Alguns executivos da NBC, uma das três maiores redes da TV americana, tinham muitas dúvidas sobre Seinfeld. Achavam que era um humor nova-iorquino demais, e judeu demais, para ser compreendido e apreciado pelo resto do país.
O próprio co-criador da série, o comediante Larry David, tinha sérias dúvidas sobre aquilo. Até porque jamais havia escrito um roteiro de um programa de TV – era, até 1989, um extremamente bem sucedido homem da stand up comedy, essa coisa que, se não estou muito enganado, é uma invenção puramente americana: um sujeito de pé (daí o stand up), com um microfone na mão, contando piadas num bar, num teatro.
Mas os chefões da NBC achavam que poderiam aproveitar aquele jovem comediante que despontava, Jerry Seinfeld. Em 1989, ele estava com 35 anos, parecia ainda mais moço, tinha boa pinta, uma bela voz, e já havia se apresentado no programa de Johnny Carson, uma das maiores audiências da TV americana, depois nos de David Letterman e Merv Griffin. A NBC então o chamou para uma entrevista: que tipo de coisa ele gostaria de fazer?
Jerry Seinfeld faria a partir daí 172 episódios do que viria a ser uma das séries mais elogiadas – e longevas – da televisão americana. Depois de um piloto apresentado em 1989, foram 9 temporadas, entre 1990 e 1998, que conquistaram 3 Globos de Ouro e mais 59 prêmios, fora outras 139 indicações.
Sucesso é isso aí.
Jerry Seinfeld está muito à vontade por que interpteta a si mesmo
As dúvidas dos executivos da NBC tinham razão de ser. Vendo as duas primeiras temporadas agora, pela primeira vez, mais de duas décadas depois, Mary e eu concordamos: sim, é um humor nova-iorquino demais, e judeu demais. Mas talvez isso seja boa parte da explicação para o inesperado sucesso. É aquela velha verdade: se você quiser ser universal, fale da sua aldeia.
Na série, pelo que se pode ver pelas duas primeiras temporadas, Jerry Seinfeld está muito à vontade porque interpreta a si mesmo. Seu personagem, que tem seu próprio nome, é exatamente ele: um cara da stand up comedy, que mora em Manhattan, e faz apresentações na própria cidade e fora dela. Do seu dia-a-dia, do que vê na rua, do que conversa com os amigos, retira as piadas para os shows que faz.
Em cada um dos episódios – sempre curtos, em torno de 25 minutos de duração –, Seinfeld, o personagem, aparece fazendo seu show, contando piadas para uma audiência disposta a se divertir. São piadas sobre o cotidiano, os probleminhas do dia-a-dia, e, em especial, sobre as dificuldades dos relacionamentos entre homens e mulheres, as diferenças de comportamento entre uns e outras.
O esquema é sempre o mesmo: na abertura de cada episódio, está lá Seinfeld de pé no palco, diante do microfone e da platéia, contando piadas, fazendo comentários sobre a vida o amor a morte. Depois vemos Seinfeld na sua vida normal, conversando com os amigos. Lá pelo meio de cada episódio, aparece novamente o momento de stand up comedy, bem rapidinho. Ao final do episódio, ele está de novo no palco.
Além dele, há três outros personagens fixos, presentes em todos os 172 episódios. George Constanza (Jason Alexander) é o maior amigo de Seinfeld; trabalha como corretor imobiliário, é neurótico, neurastênico, hipocondríaco, pessimista. Tem imensa dificuldade de enfrentar cada momento da vida; define-se como o homem que menos conhece as mulheres em todo o mundo, como o homem que menos sabe lidar com elas.
Na verdade, George Constanza é o alter-ego de Larry David, o co-autor e co-roteirista de toda a série. O próprio Larry David diz isso, nos vários especiais que acompanham as duas primeiras temporadas no DVD. E o ator Jason Alexander conta, nos especiais, que, quando foi chamado para fazer o teste para o papel, atuou como uma imitação de Woody Allen – Woody Allen tem bastante a ver com o universo da série. Só depois que já havia sido aceito para o papel foi que percebeu que seu personagem era inspirado em Larry David, era na verdade Larry David escarrado. Aí parou de imitar Woody Allen e passou a imitar Larry David.
Dá para perceber: Jerry Seinfeld seguramente escreve as falas de Seinfeld, o seu personagem. Larry David escreve as de George Constanza. Ou seja: cada um deles escreve exatamente o que pensa, sente.
