Entre Dois Fogos, no original Raw Deal, que o grande Anthony Mann lançou em 1948, tem uma característica que o diferencia de praticamente todos os outros filmes noir: é narrado por uma mulher. A história é contada sob a ótica de uma mulher.
E, diferentemente do que em geral acontece nos filmes noir, aqui não há femme fatale – aquela mulher linda, sensual, que, como uma aranha, atrai um homem para dentro de sua teia, e faz dele gato e sapato para obter tudo que deseja.
Muito ao contrário: Pat Cameron, a narradora – o papel de Claire Trevor, na foto abaixo –, é uma mulher apaixonada pelo seu homem. Abnegada, faz tudo por ele – tudo, tudo, absolutamente tudo. Até mesmo, no final…
Claro que não dá para contar o final de um filme noir. Mas dá para dizer que o final é surpreendente. A decisão que Pat toma, no final do filme, é altruísta demais. Isso é que é mulher apaixonada, que só quer o bem, a felicidade de seu homem.
O homem da vida de Pat não vale lá muita coisa – mas fazer o quê? O amor muitas vezes é cego, surdo, mudo.
Chama-se Joe Sullivan (Dennis O’Keefe), e anda do outro lado da lei – não o nosso, o das pessoas normais, a imensa maioria das pessoas. É um bandido; por causa do último golpe – que o filme não se incomoda em nos contar qual é, mas pode-se imaginar que tenha sido um grande roubo -, foi preso e está agora na penitenciária estadual.
As primeiras tomadas que vemos são do prédio da penitenciária. A voz em off de Pat Cameron-Claire Trevor vai nos contando:
– “Hoje é o dia. O último em que terei que atravessar estes portões. Estas barras de ferro que me separam do homem que eu amo. Esta noite ele fugirá destes muros. Está tudo preparado. Às 11 e meia. Esta é a notícia eu trago para ele. (Agora, ela está caminhando num grande corredor interno.) Não sei o que bate com mais força, meus saltos altos ou meu coração. É sempre assim quando o visito.”
“Não sei o que bate com mais força, meus saltos altos ou meu coração.” Bela frase!
E Pat chega diante do funcionário que recebe os visitantes. Ela diz o nome do prisioneiro que vai visitsar – e tem uma surpresa. O funcionário pede para que ela espere um pouquinho: Joe Sullivan está naquele momento recebendo uma outra visita.
E, enquanto Pat se senta, espantada, vemos que, na sala em que os presos recebem visita, Joe está falando com uma mulher bem mais jovem do que ele e do que Pat. É Ann Martin (Marsha Hunt, na foto abaixo), sua advogada. É a segunda vez que ela vem visitá-lo; argumenta que, se ele se comportar bem na prisão, evitar brigas, problemas, ela crê que conseguirá tirá-lo de lá e colocá-lo em liberdade condicional dentro de dois anos.
Na hora em que os dois se despedem, Joe diz: – “Da próxima vez que você vier, não use esse perfume”.
Ann: – “Por que não?”
Joe: – “Não ajuda um sujeito a ter bom comportamento”.
A mulher que o ama e faz tudo por ele está ali do outro lado da porta – e o canalha está cantando outra mulher!
Pat vê Ann sair da sala das visitas. E então entra para falar com Joe, contar a ele que Rick acertou tudo – ele deve ficar atento, 11 e meia da noite.
O bandido consegue fugir da penitenciária estadual
O espectador não vai demorar a conhecer esse Rick (Raymond Burr), um criminoso brutal, sádico.
Há muitas coisas que o roteiro deste Entre Dois Fogos/Raw Deal não explicita, ou mais que isso, faz questão de não explicar. Por exemplo: não se diz, repito, qual exatamente foi o golpe cometido por Joe e Rick que levou o primeiro à prisão. Percebe-se que Joe não dedurou o comparsa, levou a condenação sozinho.
O que é vendido para Pat é que Rick usaria sua influência para facilitar a fuga de Joe da penitenciária estadual. Joe, por sua vez, diz várias vezes, ao longo da narrativa, que Rick deve a ele US$ 50 mil – talvez sua parte no golpe.
Não se explicita como, mas dá para imaginar que Rick comprou um ou dois guardas para que facilitassem a abertura de algumas portas. E, de fato, às 11h30 daquela noite, Joe consegue fugir da penitenciária e chegar ao carro em que Pat o esperava. Só pode ter havido a cooperação de guardas, mas o fato é que, no momento em que Joe pula um muro e escapa, já foi dado alarme, e há trocentos policiais saindo para caçá-lo. Alguns policiais chegam a atirar contra o carro de Pat, antes que eles saíssem em disparada.
Os tiros – o casal verifica logo em seguida – atingiram o tanque de gasolina. Joe e Pat conseguem roubar um outro carro. Joe decide que os dois vão se esconder… na casa de Ann, a advogada!
Ann ficará absolutamente atônita, apavorada com a chegada de Joe. É uma advogada, uma pessoa legalista, sabe que com a fuga ele põe a perder a hipótese da liberdade convencional. Tenta convencê-lo disso, mas ele é bem maior e mais forte que ela – e está armado.
