Thérèse Desqueyroux

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Nota: ★★★☆

O romance Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac, lançado em 1927, foi filmado em 1962 por Georges Franju, com Emmanuelle Riva e Philippe Noiret nos papéis centrais. Foi um grande filme, segundo o respeitabilíssimo Guide de Jean Tulard, que deu a ele 4 estrelas, algo extremamente raro, e o classificou como “um êxito perfeito”.

Mesmo assim, Claude Miller quis refilmar o livro. Disse, em entrevista, que o romance o marcou muito quando era estudante: “Eu o reli. Tudo o que eu amo no cinema estava lá: existe em Thérèse Desqueyroux um clima de ambiguidade que exige do espectador um trabalho para entrar no filme”.

Achei muito interessante encontrar essa informação, com as palavras do realizador, no AlloCine, o ótimo site que tem tudo sobre os filmes franceses. O fato de Claude Miller ter ligação pessoal com o livro desde a juventude explica por que refilmar uma história que já deu origem a um filme de prestígio. E o próprio diretor dá uma perfeita definição: Thérèse Desqueyroux exige do espectador um trabalho para entrar no filme.

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É uma obra perfeita, extremamente bem realizada em todos os quesitos artísticos e técnicos. Obra de maturidade, de cineasta talentoso, experiente, tarimbado – foi o último filme de Miller, que já estava doente e submetendo-se a sessões de radioterapia durante as filmagens; morreria em abril de 2012, antes da estréia na França, que aconteceu em novembro daquele ano.

Um filme perfeito em todos os quesitos artísticos e técnicos. Sem dúvida alguma. Belíssimas interpretações de todo o elenco, em especial dos dois atores que fazem os protagonistas, Audrey Tautou e Gilles Lellouche. Fotografia irretocável, de grande beleza; lindos cenários – as filmagens foram na região em que a história se passa, a área rural próxima a Bordeaux, no Sudoeste da França. Trilha sonora com obras de autores eruditos. Uma reconstituição de época – a ação se passa entre 1922 e 1930 – daquelas excelsas, em que todos os detalhes são bem cuidados. Uma narrativa sóbria, elegante, clássica, sem qualquer tipo de invencionice, fogos de artifício.

No romance, há flashbacks, uma mistura de monólogo interior da personagem central, Thérèse, com relato factual; Claude Miller, co-autor da adaptação, roteiro e diálogos, juntamente com Natalie Cartier, optou por contar a história de maneira linear, seguindo a ordem cronológica.

Tudo extremamente realizado. Mas há que sintonizar com o filme

Tudo extremamente bem realizado, repito. E, no entanto, quando o filme terminou, Mary e eu ficamos um bom tempo em silêncio. Eu me perguntava qual, afinal, era a razão de se contar essa história; e depois percebi que Mary tinha as mesmas dúvidas.

“Existe em Thérèse Desqueyroux um clima de ambiguidade que exige do espectador um trabalho para entrar no filme”, disse o próprio autor. É exatamente isso. Eu, pessoalmente, não entrei. Nem Mary.

Feito esse registro, deixo para o final desta anotação minhas opiniões, e vou tentar agora ser bastante objetivo, com informações, dados.

Um casamento de conveniência, uma filha sem o amor da mãe

François Mauriac (1885-1970) nasceu em Bordeaux, filho de um comerciante de madeira. Conhecia bem, portanto, a região em se passa a história que criou, a sociedade que descreve.

zzteresa6Thérèse Larroque, a protagonista do romance, é filha de um viúvo, rico proprietário de terras com ambições políticas (Francis Perrin), na região de Landes, próxima a Bordeaux. As primeiras seqüências mostram Thérèse ali pelos 15 anos (interpretada por Alba Gaïa Bellugi), a mesma idade de sua amiga inseparável, Anne (Matilda Marty-Giraut, e quando adulta Anaïs Demoustier).

A mãe de Anne, Madame de la Trave (Catherine Arditi), casada pela segunda vez, é também proprietária de vasta extensão de terras. As duas propriedades, com imensa quantidade de pinheiros, são contíguas, e um eventual casamento de Thérese com o irmão de Anne, Bernard, seria absolutamente conveniente. Já nas sequências iniciais – um letreiro especifica que estamos no verão de 1922 –, a jovem Anne diz a Thérèse que ela iria se casar com Bernard.

