Resistência, produção mais galesa que inglesa de 2011 dirigida por um realizador estreante, Amit Gupta, é um belo filme. Estranho, inquietante, a rigor apavorante. Um filme que faz pensar, questionar.
Não tem créditos iniciais, mas diz a que vem já de cara. Um letreiro, em letras brancas – bem pequenas – sobre fundo negro informa: “Depois do fracasso do Dia D, a Grã-Bretanha foi invadida pela Alemanha.” E um segundo letreiro diz: “Olchan Valley, 1944”.
Uma realidade alternativa. Uma ficção-fantasia a partir de uma terrível, absurda, chocante, impensável realidade alternativa: a invasão da Normandia pelos aliados falhou, o curso da Segunda Guerra Mundial não foi o que de fato aconteceu, e estamos diante do pior dos mundos – as tropas nazistas invadiram aquela ilha símbolo da democracia que nem Napoleão havia conseguido derrotar.
Ficção-fantasia – mas tudo mostrado de uma forma profundamente, arraigadamente realista.
Apesar de retratar uma realidade que não houve, uma realidade fictícia, absolutamente catastrófica, Resistência não tem absolutamente nada a ver com os filmes-catástrofes tão comuns no cinemão comercial americano, tipo 2012, O Dia Depois de Amanhã, Independence Day, Invasão a Casa Branca.
Numa sacada brilhante, o autor do livro de mesmo nome, lançado em 2007, Owen Sheers, ele também co-autor do roteiro, junto com o diretor Amit Gupta, focaliza um microcosmo específico: toda a ação se passa no tal Olchan Valley, uma região praticamente isolada do resto do mundo, no País de Gales – a terra natal, aliás, do escritor.
Não há nada de Londres, sequer de Cardiff, a capital de Gales, na narrativa. Não há qualquer menção a Churchill, o então primeiro-ministro britânico.
A trama focaliza apenas um grupo de pessoas comuns daquele vale do País de Gales – e um pequeno destacamento de soldados alemães que é enviado para o lugar, enquanto há combates nas grandes cidades inglesas. O filme não mostra os combates, apenas os menciona. As maiores cidades estão sendo cercadas pelo exército invasor, Londres está a ponto de ser dominada – mas há, repito, apenas menções a esses fatos nos diálogos entre os personagens.
Toda a ação e toda a narrativa se concentram naquele pequeno lugar, naquele microcosmo. O que importa, em Resistência, não são os governantes, os líderes, os heróis – são as pessoas simples, comuns, ordinary people, pessoas como você ou eu. Bem, não exatamente como você ou eu, porque as personagens do filme são mulheres que vivem em fazendas, em áreas rurais, e não urbanóides como o eventual leitor e eu. Mas enfim: pessoas do povo, pessoas comuns.
Numa manhã, as mulheres do lugar acordam sem seus homens ao lado
A primeira sequência do filme mostra um punhado de homens caminhando de madrugada pelos terrenos íngremes, acidentados, cheios de morros, do tal Olchan Valley – o País de Gales que o filme mostra é montanhoso como as Minas Gerais onde crescei, como as Perdizes em que vivo faz tantas décadas que já perdi a conta.
Um dos homens, um rapaz jovem, de menos de 30 anos, olha para trás – e então vemos uma mulher de pele muito clara e cabelos muito negros dormindo em sua cama.
Corta, e em seguida vemos aquela mulher, a protagonista da história, Sarah Lewis (interpretada, magistralmente, por Andrea Riseborough), acordando sozinha. Ela chama por Tom, o marido, mas Tom não está na fazenda.
Outras mulheres do vale acordam sem os homens a seu lado. Todos os homens do vale haviam, na madrugada, à sorrelfa, à socapa (como diziam os textos do jornalismo policial de muito antigamente), abandonado suas mulheres, suas fazendas, para lutar na resistência contra o exército estrangeiro invasor.
Negaram-se todos a avisar suas mulheres do passo que dariam. Provavelmente haviam planejado tudo, combinado a data exata da fuga para a luta, sem dizer uma palavra para elas. Provavelmente – porque o filme não mostra nada disso. Mostra apenas a saída daqueles homens, e a imensa surpresa das mulheres no começo da manhã em que se encontram sós.
