Nem mesmo Franz Kafka seria capaz de criar essa história de tamanho absurdo kafkiano que viria a acontecer de verdade ali mesmo, na sua cidade natal, a bela Praga, e que Costa-Gavras, Monsieur Cinéma Politique, transformou em um filme em tudo por tudo extraordinário, eletrizante, importantíssimo, em 1970.
Nem mesmo George Orwell, Aldous Huxley ou Ray Bradbury conseguiriam construir uma trama de distopia tão apavorante, tão cruel, tão desumana, quanto a história real conduzida na Checoslováquia do início dos anos 1950 pelo governo e pelo Partido Comunista checo, sob as ordens da União Soviética de Stálin.
O então vice-ministro de Relações Exteriores, comunista de carteirinha e impecável passado de fidelidade aos ideais do Partido, foi torturado física e mentalmente, sem parar, ao longo de meses, para confessar que fazia parte de uma conspiração paga pelo imperialismo norte-americano contra o governo democrático da República da Checoslováquia e contra os companheiros da União Soviética.
O filme se concentra no personagem do vice-ministro de Relações Exteriores, Artur London, conhecido pelos amigos como Gérard – e interpretado magistralmente por Yves Montand. Mas mostra que aquela loucura, aquela total falta de sentido, aquela trama kafkiana, envolveu diversos ministros e outras das mais altas autoridades da Checoslováquia de então, inclusive alguns, como o próprio secretário-geral do PC checo, que foram os responsáveis pela prisão de Gérard-Artur London.
É como a cobra devorando seu próprio rabo.
Nos regimes totalitários, o passado é mutável: o ditador de plantão revisa, reescreve a História a seu bel prazer – exatamente como Orwell havia previsto. Durante o stalinismo, Trotsky ia sendo retirado das fotos do passado; quem caía em desgraça ia sendo eliminado dos documentos oficiais, passava de herói do povo a traidor do socialismo.
Quando A Confissão já passa da metade de seus 139 minutos, há um diálogo especialmente emblemático entre um expert em interrogatório de preso político, Kohoutek (uma bela interpretação de Gabriele Ferzetti), e Gérard. Não está ipsis litteris – mas é exatamente o que significa.
O interrogador: – “Demonstre que você é um bom comunista, diga tudo o que o Partido espera que você diga.”
O preso: – “Mas se vocês estão querendo que eu confesse que sou um traidor trotskista, como pode invocar minha fidelidade ao Partido?”
Kafka puro – mas ainda mais cruel e espantoso do que as histórias de Franz Kafka, porque aconteceu de verdade.
Uma belíssima obra de arte, um documento histórico da maior importância
Hoje, em 2016, 46 anos depois de seu lançamento, o filme é um documento histórico absolutamente extraordinário – além de ser uma belíssima obra de arte.
Na época em que foi lançado, foi um furor, um choque, uma bomba atômica: como assim, esse formidável time de gente esquerdista, o cineasta greco-francês Constantin Costa-Gavras, o casal 20 da esquerda francesa Yves Montand-Simone Signoret, e mais o comunista espanhol Jorge Semprun, unidos num filme que mostra tortura num regime comunista?
Traição, traição, traição! Estão se vendendo para o imperialismo! Abandonaram a defesa do povo, a construção do socialismo!
Três homens da polícia política seguem ostensivamente o protagonista
O nome do protagonista da história real aparece de cara nos créditos iniciais do filme. Uma plano geral mostra a fachada de um belíssimo, imponente prédio muito antigo, em que há soldados fardados – a indicação clara de que é um prédio público importante. Depois dos nomes de Yves Montand e Simone Signoret (os dois foram casados durante 34 anos, até a morte dela, em 1985) e do título do filme, está lá: “Baseado na narrativa de Lise e Artur London, Editions Galimard”.
E em seguida: “Adaptação e diálogos Jorge Semprun”.
