileiro.
A explicação para a nada usual colaboração Brasil-Dinamarca é muito simples: Carlos Augusto de Oliveira, o diretor do filme e um dos dois autores da primeira versão do roteiro (ao lado de Morten Kirkskov, o autor da idéia original), mora em Copenhagen desde o ano de 2000.
Ele é capixaba de Vitória, nascido em 1974. Estudou arquitetura no Rio e, aos 26 anos, mudou-se para a Dinamarca, onde passou a estudar cinema. Como trabalho de conclusão de curso, co-escreveu (ao lado do mesmo Morten Kirkskov) e dirigiu um curta-metragem de 28 minutos, Tre Somre, Três Verões, em 2006. Antes, já havia feito seis curtas.
Este Rosa Morena, lançado em 2010, foi seu primeiro longa – e, estranhamente, o único, até agora. Não voltou a filmar ainda.
Disse “estranhamente” porque em seu longa de estréia Carlos Augusto de Oliveira demonstra talento, sensibilidade e – apesar de ser tão jovem – maturidade. Sabe muito bem dirigir atores: o elenco está todo bastante bem, algo não tão comum assim em filmes brasileiros. Opta por uma narrativa linear, simples, direta, escorreita, sem firulas, fogos de artifício.
Um homem com uma criancinha no aeroporto. Mas ele não embarca
Rosa Morena – que em março de 2016 estava disponível no Now da TV a cabo – aborda um tema delicado, importante, que já foi tratado mais ou menos recentemente em um filme francês, Baby Love/Comme les Autres (2008), de Vincent Garenq, e em um mexicano, A Outra Família/La Otra Familia (2011), de Gustavo Loza. Como nesses dois outros filmes, o protagonista é homossexual e quer adotar um filho.
A primeira imagem que vemos é um close-up de um bebê de pele mulata, que não tem nem um ano de idade, em um moisés, aquele carrinho-bercinho portátil. Ao lado do bebê está um homem aí de uns 40 anos, branco, olhos azuis. Uma nova tomada, em plano geral, mostra que os dois estão numa sala de embarque de aeroporto. Os alto-falantes fazem a última chamada para o vôo da SAS com destino a Copenhagen, primeiro em português, depois em inglês.
O homem continua ali, e sua expressão é grave, séria, preocupada. O espectador percebe perfeitamente que ele desistiu, não vai embarcar.
A tela é tomada pelas duas palavras que foram o título do filme, Rosa Morena. Corta, e o homem, Thomas (o papel de Anders W. Berthelsen), está em um táxi, passando pela Via Dutra e chegando à Marginal do Tietê, em São Paulo.
Fica absolutamente claro para o espectador que houve um corte no tempo, que é um flashback, que estamos agora vendo eventos anteriores àquele dia em que o Thomas desistiu de embarcar para Copenhagen no Aeroporto de Cumbica.
Não saberia explicar por que isso fica tão absolutamente claro, mas o fato é que fica. Os roteiristas Carlos Augusto de Oliveira & Morten Kirkskov, e depois Jens Dahl, que deu a forma final, optaram pelo que eu chamo de narrativa laço: a história começa em um determinado momento, quando acontece algo forte, de impacto. Aí volta-se atrás, e conta-se o que aconteceu antes daquilo.
Quando o filme se aproxima do fim, aí então o espectador reverá aquela sequência mostrada na abertura.
Rosa Morena dura 90 minutos. O filme vai estar aí beirando os 75, 80 minutos quando veremos de novo Thomas e o bebê num saguão de embarque no Aeroporto Internacional de São Paulo em Cumbica.
Thomas quer há tempos adotar um filho, mas tem dificuldades
Thomas é arquiteto – assim como o co-roteirista e diretor capixaba agora quase dinamarquês. É bem sucedido, mas um tanto frustrado, desencantado com os rumos que a carreira foi tomando. Viajou para o Brasil para rever um grande amigo, Jakob (David Dencik, à direita na foto acima), um dinamarquês que se casou com uma brasileira, Tereza (o papel de Vivianne Pasmanter, na foto abaixo), teve com ela um filho que está com uns 9 anos, e agora vive em um bairro não identificado de São Paulo, onde tem um bar – mas sonha em abrir uma pousada na Bahia.