E aí temos Kramer, vizinho de Seinfeld, vizinho próximo, porta com porta. Kramer, interpretado por Michael Richards, é o mais abertamente hilariante de todos os quatro. É doido de pedra. Doido dos bons, dos que não fazem mal aos outros – bem, ao menos não faz mal a ninguém propositadamente. É um sujeito que não foi bem talhado para a vida. É desajeitado, desengonçado, falastrão – e tem sempre o palpite mais absurdo para apresentar.
Depois que vimos uns dois, três episódios, e pegamos o espírito da coisa, bastava Kramer entrar em cena, com sua figura troncha, esquisita – o ator Michael Richards é altão, magro, um tanto curvado, com olhos em geral esbugalhados – para eu começar a rir.
Os executivos encomendaram quatro episódios – e pediram que houvesse uma mulher
A quarta personagem é Elaine Benes, o papel de Julia Louis-Dreyfus.
Elaine Benes não aparece no piloto da série, que se chamou The Seinfeld Chronicles. Depois de exibir o piloto, para testar, para ver a reação dos espectadores, os executivos da NBC pediram a Jerry Seinfeld e Larry David para escrever quatro novos programas. Deram a eles grande liberdade, mas apresentaram um pedido: que houvesse uma mulher entre os personagens principais.
Não é sempre que os executivos das grandes redes de TV erram. No caso específico, eles estavam certíssimos: era preciso ter uma mulher na história, o que na indústria de Hollywood chamam de female interest.
Imagine-se a série Seinfeld sem Elaine Benes-Julia Louis-Dreyfus: três sujeitos na tela o tempo todo? Coisa mais sem graça!
No piloto em que não há Elaine Benes, há duas mulheres, dois female interests. Uma delas é a garçonete que trabalha numa lanchonete perto do apartamento de Seinfeld, em que ele e seu amigo George Constanza conversam. (Boa parte de toda a série se passa em lanchonetes, cafés, restaurantes – e no apartamento do protagonista.) E a outra é a amiga de Seinfeld de uma cidade distante que virá passar um fim de semana em Nova York.
A moça havia telefonado para Seinfeld e perguntado se ela poderia passar o fim de semana no apartamento dele. Todo o tema do piloto é a discussão entre Seinfeld e George: será que o fato de a moça ter se convidado para ficar no apartamento dele indica que haverá sexo? Seinfeld acha que pode ser; George, eternamente pessimista, acha que não.
O piloto não foi um estouro, mas agradou à crítica, ou a alguns críticos, que elogiaram a criatividade, a ousadia de botar na TV um piloto com o tom de humor dos comediantes de stand up.
E então a NBC encomendou a Seinfeld e Larry David os roteiros de mais quatro programas – com o pedido de que houvesse uma mulher entre os personagens centrais.
Sábia decisão.
Os co-autores inventaram então Elaine Benes. Elaine é uma ex-namorada de Seinfeld; quando começa o episódio número 1 (levando em conta que o piloto é uma espécie de número 0), eles são bons amigos. Na verdade, excelentes amigos. O namoro tinha ficado para trás; eles não pensam mais em sexo (entre eles); são irmãos camaradas cúmplices. Na verdade, Elaine é tão irmã camarada cúmplice de Seinfeld quanto o pessimista George – e ela também se dá bem com George, e até com o doidaço Kramer.
São assim uma espécie de Os Três Mosqueteiros que na verdade eram quatro.
A série é da mesma época de When Harry Met Sally… – e da mesma produtora
E aqui entra um detalhe que me parece absolutamente fascinante.
Como já foi dito, o piloto foi ao ar em 1989. Nos quatro episódios da primeira temporada, exibidos na TV americana em 1990, temos então dois ex-namorados que não pensam mais em sexo (entre eles, repito), e que são apenas bons, excelentes amigos. E a amizade funciona às mil maravilhas. Às vezes, quando Seinfeld está a fim de alguma mulher, chega a comentar com George que Elaine poderia ficar com ciúme. Mas ele namora assim mesmo, e Elaine também tem seus casos. E os dois continuam irmãos camaradas cúmplices.
Exatamente em 1989 foi lançado uma pequena comédia romântica que rapidamente se transformaria em um novo clássico, cujo tema era: homem e mulher não podem ser amigos, porque inevitavelmente surgirá entre eles o sexo, e aí a amizade deixa de ser apenas amizade.