Um homem elegante, de terno e gravata, sobretudo azul marinho, sai do prédio oficial, começa a descer as escadas, pára para observar: à sua esquerda, estacionado bem perto dali, está um carro preto e junto dele há três homens vestidos exatamente da mesma forma – aquelas capas de gabardine marrons, chapéus. Está escrito no carro, nas roupas deles, nos chapéus, nas caras: agentes da polícia política.
O homem interpretado por Yves Montand termina de descer as escadas, olha fixamente para os três policiais, entra em seu carro.
O nome Artur London não será mencionado; ele será tratado como Gérard, seu apelido, e o espectador levará algum tempo para saber que ele é o vice-ministro de Relações Exteriores.
Não há o letreiro explicando o quando e o onde – só ao longo da narrativa será explicitado que estamos em Praga, Checoslováquia, 1951.
Quando Gérard liga seu carro e parte do Ministério rumo à sua casa, os três policiais entram no seu carro e passam a segui-lo. É a polícia política, a política secreta, mas os policiais não fazem segredo algum: mostram-se, exibem-se. Seguem o homem de forma ostensiva, nítida, clara.
Vão tirando os pertences de seu bolso – entre eles, a carteira do Partido
A prisão em si, o ato de prendê-lo leva ainda alguns dias.
Ele está indo para o trabalho em seu carro, numa manhã; pelo retrovisor, vê o carro dos policiais que o segue. Surge um segundo carro, ele é fechado. Seis policiais o retiraram do seu carro, o enfiam num deles, e o levam para um prédio que funciona como presídio para presos políticos. Não é uma prisão oficial, normal – é um imóvel imenso, gigantesco, adaptado para os propósitos da polícia política.
Os funcionários do Estado são muitos, e brutos, brutais. Botam uma venda nos olhos dele, o algemam, o arrastam por longos, intermináveis corredores. Ele é alto, bate com força a testa numa viga mais baixa, os policiais não dão a mínima atenção a isso.
Numa sala, mandam que ele tire toda a roupa, entregam para ele roupas surradas, simples, velhas.
Diante de um jovenzinho que parece ser a maior autoridade ali, ele exige ver alguém responsável por aquele lugar, alguém do Partido. A resposta, aos berros, é: – “Cale a boca! Você não tem o direito de pedir nada”.
Vão tirando o conteúdo de seus bolsos. Alguém está anotando, inventariando – como se a prisão fosse absolutamente legal, como se ele fosse receber de volta, intactos, todos os seus pertences ao sair da prisão.
Entre os objetos está sua carteira do Partido.
Ao longo de toda a narrativa, veremos muito isso: o aparelho do Estado totalitário fazendo de conta de que tudo aquilo é absolutamente dentro das leis de um país civilizado e livre.
Ao close-up do símbolo comunista, fundem-se imagens da Revolução em marcha
É jogado num cubículo, sua cela, algemas prendendo os braços por trás do corpo. Os guardas berram para que ele ande – “é proibido ficar parado!” Depois de algum tempo, ele pára por um momento.
– “O Partido tem sempre razão” – vemos Simone Signoret, que interpreta Lise, sua mulher, dizer a ele, enquanto tomam café da manhã, seguramente alguns poucos dias antes de ele ter sido efetivamente preso. – “Tudo será esclarecido. Você deve se submeter às regras para provar sua boa fé.”
A seqüência desse flashback – uma lembrança que ocorre a ele, enquanto caminha pela cela, no momento em que parou de andar – é bem rápida. Logo voltamos a ver seu rosto.
É um recurso que o roteirista Jorge Semprun usa várias vezes ao longo do filme, e que Costa-Gavras gosta de utilizar em várias de suas obras. É uma marca registrada dele – embora, claro, não seja exclusiva de seu cinema. Durante uma conversa, uma caminhada, num momento qualquer, o personagem se lembra de alguma coisa, uma cena – e a lembrança dele surge na tela, nítida, para que o espectador a conheça.
Por ter ficado parado durante um minuto, talvez dois, lembrando-se do que Lise havia lhe dito num café da manhã poucos dias antes, Gérard é brutalmente advertido por dois guardas uniformizados e armados que entram rapidamente na cela e o empurram com violência contra a parede. “Se você parar de andar nós vamos quebrar sua cara”, berra um deles.