O visitante é recebido com grande festa pelo amigo e pela mulher dele, que é velha conhecida – não se diz expressamente, mas fica claro que ou Thomas já havia vindo ao Brasil antes, ou o casal já o visitara na Dinamarca. Fica hospedado na casa classe média deles.
Depois de algum tempo, Thomas revela para o amigo sua grande preocupação, seu grande desejo: há tempos quer adotar uma criança, mas tem tido dificuldades, por ser gay e solteiro. Imaginou que talvez no Brasil pudesse conseguir uma criança para adotar.
Thomas e Jakob visitam um advogado brasileiro, para ouvir sobre as possibilidades de uma adoção legal.
Thomas acaba se oferecendo para auxiliar Tereza na ONG para a qual ela trabalha, uma organização que ajuda gente pobre das favelas de São Paulo.
Haverá uma experiência barra pesadíssima, violenta, traumática.
Depois, Thomas conhecerá Maria (o papel da bela Bárbara Garcia), uma jovem que já teve vários filhos, não tem condições de cuidar de todos, e está grávida novamente. Através do cunhado dela, Denilson (Pablo Rodrigues), casado com a irmã dela, Larissa (Georgina Castro), Thomas, com o auxílio de Jakob, tentará fechar um acordo financeiro para ficar com a criança que Maria espera.
A adoção é uma questão delicada, que a sociedade ainda não conseguiu resolver direito
O cinema, a literatura, as novelas e a vida real mostram que esses acordos envolvendo adoção de bebê em troca de dinheiro em geral resultam em problemas, traumas, conflitos, confusão.
Essa é uma questão – a adoção de filhos – que a humanidade ainda não soube muito bem resolver. Teoricamente, deveria ser fácil: de um lado, há muita mãe que não está preparada para ter o filho, não tem as mínimas condições de criar o filho, como é o caso de Maria. De tantas e tantas Marias, aos milhares, aos milhões. De outro lado, há pessoas que têm todas as condições, as materiais e as não, para adotar uma criança, dar a ela um lar saudável, conforto material, afeto, amor.
Então, teoricamente, deveria haver maneiras fáceis, rápidas, tranquilas de fazer encontrar quem tem o filho e não o quer com quem não tem o filho e o quer.
Mas são muitos, muitíssimos os casos em que não dá certo.
Os espectadores certamente ficarão com pena de Thomas. Eu fiquei.
Thomas é uma boa pessoa. Tem excelente caráter, e um imenso coração. Mas as coisas não são nada fáceis para um gringo num país completamente diferente do dele, que não domina a língua, que não conhece os costumes.
Thomas está presente na imensa maior parte das tomadas do filme. E o filme funciona em grande parte graças ao talento do ator Anders W. Berthelsen. A interpretação dele é primorosa. O olhar dele revela para o espectador os sentimentos do personagem – o medo, as dúvidas, os temores, a preocupação, a tristeza.
É de se estranhar que a carreira da bela Bárbara Garcia não tenha deslanchado
Anders W. Berthelsen é de 1969, apenas cinco anos mais novo que o diretor Carlos Augusto de Oliveira; tem uma filmografia de mais de 40 títulos, e já trabalhou com diretoras importantes. Com Kathryn Bigelow, trabalhou em O Peso da Água/The Weight of Water (2000). Com Lone Scherfig, fez Italiano para Principiantes (2009).
Está muito bem, igualmente, o ator David Dencik, nascido na Suécia em 1974, e que tem uma filmografia extensa de quase 80 títulos que inclui filmes importantes – O Espião Que Sabia Demais/Tinker Taylor Soldier Spy (2011), Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (2001), o primeiro da trilogia Millennium original sueca, O Amante da Rainha (2012).
Não está mal, de forma alguma, a jovem e bela Bárbara Garcia, que, antes de ser escolhida para o papel fundamental de Maria, havia trabalhado na novela A Escrava Isaura, a versão de 2004 da Rede Record.
E o papel não é nada fácil. Maria é uma jovem alegre, festeira, que adora beber, dançar e dar – é extremamente promíscua. E bastante irresponsável. Uma menina grande, uma mulher que, apesar de ter tido tanto filho, não amadureceu, permaneceu uma adolescente.