Corta para abril de 1928. Thérèse (já na pele de Audrey Tautou) está para se casar com Bernard (Gilles Lellouche), apesar de deixar claro que não o ama.

Um casamento de conveniência.

Thérèse é uma leitora voraz. Lê sem parar, um livro após outro, diferentemente de todos os que a cercam. Não gostaria de estar ali, na província; não gostaria de ser quem é, não gostaria de se casar por conveniência, sem amor – embora tenha simpatia por Bernard, não desgoste da companhia dele. Se pudesse escolher, sem dúvida alguma iria para Paris. Mas não luta por seus desejos; simplesmente submete-se ao destino inevitável.

O casal terá uma filha. Thérèse, obviamente, não gostaria de ser mãe; não tem jeito para a coisa.

O casamento irá se deteriorando cada vez mais – para ela, não para ele. Ao contrário da mulher, Bernard é uma pessoa simples, que gosta da vida que tem.

Aqui vai um spoiler; o eventual leitor deveria pular para o próximo intertítulo   

Parte dos acontecimentos que virão na segunda metade da narrativa se inspira num caso real, acontecido na região de Bordeaux: em 1905, uma mulher chamada Henriette Cababy foi acusada de tentar envenenar o marido, um comerciante de vinhos. A acusação acabou sendo rejeitada, basicamente porque o próprio marido testemunhou em favor da ré, para salvar as aparências, para não manchar o nome da família.

Consta que Mauriac, então com uns 20 anos de idade, assistiu ao julgamento.

Um cineasta que, como seu mestre Truffaut, ama as mulheres

Thérèse Desqueyroux foi o 11º livro de ficção publicado por Mauriac. Membro da Academia Francesa a partir de 1933, Prêmio Nobel de Literatura em 1952, François Mauriac se caracterizou como um virulento crítico da burguesia provinciana, seu apego aos bens materiais, às aparências.

O filme de Claude Miller encerrou o Festival de Cannes de 2012, exibido fora da mostra competitiva.

zzteresa5Em entrevistas, Gilles Lellouche falou que o ambiente, durante as filmagens na região próxima a Bordeaux, era ao mesmo tempo jovial e triste: “Estávamos muito próximos de Claude; sabíamos que ele estava doente e sentíamos a que ponto realizar o filme fazia bem para ele. O filme foi rodado a 45 quilômetros de Bordeaux, e, a cada manhã, antes de vir para a locação, ele se submetia a uma radioterapia, o que não o impedia de nos enviar um pequeno texto cheio de gentileza. Houve, nas filmagens, uma carga humana triunfante.”

Claude Miller, assim como seu ídolo e mestre François Truffaut, é um cineasta que ama as mulheres. Em entrevistas, admitiu que prefere filmar mulheres – e esta foi uma das razões pelas quais quis adaptar Thérèse Desqueyroux. “Tenho muito mais prazer quando há uma mulher diante da câmara”, disse.

Foi a primeira (e seria a única) vez que teve Audrey Tautou diante de sua câmara. Derramou-se em elogios à jovem atriz que Jean-Pierre Jeunet transformou em estrela em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain: “Com Audrey, foi particularmente mágico. Como dizer? Talvez ela tenha chegado, ainda mais rapidamente do que outras, a atingir uma nota que me agradava, que era aquela que eu havia imaginado.”

“Uma obra inteligente e belamente executada”

No Monde, na época do lançamento do filme, uma crítica assinada por Aureliano Tonet diz o seguinte:

“Preocupado, como sempre, em não perder o espectador, ele preferiu, aos flashbacks do romance original, uma cronologia linear, da mesma forma como amava fazer um outro amante da literatura, seu mestre François Truffaut. Fino retratista de uma feminilidade secreta e obstinada, Truffaut comparava as atrizes a vasos, levando sobre seus ombros a flor da narrativa. Aos olhos de seu marido, Thérèse não é mais que isso, ‘vaso sagrado’ devotado a propagar a linhagem como uma tapeçaria. Era necessário o talento de Claude Miller e de Audrey Tautou para mostrar esta evidência: os vasos não são jamais tão belos quanto quando rasgam, de um estilhaço de porcelana, a tapeçaria.”