Gérard olha para o boné do guarda que está a 30 centímetros do seu rosto. No meio do boné, logo acima da testa do homem brutal que está berrando ordens a ele, está a estrela vermelha com a foice e o martelo.
Fundem-se ao super close-up da estrela vermelha com a foice e o martelo cenas em preto-e-branco, cenas históricas, de cinejornalismo, tanques, multidões, a Revolução Comunista em marcha.
Estamos com exatos 17 minutos de filme, e o filme de Costa-Gavras solta faíscas de genialidade.
Um exército sem fim de homens pagos pelo governo para quebrar o moral dos presos
Ao longo de várias das sequências, enquanto revia agora A Confissão para fazer esta anotação, ia me ocorrendo como era grande, imensa a máquina da polícia política. Como eram absolutamente numerosas, inchadas, as equipes de policiais nas ruas, de guardas carcereiros, de interrogadores dos mais diversos tipos.
Como gastava muito dinheiro do povo trabalhador o regime da ditadura do proletariado para perseguir, prender e torturar todos os inimigos – ou os que o regime entendia que eram inimigos.
Bem no início de outro filme igualmente extraordinário sobre as ditaduras comunistas na Europa, A Vida dos Outros/Das Leben der Anderen (2006), um letreiro informa o onde e o quando, ao contrário deste A Confissão. O letreiro diz o seguinte: “1984, Berlim Oriental. A glasnost não está à vista. A população da RDA é mantida sob controle estrito pela Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental. Sua força de 100 mil empregados e 200 mil informantes salvaguarda a Ditadura do Proletariado. Seu objetivo declarado: ‘Saber de tudo’.”
100 mil empregados, 200 mil informantes!
A polícia secreta da Checoslováquia parece ter exército semelhante, segundo o que mostra A Confissão.
E me impressionou demais, de novo, e como se estivesse vendo o filme pela primeira vez, a brutalidade de cada um dos carcereiros, uniformizados ou não, de cada um dos interrogadores – de cada um daquele exército sem fim de homens pagos pelo governo para quebrar o moral, a espinha dorsal dos presos.
Todos berram ordens, em voz altíssima.
Nos regimes totalitários, cada guardinha de quarteirão se julga uma autoridade. O Estado ditatorial dá a ele esse poder.
A tortura era brutal, violenta, mas dispensava o uso de instrumentos como pau-de-arara
Nas ditaduras de direita que assolaram os países latino-americanos nos 60 e 70, era absolutamente comum, usual, a tortura com métodos da mais espantosa violência e crueldade – o pau-de-arara, os choques elétricos. O próprio Costa-Gavras abordou duas delas, a do Uruguai, em Estado de Sítio/État de Siège (1972), e a do Chile, em Missing, no Brasil Desaparecido – Um Grande Mistério (1982).
Em Estado de Sítio, o mesmo Yves Montand faz o papel de um oficial norte-americano que foi para o Uruguai para treinar o pessoal da polícia política na repressão aos contestadores do regime, e que é seqüestrado pelos guerrilheiros tupamaros. O filme se inspira no caso real do seqüestro do americano Dan Mitrione pelos guerrilheiros esquerdistas. Segundo se informa, uma das funções básicas de Mitrione era ensinar técnicas de tortura aos homens da ditadura uruguaia.
Em A Confissão há diversas referências a especialistas russos que foram à Checoslováquia ajudar a polícia política de lá nas técnicas de interrogatório. Versões soviéticas de Dan Mitrione.
Ao contrário, no entanto, do que ocorreu nas ditaduras de direita que se abateram sobre Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, a tortura nas ditaduras comunistas na Europa não usava esses instrumentos tipo pau-de-arara, choques elétricos.
Não que a tortura lá fosse menos violenta, cruel, brutal. Não, de forma alguma. Apenas prescindia desses elementos. Dispensava o uso deles.