É de se estranhar que a carreira dessa moça não tenha deslanchado.
Um detalhinho: nos créditos finais, o espectador ouve duas versões de “Rosa Morena”, a canção deliciosa de Dorival Caymmi. Uma com Mart’nália, e uma com uma gringa cujo nome não guardei. Faz sentido: Mart’nália está muito mais próxima do universo de Maria, a personagem, que João Gilberto ou o próprio Dorival Caymmi, cujas interpretações da música são, é claro, duzentas mil vezes mais belas que a da filha de Martinho da Vila.
Rosa Morena, o título do filme, vem, evidentemente, da canção de Caymmi. Maria gosta da música, e é por causa dela que resolve dar à filhinha que Thomas quer adotar o nome de Rosa.
O diretor teve a coragem de fugir da obviedade da beleza do Rio
Achei no IMDb um bom comentário sobre o filme escrito por um canadense que se assina pelo estranho pseudônimo de li0904426. “Acabei de ver Rosa Morena, apresentado na noite de abertura do Festival de Filmes Brasileiros de Toronto. Não estava esperando muito desse filme depois de ter lido no programa do festival: Thomas, um dinamarquês de seus 40 anos, quer desesperadamente ser pai. Maria é bela, charmosa e grávida, e pobre demais para custear a vida de seu bebê. O plano é simples: Thomas vai pagar dinheiro para Maria e levar o bebê dela para seu país. (Corto aqui uma frase que pode ser considerada spoiler.) Sim, um tanto esfarrapado, previsível… Mas na realidade, não. O filme é denso e delicado. A principal razão para isso é a atuação fantástica do ator Anders W. Berthelsen como Thomas, um arquiteto bem sucedido. Ele tem a habilidade de mostrar seu jeito inocente, doce, de boa gente, num país estrangeiro, e também a tristeza, as dúvidas de seu personagem.”
É uma excelente análise, sintética e precisa.
De fato, o filme é delicado – embora mostre muito da violência nas favelas brasileiras. E Anders W. Berthelsen é a alma do filme – ele de fato transmite com brilho as emoções desse sujeito bom caráter de país rico enfiado até o pescoço na miséria profunda do lado Zimbábue de São Paulo.
E a escolha de São Paulo como cenário da história é muito interessante. Carlos Augusto de Oliveira e seus colaboradores poderiam perfeitamente ter escolhido o Rio de Janeiro, que é duzentos milhões de vezes mais bonito. Aquelas paisagens deslumbrantes do Rio de Janeiro que sempre continua lindo, vistas dos morros das favelas, seja da Babilônia, seja do Dona Marta, seja da Rocinha, seja do Vidigal, seguramente seriam um excelente atrativo para o público dinamarquês e europeu em geral.
Pois o diretor conseguiu, como bem disse Mary, fugir da obviedade dos morros cariocas para mostrar a miséria das favelas desta cidade feia, selva de pedra que é São Paulo.
Mostrou que, além de talento e sensibilidade, tem coragem.
Por que raios será que Carlos Augusto de Oliveira não encontrou produtores para financiar outros filmes de qualidade como este aqui?
Anotação em março de 2016
Rosa Morena
De Carlos Augusto de Oliveira, Brasil-Dinamarca, 2010
Com Anders W. Berthelsen (Thomas)
e Bárbara Garcia (Maria), David Dencik (Jakob), Vivianne Pasmanter (Tereza), Pablo Rodrigues (Denilson), Georgina Castro (Larissa), Iben Hjejle (Christine, a irmã de Thomas), Otávio Martins (o advogado)
Roteiro Morten Kirkskov & Carlos Augusto de Oliveira e Jens Dahl
Baseado em idéia de Morten Kirkskov
Fotografia Philippe Kress
Música Frithjof Toksvig
Montagem Anja Farsig
Casting Maria Julia Andrade
Produção Fine & Mellow Productions, Ginga Eleven.
Cor, 90 min
***
simplesmente amei o filme.
Não me saiu da cabeça por dias.
assisti na Tv,.
quero mais filmes assim,Carlos Augusto de Oliveira.