Enquanto víamos os episódios da primeira e da segunda temporada de Seinfeld, eu dizia e repetia para Mary: mas ele e ela são tão Harry e Sally!
A coincidência absolutamente fascinante é que Harry e Sally – Feitos um para o Outro/When Harry Met Sally…, lançado em 1989, argumento e roteiro de Nora Ephron, tinha a direção de Rob Reiner e a produção da Castle Rock Entertainment, a produtora criada pelo próprio diretor. Em Harry e Sally, os dois protagonistas primeiro se desentendem, se desprezam, se odeiam, para, depois de muitos anos, virarem amigos inseparáveis, irmãos camaradas cúmplices.
A Castle Rock de Rob Reiner é a produtora da série Seinfeld. Os episódios da série eram entregues, prontinhos, à NBC, que os exibia – mas a rede não era a produtora do programa.
Julia Louis-Dreyfus foi feita para viver Elaine – ou Elaine foi criada para ela, tanto faz
Se foi sábia a decisão da NBC de pedir a existência de uma mulher entre os personagens centrais, mais sábia ainda foi a escolha da atriz para fazer o papel de Elaine.
Julia Louis-Dreyfus é daquelas comediantes natas, daquelas atrizes que têm o timing perfeito para cada fala, cada entonação, cada caretinha.
Nascida com o nome principesco de Julia Elizabeth Scarlett Louis-Dreyfus em Manhattan mesmo, em 1961, começou a carreira com um pequeno papel em um filme de terror de 1986, Troll – O Mundo do Espanto. Por algum motivo, foi vista por Juliet Taylor, a diretora de casting de praticamente todos os filmes de Woody Allen, e ganhou um pequeno papel em Hannah e Suas Irmãs (19866). Mais tarde, voltaria a aparecer brevemente em outro filme de Allen, Desconstruindo Harry (1997).
Tinha sete títulos em sua filmografia quando foi escolhida para o papel de Elaine.
São as tais sortes que acontecem na vida – para a atriz e para a série.
A atriz foi feita para o papel – ou o papel foi feito para ela, ou as duas coisas juntas. Julia Louis-Dreyfus não é uma beleza assombrosa – é uma moça de rosto bonitinho, simpática, encantadora. Com um natural talento para o humor. Em vários momentos destas duas primeiras temporadas, o espectador fica com a sensação de que Julia Louis-Dreyfus está rindo das piadas que escreveram para ela dizer, ou então está rindo do que seus colegas acabaram de dizer.
Aliás, na verdade, esta é uma constante na série: volta e meia a gente vê um daqueles quatro atores rindo, e fica em dúvida se é o personagem que está rindo ou se é simplesmente o ator que não resistiu à piada que está ouvindo ou dizendo.
Aproveito para fazer um registro nada importante, um registro pessoal: foi por causa de Julia Louis-Dreyfus que resolvi ver as primeiras temporadas de Seinfeld, saber o que era aquilo. Já tinha ouvido vagamente falar da série – muito vagamente. Já tinha visto as várias caixinhas de DVDs na locadora, mas não tinha idéia do que era.
Depois de ver À Procura do Amor/Enough Said, o belo filme de Nicole Holofcener de 2013, o canto do cisne do grande ator James Gandolfini, me surpreendi por não conhecer a atriz que faz a protagonista. Ao ver que ela era uma das atrizes principais de Seinfeld foi que pensei: ué, por que não experimentar?
Não sei se Julia Louis-Dreyfus está prosa ou não, mas ela está com tudo. No mesmo mês em que vimos as duas primeiras temporadas de Seinfeld, abril de 2014, a atriz foi capa da Rolling Stone americana. A veneranda revista nascida no auge da contracultura, nos anos 60, traz a manchete “The First Lady of Comedy”, com o subtítulo (ali um ante-título) “Julia Louis-Dreyfus – Her Journey from ‘Seinfeld’ to ‘Veep’”. A foto da capa é uma Julia Louis-Dreyfus peladinha aos gloriosos 52 anos de idade, vista de costas, olhando para trás com aquela carinha brincalhona dela, tendo tatuado, nas costas, em letra cursiva como no original, o texto da Constituição dos Estados Unidos.