Os interrogadores e os carcereiros de Artur London levaram uns três meses para dobrar seu espírito, quebrar sua espinha moral, obrigá-lo a confessar crimes que jamais havia cometido – sem pendurá-lo no ar preso pelos pés e pelas mãos, sem encostar nos trechos mais sensíveis de seu corpo fios elétricos desencapados.
Torturaram o homem não permitindo que ele dormisse, que se alimentasse, que bebesse água quando tinha sede. Seguidamente, ao longo de semanas e semanas e semanas, até que perdesse a noção do tempo, do que era dia, do que era noite. Até que não conseguisse mais resistir e desmaiasse de exaustão total, absoluta – para reanimá-lo em seguida com tapas e jatos de água gelada, para recomeçar o interrogatório.
Numa sacada brilhante, a água jogada para acordar o preso vira onda do mar
É preciso muito talento para fazer um filme que mostra tanta degradação, tanta violência, tanta insanidade, de tal forma que o espectador tenha nojo daquilo que está vendo, mas ao mesmo tempo queira continuar a ver.
Por uma ou duas vezes, enquanto revia A Confissão, pensei em parar, ou talvez avançar, pular alguns capítulos, para evitar a visão de tamanha vileza, tamanha violência.
A direção firme, talentosa de Costa-Gavras, o roteiro mesmerizante de Jorge Semprun, a interpretação magnífica do grande Yves Montand, no entanto, impediram que eu deixasse de lado uma tomada que fosse do filme.
Costa-Gavras e Semprun perceberam, com toda certeza, que não poderiam esticar demais a corda, que não poderiam manter o espectador por tempo longo demais afogado na tristeza, na perplexidade, na raiva por ver o que estava sendo feito com aquele homem que sabidamente não havia cometido crime algum, que não era um traidor do regime, muitíssimo ao contrário.
Era necessário que em algum momento houvesse um sinal, ainda que tênue, de luz no fim do túnel.
E então, quando estamos no meio das 2 horas e 19 minutos de narrativa, em outro momento de absoluto brilho de soltar faíscas, Gérard desmaia no chão, as mãos algemadas atrás do corpo. Os carcereiros lançam água no chão para acordá-lo – e a pequena quantidade de água que se aproxima do corpo do homem desmaiado no chão de uma prisão política improvisada em Praga se transforma numa suave onda do Mediterrâneo que banha a Côte d’Azur.
Gérard está vivo, e bem, numa agradabilíssima varanda de casa confortável num morro debruçado sobre as águas muito azuis lá embaixo, conversando com dois amigos, contando sobre aqueles tempos trágicos que afinal ficaram para trás como tudo tem de passar.
Seus cabelos estão grisalhos. Só esse detalhe mostra que os anos se passaram – os cabelos grisalhos, e uma data, exposta bem grande na tela: 1965.
Diversos ex-ministros foram julgados em um tribunal que era teatro puro
Logo em seguida voltamos no tempo, para 1951, Gerard ainda na prisão e ainda sob a tortura física e psicológica, mas agora sendo interrogado por um portento, um assombro na arte de interrogar até obter o que o Estado aprisionador deseja conseguir, o tal de Kohoutek, interpretado pelo italiano Gabriele Ferzetti (na foto acima).
Esse Kohoutek – veremos – havia trabalhado para os nazistas, interrogando comunistas que lutavam contra o III Reich. Agora trabalha para o Império Soviético, interrogando comunistas fiéis que o Império Soviético e seu governo títere local por algum motivo passaram a considerar traidores, trotskistas, titoístas – ou burgueses, imperialistas. Dava mais ou menos no mesmo.
Na segunda metade da narrativa, a tortura física e mental prossegue, e Gerard ainda tenta, aqui e ali, resistir, mas a rigor já abriu mão. Como ele diz para os amigos, na confortabilíssima varanda no Sul da França, diante do Mediterrâneo azulzinho: se pedissem que ele dissesse que seu filho de um ano era titoista, ou trotskista, ele diria.
E aí vem todo o teatro do julgamento público de uma dezena de pessoas que ocupavam até poucos meses antes importantíssimos postos no governo da Checoslováquia – inclusive o próprio ex-secretário-geral do Partido -, agora acusados de alta traição, a soldo do imperialismo norte-americano.