No site AllMovie, a crítica assinada por Nathan Southern conclui o seguinte:

“As ambiguidades e mistérios de Thérèse parecem realmente assombrosos; Tautou tem uma interpretação digna de prêmios, e Miller tinha um olhar tão magnífico que não se pode deixar de lamentar sua morte. Ele enche a tela não apenas com uma revelação astuta sobre o comportamento atrás de outra, mas com inteligentes metáforas, como por exemplo um papel de parede rasgado que revela a existência de um outro desenho abaixo do visível – um símbolo da vida interior escondida de Thérèse. Este não é um filme perfeito, mas é uma obra inteligente e belamente executada que confia na audiência o bastante para nos deixar inferir suas muito válidas observações sobre a natureza humana, os papéis femininos, e as limitações de classe na França do início do século XX.”

Por que aquela mulher simplesmente não pegou um trem para Paris?

O problema não é o filme: o problema sou eu.

Não consigo me sintonizar com histórias sobre personagens que não me despertam qualquer simpatia.

zzteresa8E não dá para ter qualquer empatia com essa Thérèse Desqueyroux, uma pobre vítima de uma estranha esquizofrenia – uma mulher que não quer, não suporta aquela vida, aquele tipo de vida, mas submete-se a ela. E que, quando finalmente resolve se revoltar, faz tudo errado: primeiro abandona a filha e depois ainda se dispõe a cometer um crime, em vez de simplesmente cascar fora.

Por que simplesmente não pegar um trem e ir para Paris?

Ah, as regras sociais, as pressões do meio, as mulheres não conseguiriam ter vida própria naquela época…

O cacete. Era uma mulher rica. Tinha os meios nas mãos.

Não consigo ter simpatia por aquela personagem. Nem consigo, quando ela mergulha no poço do sofrimento, ter qualquer pena, dó, piedade, condescendência.

Vazio existencial? Tédio? Ah, meu, vai dar o fiofó na Lapa, como diria a Tonica. Só tem tédio quem é imbecil.

Repito: o problema não é o filme, sou eu.

O filme é formidavelmente bem feito. Mas Thérèse, para mim, é um ser desprezível. Uma chata de galocha.

Anotação em janeiro de 2014

Thérèse Desqueyroux

De Claude Miller, França, 2012

Com Audrey Tautou (Thérèse Larroque, depois Thérèse Desqueyroux), Gilles Lellouche (Bernard Desqueyroux), Anaïs Demoustier (Anne de la Trave), Catherine Arditi (Madame de la Trave), Isabelle Sadoyan (tia Clara), Francis Perrin (Monsieur Larroque), Jean-Claude Calon (Monsieur de la Trave), Max Morel (Balion), Françoise Goubert (Balionte), Stanley Weber (Jean Azevedo), Alba Gaïa Bellugi (Thérèse aos 15 anos), Matilda Marty-Giraut (Anne de la Trave aos 15 anos), Gérard Bayle (Pedemay), Yves Jacques (Duros, o advogado)

Roteiro e diálogos Claude Miller e Natalie Carter

Baseado no romance de François Mauriac

Fotografia Gérard de Battista

Montagem Véronique Lange

Produção Les films du 24, France 3 Cinéma, TF1 Droits Audiovisuels, Canal+, Ciné+. DVD Imovision.

Cor, 110 min

***

 

6 Comentários para “Thérèse Desqueyroux”

  1. Sérgio, discordo do seu ponto de vista. Eu, mulher, nascida em 84 em São Paulo, consigo entender e ter empatia pela Thèrese e admirar a modernidade da obra para a época. Até para as mulheres com dinheiro as coisas não são tão faceis como parecem ser. Inclusive sinto pena do marido dela por também ser infeliz num casamento.
    Enfim, não lembro-me muito bem do filme pq eu o vi no ano passado no cinema, mas achei belíssimo o final, ela andando por Paris.
    Eu acho que a vida sempre foi mais difícil para as mulheres. Se a vida dos escravos foi difícil, das escravas foi mais ainda. Se dos judeus sofreram no holocausto, as judias sofreram mais ainda.
    Infelizmente.. a realidade é sempre pior do que é mostrada nos cinemas. Se vc ver o brilhante filme Sonho de Wadija, verá que comprar uma bicicleta em 2014 em certos lugares, é uma tarefa quase impossível para uma mulher.