O plano de Joe é escapar do cerco policial, visitar Rick, pegar com ele os US$ 50 mil e, em San Francisco, embarcar num navio rumo à América Central. Pat já havia comprado as passagens.
Os planos de Rick são bastante diferentes.
Isso que relatei é mostrado nos cerca de 20 primeiros minutos do filme. O que se segue é um trio em fuga – um trio que é um triângulo amoroso!
O melhor do filme é a personagem interpretada por Claire Trevor
Não me encantei com o filme. Tenho fascínio, fascinação pelo noir, como todo mundo que gosta de filmes – mas isso não significa que todo noir seja uma maravilha.
Acho o personagem central, esse Joe, um bandido chato, desinteressante, por quem é impossível se sentir qualquer tipo de simpatia. A personagem de Ann me pareceu bem mal ajambrada, contraditória – como pode uma advogada, toda certinha, toda lei e ordem (como o próprio Joe diz a uma certa altura), capaz de um discurso coerente, lógico, forte, se apaixonar por aquele bandido tosco, sem qualquer atrativo? Bem, é o tal negócio, o amor às vezes é cego.
O que vale mais a pena na história, o que é de fato fascinante, na minha opinião, é exatamente o personagem da narradora da história, essa Pat muitíssimo bem interpretada por Claire Trevor. O final, a decisão final dela, é de fato surpreendente, uma maravilhosa prova de caráter.
Claire Trevor (1910-2000) é uma atriz tão fascinante como essa pobre Pat que ela interpreta aqui, uma boa mulher perdida em seu amor bandido. Tenho imensa admiração por atrizes fortes, que conseguiram vencer em Hollywood apenas por talento, sem ter uma beleza estonteante para ajudar.
Claire tinha um tipo físico que a fazia parecer mais velha, mais senhora, mais quase matrona, mesmo quando era jovem. Em 1948, ano de lançamento deste filme, estava apenas com 38 anos; no entanto, parecia ter bem mais, bem mais do que isso.
Mas era uma grande atriz, e conseguiu, graças ao talento, belos papéis. Começou a carreira em 1933, aos 23 aninhos. Em apenas cinco anos, entre 1933 e 1938, fez nada menos de 29 filmes. E, em 1939, estrelou No Tempo das Diligências/Stagecoach, o absoluto clássico do mestre John Ford. Em 1954, voltaria a trabalhar ao lado de John Wayne, em Um Fio de Esperança/The Hight and the Mighty. Recentemente a revi em Key Largo, aqui Paixões em Fúria, de John Huston, em que ela dá um show como a amante bêbada e decadente do gângster interpretado por Edward G. Robinson.
Teve três indicações ao Oscar – pelo seu papel em Um Fio de Esperança, por Um Beco Sem Saída (1937) e exatamente por Key Largo; este Oscar ela levou para casa.
Marsha Hunt, que faz Ann, a advogada, também mostra bastante talento. Não me lembrava dela, mas é uma atriz importante, com mais de 110 títulos na filmografia, e uma rica história de vida. Foi sempre uma ativista por causas liberais, foi membro do Comitê Democrático de Hollywood e das Liga Anti-Nazista de Hollywood, e contribuiu para campanhas de diversos candidados do Partido Democrata à presidência, inclusive John F. Kennedy, Jimmy Carter, Bill Clinton e Barack Obama. Nascida em 1917, estava bem viva, aos 98 anos, quando escrevi este texto.
Um belo diálogo que destrói a tese esquerdóide sobre pobreza e bandidagem
Os roteiristas Leopold Atlas e John C. Higgins incrustraram um diálogo que destrói aquela tese esquerdóide e ridícula de que é a pobreza que conduz os homens à bandidagem.
Joe está discutindo com Ann; já fugiu da prisão, já invadiu a casa da advogada. Ela tenta convencê-lo a se entregar a Polícia, a fazer as coisas certas, dentro da lei.
Ele diz que é pobre, que não pôde estudar, ao contrário dela, advogada, que deve ter vindo de família rica.
Joe: – “O que conhece a respeito das coisas? Você provavelmente teve tudo do bom e do melhor desde o dia em naseu. Segurança. Segurança no primeiro, no segundo, no terceiro lar.”
Ann: – “Isso é o que você pensa! Só porque eu tenho um carro, um vestido, e minhas unhas são limpas, você acha que nunca tive que lutar? Sim, eu tive uma educação. Imagino que isso para você signifique eu nasci em berço de ouro, não é? Meu pai era professor. Ele morreu durante a Depressão. Só que não ganhou medalha alguma, ou bônus. Deixou três crianças. Você acha que você teve que lutar? O único jeito de lutar que você conhece é esse jeito estúpido com uma arma. Existe um outro jeito do qual você nunca deve ter ouvido falar. É a luta diária que cada um enfrenta. Para conseguir comida e educação, conseguir um trabalho e mantê-lo. E algum auto-respeito. ‘Segurança?’ Eu nunca exigi nenhuma segurança. Tudo o que eu quero é um pouco de decência, só isso.”