Tudo foi transmitido ao país e ao mundo pela rádio oficial. As respostas que os acusados davam ao promotor haviam sido escritas pelos interrogadores, e decoradas. Se alguém resolvesse fugir do script, os microfones seriam desligados e entraria no ar gravação previamente feita do texto combinado.
O episódio passou para a História como O Julgamento Slánský
A Wikipedia informa que Artur London nasceu em 1915 – dois anos, portanto, antes da Revolução Comunista -, e morreu em 1986 – exatos 30 anos após o levante húngaro contra o regime comunista, e exatos 18 anos após o fim da Primavera de Praga. Nascido em Ostrava – como Gérard repete várias vezes aos interrogadores na segunda metade do filme –, na Morávia, então Império Áustro-Húngaro, de uma família judia, viveu alguns anos, entre 1934 e 1937, em Moscou, para onde o pai, comunista, havia se mudado. Durante a Guerra Civil Espanhola, lutou com os republicanos contra os falangistas de Francisco Franco, enquanto trabalhava para um serviço de inteligência soviético.
Durante a Segunda Guerra Mundial, foi um ativista na Resistência Francesa, a época em que se tornou conhecido como Gérard; preso pelos nazistas, foi enviado ao campo de concentração de Mauthausen.
Havia conhecido Nise, uma ativista do Partido Comunista Francês, ainda na Rússia – perdão, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Ficaram casados até a morte dele, em 1986; ela viveria até os 96 anos, em 2012.
O episódio que A Confissão detalha, examina, escarafuncha, ficou conhecido como os Julgamentos de Praga, ou o Julgamento Slánský – Rudolf Slánský era o secretário-geral do Partido Comunista da Checoslováquia de então, que caiu em desgraça e foi comido pela cobra que se come-se pelo rabo, e, como diversos outros “julgados” na farsa encenada em Praga, condenado à morte.
El tiempo, el implacable, el que pasó, ele passa, e até mesmo o maior de todos os ditadores morre, e então, após a morte de Stálin em 1953, e a ascensão ao poder de Nikita Kruschev, que denunciou os crimes do antecessor, Artur London foi solto, em 1955, e reabilitado em 1963.
Depois de reabilitado, London relatou todo o horror em um livro
Ah, sim, reabilitado. Reabilitação. É outro fenômeno do totalitarismo de face soviética. Nas ditaduras comunistas, o passado jamais fica quieto, jamais fica igual. Fulaninho cai em desgraça – desaparece das fotos. Desaparecia das fotos décadas e décadas antes do Photoshop, da fotografia digital – e de repente me ocorre que a revisão da História, essa coisa tão absolutamente stalinista, teria sido muito mais fácil se naqueles anos de 30 a 50 já houvesse essas modernidades da informática.
Mas, da mesma forma com que fulano poderia cair em desgraça e sumir da História, poderia ser reabilitado! Ressuscitado!
Reabilitado, ressuscitado, Artur London resolveu passar uma temporada na França de sua mulher Lise (os dois na foto acima). É o que o filme nos mostra naquele flash forward bem no meio da narrativa, e depois bem ao final.
Em 1963, ele publicou Espagne, um livro em que descrevia sua vivência na Guerra Civil Espanhola.
Junto com Lise, escreveu o livro descrevendo tudo o que viveu desde o momento em que foi preso, em 1951, até o momento da sua reabilitação. O livro L’Aveu foi lançado pela Galimard em 1968.
Artur London continuava comunista até a medula. Entendia que haviam ocorrido erros durante o processo todo, mas os equívocos, provocados pelas circunstâncias, pelos homens, essas criaturas que cometem erros, não negavam a ideologia em si, o grande ideal.
Em pouquíssimos minutos, numa fantástica capacidade de síntese, Costa-Gavras e Jorge Semprun nos revelam o desenrolar da história de Artur London-Gérard, a História do Mundo.