(O Veep citado na capa da Rolling Stone é a série em que a atriz interpreta a vice-presidente – daí o título – americana, uma política absolutamente trapalhona, boquirrota. Veep estreou em 2012 e já está garantida até a temporada de 2015.)
Há, ao longo dos episódios, aqueles aplausos e risos de programa de auditório
Confesso que a princípio me incomodou bastante o fato de haver risadas de auditório ao longo dos 23, 25 minutos de cada um dos episódios. É um troço chato: a gente fica imaginando os auditórios de TV, em que placas são mostradas para o público: “Aplausos!” – e a platéia, obediente, aplaude. “Risadas!” – e a platéia, obediente, ri. “Risadas fortes!” – e a platéia, obediente, aplaude e morre de rir, como se fossem blogueiros companheiros entrevistando Lula.
Mas depois fui me acostumando com essa coisa – até porque, em Seinfeld, faz sentido, porque os episódios da série são assim como extensões dos shows da stand up comedy.
Cada episódio, como já foi dito, apresenta três curtos trechinhos de shows do personagem Seinfeld fazendo seus shows de stand up comedy, e a platéia, pequena, de bar intimista, ri, sem necessidade de letreiros, placares, pedindo risadas. E então as risadas ao longo da ação são como extensões do que acontece no palco dos pequenos teatros e/ou bares onde o comediante se apresenta.
Um episódio mostra Seinfeld, Elaine e George na fila de espera de um restaurante. Só isso
Nos especiais que acompanham o DVD, um dos executivos da rede NBC conta, candidamente, que de fato não entendeu quando Jerry Seinfeld e Larry David enviaram para a emissora o roteiro do episódio 6 da segunda temporada, The Chinese Restaurant. Ele conta que, na época, perguntou para si próprio e para os colegas: “Mas é só isso? O show inteiro, eles ficam na fila de espera do restaurante? E não acontece mais nada?”
É: o episódio é assim mesmo. Quase meia hora. Seinfeld, Elaine e George estão na fila de espera de um restaurante chinês. Conversam. George se enfurece. Elaine está morta de fome. Não acontece mais nada – é só isso mesmo. E é deliciosamente engraçado.
Mas, afinal, é possível homem e mulher serem amigos sem que o sexo interfira?
Mas então, e a questão subjacente, talvez na verdade a questão principal, a questão que o filme de Rob Reiner abordou da mesma forma que esta série produzida por sua Castle Rock Entertainment: é possível um homem e uma mulher serem amigos, sem que o sexo interfira – ou fira? Ou atrapalhe? Ou melhore? Ou esculhambe?
Ah, bem, aí, como dizia uma conhecida minha, numa tirada digna do filósofo greco-cearense José Genoino, cada um, cada um. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ou, como dizia outro cearense, que não se pretende filósofo, quem viver chorará.
Eu, pessoalmente, me orgulho de ter tido na vida muitas amigas. Muitas delas foram ou ainda são grandes irmãs camaradas cúmplices. Talvez tenha havido uma ou duas que não cantei. Com quantas tive sucesso, não me lembro mais.
(Graçolas à parte, um dos orgulhos que tenho na vida é de ter continuado amigo das minhas ex-mulheres e ex-namoradas.)
O último episódio da segunda temporada, a de 1991, The Deal,
o acordo, a combinação, trata do tema amizade entre homens e mulheres & sexo em profundidade.
Tanto, que fiquei extremamente curioso em saber como os roteiristas Jerry Seinfeld e Larry David vão se sair, na terceira temporada, da armadilha que eles mesmos criaram no fim da segunda.
A vida é curta, e há muito filme bom, sério, denso, duro, para ver. Mas exatamente porque a vida é curta dá vontade de ver mais Seinfeld.
Anotação em abril de 2014
Seinfeld – A Primeira e a Segunda Temporadas
De Larry David e Jerry Seinfeld, criadores e roteiristas, 1989-1991
Diretores: Tom Cherones, Joshua White
Com Seinfeld (Jerry Seinfeld), Julia Louis-Dreyfus (Elaine Benes), Michael Richards (Kramer), Jason Alexander (George Costanza)
Argumento e roteiro Larry David, Jerry Seinfeld e vários outros
Fotografia Charles W. Short, Jerry D. Good, Robert Barry
Música Jonathan Wolff
Produção Castle Rock Entertainment, West-Shapiro.
Cor
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Um comentário para “Seinfeld – A Primeira e a Segunda Temporadas”