Jean Tulard define Anthony Mann como “clássico por excelência”
Anthony Mann (1906-1967), um dos grandes realizadores do período áureo de Hollywood, fez de tudo, como a maioria deles: de musical biográfico (Música e Lágrimas/Moonlight Serenade, 1954, sobre a vida do maestro Glenn Miler) a filme de guerra (Os Heróis de Telemark, 1965). Nos seus últimos anos em ação, fez grandes superproduções, épicos sobre acontecimentos históricos antigos (El Cid, 1961, A Queda do Império Romano, 1964). Mas seu forte eram os westerns.
“Antes de se destacar em todos os principais gêneros do cinema americano, Mann havia sido cenógrafo, ator e diretor de teatro”, diz Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. Trabalhou para Selznick e depois para a Parmount antes de ir para a RKO e para a Republic dirigir filmes de baixo orçamento. Pode-se deixar de lado as comédias musicais, mas os thrillers tocam pela violência de algumas cenas, pela beleza das imagens em preto e branco, pela qualidade da interpretação, que coloca em primeiro plano os habituais comparsas (Raymond Burr, John Ireland, Charles McGraw) e pelo caráter social dos temas.”
Depois “abre-se o ciclo dos westerns”. “Ao se rever O Preço de um Homem ou Winchester 73, é forçoso concordar com Coursodon e Tavernier: ‘É o que o gênero produziu de mais perfeito e mais puro’. A abertura de O Homem dos Olhos Frios é um modelo: Fonda, impassível, atravessa uma cidadezinjha sob o olhar aterrorizado de seus habitantes.”
E mestre Tulard termina seu verbete com uma frase definitiva: “Mann é o cineasta clássico por excelência”.
Jean Tulard realça muito bem “a violência de algumas cenas” – e cita exatamente Raymond Burr e John Ireland. O Rick interpretado por Raymond Burr, que tem como um de seus homens de confiança um tal Fantail interpretado por John Ireland, parece ter sido concebido para figurar na galeria dos vilões mais violentos da História.
Em Os Corruptos/The Big Heat (1953), de Fritz Lang, o personagem de Lee Marvin joga café quente no rosto do personagem da bela Gloria Grahame. Em O Beijo da Morte (1947), de Henry Hathaway, o personagem de Richard Widmark empurra uma velhinha paralítica do alto de uma escada. São algumas das sequências mais cruéis da História do cinema, e se tornaram antológicas exatamente por isso, pela extrema crueldade.
Neste filme aqui, Anthony Mann cria uma cena tão apavorante quanto as duas que acabo de citar.
O bandidão Rick está preocupado com as notícias de que Joe ainda não foi recapturado pela polícia e está tentando vir se encontrar com ele, Rick.
A amante de Rick chega, quer carinho, atenção, ele manda ela dançar com um de seus capangas. A moça obedece, fica dançando um pouco atrás de onde Rick está sentado, a uma mesa. Na mesa, um cozinheiro prepara um prato flambado.
Rick estica-se um pouco para trás, no momento exato em que a amante está dançando bem perto dele, segurando um copo de bebida em um das mãos. A bebida cai no paletó de Rick, no alto de suas costas. Rick pega o prato que está no fogo e joga contra a amante, dizendo que é para ela tomar mais cuidado.
É violência demais. É assustador demais.
O AllMovie nota, com razão, que às vezes falta plausibilidade
Leonard Maltin dá 3 estrelas em 4 ao filme. “Belamente construída, história hard-boiled de O’Keefe fugindo da prisão para se vingar do viscoso Burr, que preparou uma cilada para ele; o que é pior, ele se vê perdido entre o amor duas mulheres. Duro e convincente, com Burr (na foto ahaixo) fazendo um terrível sádico.”
O AllMovie dá 4 estrelas em 5. O texto de Adam Bregman é uma beleza. Começa assim: “Um noir com várias cenas inteligentes, uma fotografia excelente e nenhuma falta de violência, Raw Deal é melhor que a média de histórias de crime, mas às vezes falta plausibilidade. O gênio do noir John Alton maneja a câmara e espertamente encobre todo o filme em sombras.”
Anotação em junho de 2015
Entre Dois Fogos/Raw Deal
De Anthony Mann, EUA, 1948
Com Dennis O’Keefe (Joe Sullivan), Claire Trevor (Pat Cameron), Marsha Hunt (Ann Martin),
e John Ireland (Fantail), Raymond Burr (Rick Coyle), Curt Conway (Spider), Chili Williams (Marcy), Regis Toomey (capitão Fields),
Roteiro Leopold Atlas e John C. Higgins
“Sugerido por uma história de Arnold B. Armstrong e Audey Ashley”
Fotografia John Alton
Música Paul Sawtell
Montagem Alfred DeGaetano
Produção Edward Small Productions. DVD Versátil.
P&B, 79 min
**1/2
Título na França: Marché des brutes. Em Portugal: Destino em Segunda Mão.
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