Os amigos o advertiam: expor ao mundo os detalhes daquele período negro, as torturas, o julgamento público que na verdade jamais passou de um circo, a violência toda, a desumanidade, o horror, o horror, o horror, seria dar munição ao grande inimigo, o imperialismo capitalista!
E então Gérard-Arthur London diz: mas não, desta vez não estou sozinho, o Sindicato dos Escritores da Checoslováquia me apóia, acha importante revelar ao mundo o que aconteceu.
Era a Primavera de Praga. Um governo progressista, moderno, nada ortodoxo, nada, nada, nada stalinista estava no poder. Era a maior tentativa, até então, de se construir um socialismo de face humana, com liberdade, sem censura, sem polícia política.
Hungria em 1956, Checolováquia em 1968, Polônia em 1981: chegam os tanques
Era a época em que um cineasta como Milos Forman pôde cometer seus filmes absolutamente subversivos segundo dos cânones stalinistas. (Mas não era só na Checoslováquia que cineastas aguerridos como os checos Milos Forman, Ján Kadár & Elmar Klos e Jirí Menzel enfrentavam as barreiras: na Polônia havia Andrzej Wajda, os jovens Krzysztof Kieslowski e Roman Polanski; na Hungria, István Szabó.)
No exato dia em que Artur London volta a Praga, para publicar, com o apoio do Partido, do Sindicato dos Escritores, seu relato sobre aquele passado tenebroso que tinha ficado para trás, os tanques soviéticos estavam entrando em Praga.
Já tinha sido assim na Hungria, em 1956. Seria assim novamente na Polônia do sindicato Solidariedade, em 1981. Foi assim na Checoslováquia em 1968. Se há tentativa de liberalizar o regime, se ousam desobedecer aos desígnios dos camaradas do PCURSS, dá-lhe tanques nas ruas.
Os jovens jogavam tijolos contra os tanques nas ruas de Praga. Escreviam nas paredes a frase de fazer qualquer ex-comunista chorar copiosamente: “Lênin, desperta! Eles enlouqueceram!”
Os tanques, unidos, jamais serão vencidos. Passaram por cima das flores da Primavera de Praga, decretando o inverno de todas as esperanças de que poderia haver algum tipo de socialismo de face humana.
O roteirista Jorge Semprun ouvira Artur London contar sobre as torturas
Costa-Gavras, Jorge Semprun (os dois na foto acima, da Getty Images, em 2005) e Yves Montand haviam trabalhado juntos, antes, em Z (1969), excelente filme sobre a ditadura de direita implantada pelos coronéis na Grécia. O filme foi um tremendo sucesso de crítica, merecidissimamente. Ganhou 11 prêmios, inclusive os Oscars de melhor filme estrangeiro e melhor montagem, fora outras 12 indicações.
Não é difícil imaginar o espanto de toda a esquerda européia – e mundial – quando a mesma esquerdista trindade ousou denunciar os crimes de um país comunista.
Jorge Semprun havia sido membro da direção do Partido Comunista Espanhol – proscrito, é claro, durante a ditadura fascista de Franco, mas vivo, com vários de seus dirigentes, a exemplo do escritor e roteirista, na França. Em seu magnífico livro Yves Montand: a Vida Continua, de 1983, Semprun conta: “Z ainda não estreara nas salas de cinema, na França, no dia em que Costa-Gavras apareceu na minha casa empolgadíssimo. Acabava de ler A Confissão, de Artur London. Decidira fazer tudo para poder realizar um filme. Achava que o papel devia ser de Montand.”
Semprun havia conhecido Artur London: cruzaram-se uma vez em Paris, em 1945, logo após o fim da Segunda Guerra, ele, Semprun, saindo do campo de concentração de Buchenwald, e London, do campo de Mathausen. Os dois haviam usado, na Resistência Francesa, o mesmo codinome, Gérard.
Em Buchenwald, Semprun havia convivido diariamente com outro comunista, Josef Frank, que em 1951 seria uma das autoridades do governo checo caídas em desgraça e que seriam julgadas no processo Slánský, juntamente com Artur London. Entre outras crimes, Frank havia confessado que, quando preso no campo de concentração, pusera-se a serviço da Gestapo.