    Enfim, adorei a crítica e o humor do texto, só quis acrescentar meu ponto de vista, para quem sabe abrir um debate enriquecedor sobre o assunto.

    Um grande abraço!!!

  2. Cara Claudia, antes de mais nada, agradeço a você por enviar o comentário.
    Os pontos de vista diferentes são sempre absolutamente bem-vindos. Uso este espaço aqui para dar minhas opiniões. Tento também reunir informações objetivas sobre os filmes, que podem ser eventualmente úteis a outras pessoas, mas basicamente o que vai aqui são minhas opiniões pessoais e intransferíveis – e sempre que posso digo que minhas opiniões valem menos que uma nota de três guaranis paraguaios furados.
    Gosto demais quando outras pessoas manifestam opiniões diferentes das minhas.
    Mas gostaria de dizer, Claudia, que sei que a situação das mulheres é muitíssimas vezes difícil. Fico, por exemplo, absolutamente mortificado ao pensar na situação das mulheres nos países muçulmanos. Mas sei que é não é apenas neles que as mulheres sofrem, e sofrem demais. O machismo é uma das mais cruéis invenções da humanidade.
    Procurei, na anotação sobre o filme, insistir em separar o que é o filme do que é a minha visão pessoal sobre a personagem.
    Nos anos 1920, quando se passa a ação do filme, claro, a situção era ainda muito pior do que é hoje.
    Mas insisto: especificamente no caso retratado no filme, aquela mulher tinha todos os meios para abandonar a vida provinciana que odiava e se mudar para Paris. Aquela Thérèse é, na minha visão, uma pessoa fraca. Tinha tudo para lutar contra a opressão, e se deixa oprimir. O interior da França, convenhamos, não é o Afeganistão.
    Em suma: se meu texto deixou a impressão de que não compreendo que em muitíssimos casos, em muitíssimos lugares, nas mais diferentes épocas, as mulheres são oprimidos, foi um erro meu.
    Espero que você volte a este site, para contestar minhas opiniões, muitas vezes.
    Um abraço.
    Sérgio

  3. Oi, Sérgio!
    Acho que, apesar de estar no interior da França, ainda era começo do século vinte (se nao me engano), e mesmo com os meios existentes que estavam disponíveis para a Therese como dinheiro, tempo, transporte etc, a dificuldade em dar uma guinada na vida estava dentro da cabeça dela mesmo. Ainda bem que no fim do filme ela consegue sair daquela situação.
    O modo em que as mulheres são criadas e educadas, ainda mesmo atualmente, em São Paulo (por exemplo), é diferente dos homens.
    Um dia mesmo eu estava com os meus dois sobrinhos no Mc Donalds e enquanto eu terminava de comer, eles estavam brincando no playground da lanchonete. Os dois estavam suados, descalços, correndo de um lado pra outro e se divertindo do jeito deles, e eu apenas com um olho no peixe e outro no gato, deixando-os à vontade. Eis que uma mãe de uma garota da mesma idade dos meus sobrinhos que estava na brincadeira com a criançada começou a chamar a atenção da filha ˜Ei, cuidado com o seu vestido! Não tire o seu sapato!, cuidado para não cair˜.
    Eu pensei, nossa, será q eu sou muito liberal com os meus sobrinhos ou realmente nós meninas somos criadas assim desde sempre?
    Enfim, eu sou mais adepta à segunda hipótese. Acho que as meninas desde cedo são mais coibidas de fazer as mesmas coisas que os meninos, tem seus desejos e ações mais talhados desde criança.
    Eu sei que tem pais bacanas, que são mais igualitários na educação das crianças, mas estou me referindo à média. E na média, acredito que desde cedo a sociedade, a família etc, nos lembra o tempo todo ˜ei, vc não é tão livre assim˜.
    Por isso, imagino que mentalmente, a Therese teve que lutar contra essas ideias na própria cabeça.

    Enfim, é uma longa conversa, mas eu adorei poder postá-la aqui no seu blog que eu admiro tanto!

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