“Ele confessara esse crime”, escreve Semprun. “Mas eu sabia que isso era falso, que era impossível, por ter trabalhado a seu lado durante dois anos. E não dissera nada a ninguém. Guardara comigo a verdade dessa mentira, para continuar a viver na mentira da verdade comunista.”
Jorge Semprun viveu na mentira na verdade comunista até 1964, quando, durante uma sessão plenária da comissão política do PCE, rebelou-se. Pouco depois, foi expulso do Partido.
No final de 1964, quatro anos antes, portanto, de Costa-Gavras ler o livro A Confissão, Semprun havia se encontrado com Arthur London e sua mulher Lise, na casa de um amigo comum, em Paris. “Foi uma longa noite, terrível, durante a qual, com sua voz inalterada, monocórdia, Gérard nos contou tudo o que lhe acontecera, desmontando minuciosamente o mecanismo das confissões. No fim, éramos nós que ofegávamos. A respiração suspensa. Eu olhava para Costa-Gavras, quatro anos depois, e me perguntava se ele sabia onde ia pisar.”
O órgão oficial do PCF disse que o filme dava munição aos amigos de Nixon
O ex-comunista Jorge Semprun concordou imediatamente em trabalhar com o cineasta no roteiro do filme. “Impus uma única condição: a de assinar sozinho a adaptação e os diálogos. (…) Queria realmente ser autônomo nesse trabalho, assumir todas as suas responsabilidades. Escrever o filme A Confissão era, efetivamente, muito mais do que um ato cinematográfico. Era um ato político.”
Pouco adiante, Semprun escreve: “Como era de se esperar, a estréia de A Confissão nas salas de cinema, em abril de 1970, provocou uma polêmica apaixonada.” Ele conta que, quando o livro de Arthur e Lise London foi lançado, em 1968 – exatamente o ano da invasão da Checoslováquia pelos tanques do Pacto de Varsóvia –, o Partido Comunista Francês não desaprovou nem reprovou o livro. Mas também não manifestou qualquer entusiasmo, sequer simpatia por ele.
“Em compensação, um ano e meio depois, quando o filme A Confissão surgiu nas telas, a reação do PCF foi imediata, maciça e peremptória. (…) O conjunto da imprensa comunista atacou frontalmente o filme e seus autores.”
Primeiro – conta Semprun –, tentaram fazer um contraponto entre o filme e o livro, dizendo que o livro era comunista, e o filme, anticomunista. “Em suma, havíamos traído London. Que foi mais ou menos intimado, uma vez mais, a confessar seus erros. E a renegar-nos. Mas já não estávamos em Praga em 1951. Estávamos em Paris, em 1970. Artur London publicou em Le Monde um esclarecimento muito firme e muito claro, dando sua caução ao filme. Então, L’Humanité (para quem não se lembra, o L’Humanité era o órgão oficial do PCF, o Pravda, o Granma français) passou a incriminar o próprio London. E o artigo no qual esse novo passo foi tomado terminava com as seguintes palavras sinistras, de sinistra memória: ‘Não se pode ser realmente solidário com o Vietnã em luta, quando aqui se proporcionam armas aos amigos do sr. Nixon’. Aí está: armávamos os amigos do sr. Nixon. Não havia mais que discutir o filme. Objetivamente, como teriam dito o marechal Stálin e seu procurador Vychinski, fazíamos o jogo do inimigo. Fornecíamos argumentos a eles. Em suma, estávamos do seu lado.”
Ai, ai, ai, ai, ai… Me ocorre – perdão por essa tergiversação – que seria tão bom se os jovens petralhinhas lessem um pouquinho sobre História…
“Um filme sólido que condena todo totalitarismo em nome da dignidade do homem”
Registro a opinião de Leonard Maltin pelo fato de ele ser o autor do guia de filmes mais vendido do mundo, no tempo em que os guias de filmes eram impressos e vendidos. Ele dá 2.5 estrelas em 4 e pontifica: “História verdadeira do comunista checoslovaco Arthur (sic) London e seu injustificável julgamento por traição; trama interessante com bela atuação de Montand, mas o filme é palavroso e supervalorizado como outras obras de Costa-Gavras.”
Muitas vezes Maltin acerta, na minha opinião. Em muitas outras erra feio.
Pauline Kael, a prima donna da crítica americana, muitas vezes chata a não mais poder, mas que sempre acompanhou com interesse o cinema europeu, escreveu, segundo 1001 Noites no Cinema, a edição brasileira editada e traduzida por Sérgio Augusto: “Demonstração bastante detalhista, por Costa-Gavras, de como os prisioneiros nos julgamentos propagandísticos de Stálin, em 1952, eram obrigados a confessar crimes imaginários. Um grande e esquecido tema cinematográfico, apresentado com inteligência. Yves Montand tem um belo desempenho, desprendido.”
Uma bela avaliação. Mas que raios terá ela querido dizer com “desprendido”?
Fui ao livro original da madame, 5001 Nights at the Movies, e fiquei ainda mais aturdido. “Yves Montand gives a fine non-egotistic performance”. Meu Deus do céu e também da terra, o que seria uma atuação egoísta? O que seria uma ação não-egoista?
A crítica de cinema tem razões que a própria razão desconhece.
O Guide des Films do mestre Jean Tulard dá 2 estrelas em 4. É fundamental registrar que o gigantesco Guide, de três volumes de 1.200 páginas cada, que fala de 15 mil filmes, só dá notas para alguns deles, não todos. Eis o que ele diz: “Adaptando com fidelidade o livro de Arthur (epa! Ele também usa o h inexistente!) London, Costa-Gavras e Jorge Semprun fazem uma ação progressista. Como eles haviam denunciando a opressão fascista, eles denunciam a opressão stalinista. Não sem ambiguidade às vezes, mas sempre com força e coragem. Um filme sólido que condena todo totalitarismo em nome da dignidade do homem.”
Anotação em junho de 2016
A Confissão/L’Aveu
De Costa-Gavras, França-Itália, 1970
Com Yves Montand (Gérard)
e Simone Signoret (Lise), Gabriele Ferzetti (Kohoutek), Michel Vitold (Smola), Jean Bouise (o chefe da fábrica), László Szabó (policial), Michel Robin (o acusador), Antoine Vitez (o amigo comunista), Michel Beaune (o advogado), Marcel Cuvelier (Josef Pavel)
Adaptação e diálogos Jorge Semprun
Fotografia Raoul Coutard
Música Giovanni Fusco
Montagem Françoise Bonnot
Produção Les Films Corona, Les Films Pomereu, Produzione Intercontinentale Cinematografica (PIC), Fono Roma, Selenia Cinematografica. DVD Lume.
Cor, 139 min
R, ****
Muito obrigada pelo maravilhoso texto fazendo jus a todo o talento do gênio Costa-Gavras (que também é um dos lugares fictícios mais divertidos do mundo, na série “Chuck”).
Você gostou mesmo? Ah, que maravilha! Eu exagerei, fiz grande demais, mesmo
para quem é acostumado a fazer textos grandes demais…
Muito obrigado! Você faz bem para meu eguinho!
Um abraço!
Sérgio
Nada é grande demais para Costa-Gavras. O cara que dirigiu “Z”, poxa, é genial.
Se for texto do 50 Anos, então, quero-mais.
Duas aulas, o filme e o texto.
Muito bem,e muito bom.V.Exa. sabe a data de estreia no Brasil,já que eram ‘hard times’no país quando de sua estreia mundial???Grato.bom domingo.
E mais :na sala do partido (e do ministério) há duas fotos nas molduras da parede:uma é stalin..e a outra???Gracias…
É um filme magnífico que eu vi apenas no cinema quando saiu. Não creio que haja em DVD por cá mas vou ver.
Lembrei-me de um livro que acho muito importante e que aborda esta temática: O Zero e o Infinito de Arthur Koestler.
Vale a pena a sua leitura.