E aí eu fico me perguntando como esse fedelho desse realizador estreante de nome estranho, Amit Gupta, arranjou tanto talento para fazer essa abertura brilhante do filme, o jovem fazendeiro Tom olhando para trás para que, numa montagem rápida, o espectador visse a bela mulher que ele estava abandonando para lutar contra os invasores de seu país.
O alemão que comanda o destacamento nazista é um homem bom
O pequeno destacamento de soldados alemães enviado àquele pequeno pedaço das Ilhas Britânicas é comandado pelo capitão Albrecht (Tom Wlashiha). Obviamente, o capitão percebe de cara que, se não há homens naquele lugar, eles foram se unir à resistência.
Acontece que o capitão Albrecht é uma alma atormentada. O livro de Owen Sheers não sei, mas o filme não nos explica quase nada sobre o passado do capitão. A única informação que será dada é de que ele havia perdido sua casa e sua mulher em um bombardeio dos aliados. Não se mostra claramente, mas tudo indica que Albrecht havia sido convocado pelo regime nazista para entrar no exército. Não é um soldado de carreira – e não é, de forma alguma, um nazista. Está ali porque foi obrigado, porque não teve outra escolha.
Na verdade, o capitão é um homem bom. Não é a favor da guerra, não é a favor do Führer (aliás, o nome de Adolf Hitler não é citado uma única vez).
É um homem bom – e tudo o que quer é evitar que os soldados sob seu comando sejam mortos nas frentes de batalha nas grandes cidades, e que haja atrocidades, de qualquer tipo, na área para a qual foi destacado.
O capitão Albrecht é, no fundo, um pacifista.
Não, talvez não chegue a tanto. O capitão Albrecht é uma boa pessoa, como a imensa maior parte das pessoas é. Como foi dada a ele uma posição de comando, ele usa sua posição de forma boa – mesmo que isso não seja exatamente o que se espera de um capitão do exército alemão que está ocupando a Grã-Bretanha.
O capitão alemão é um pouco como o Barley de A Casa da Rússia
Me ocorre que o capitão Albrecht é um pouco como Barley, o extraordinário, maravilhoso personagem criado por John Le Carré em A Casa da Rússia, beleza de romance transformado em beleza de filme pelo australiano Fred Schepisi. Barley, no filme interpretado por Sean Connery no auge do charme maduro, é um editor de livros inglês já nos instantes finais do império comunista que, entre a paixão por uma russa e os interrogatórios dos serviços secretos inglês e americano, opta pela frase definitiva: minha pátria é você.
O capitão do exército nazista é, antes de tudo, antes mesmo de ser alemão, um homem, uma pessoa, que, como todas as outras, tem o direito de perseguir a felicidade. Estaria absolutamente feliz se pudesse fugir daquilo tudo levando com ele a galesa de personalidade tão bela quanto seu rosto.
As ideologias, elas que se danem, ou não – as pessoas são mais importantes
Na minha opinião, uma das coisas que este filme inquietante quer dizer é aquilo em que venho acreditando cada vez mais, enquanto vou ficando mais velho: as pessoas são muito mais importantes que as ideologias. Na verdade – ao contrário do que eu acreditava quando era bem jovem –, as ideologias, ou, no mínimo, a sujeição absoluta às ideologias, só fazem é ferrar as pessoas. As ideologias escravizam, amesquinham, diminuem as pessoas.
Estava com carradas de razão (como dizia o poeta Chico, esse ser que na política é tão bocó) o jovem Gilberto Gil quando cantava que “a cultura, a civilização, elas que se danem, ou não”. Depois de velho Gil faria besteiras com sua vida, mas o verso dele é maior do que seus equívocos políticos. As ideologias, elas que se danem, ou não – as pessoas são mais importantes.
Ao mesmo tempo, e exatamente porque a vida não é nada simples, há que resistir aos totalitarismos, há que lutar contra eles.
Sarah diz uma frase fundamental para Albrecht: – “Eu leio, sabe? Eu sei o que vocês fazem.”
Não se trata apenas de um exército estrangeiro estar invadindo o país de Sarah. Não é só isso. É mais, é extraordinariamente mais: é que o exército invasor representa o mal em si, tendo executado milhões e milhões de pessoas inocentes.
E então, diante disso, aí nem é a ideologia propriamente dita que conta. É a base do que se entende que é a vida. Ou se colabora com o horror, o terror, o negror total e absoluto, ou se resiste a ele, se luta, de alguma forma, contra ele.
Em suma, em suma, este é um filme contra os fundamentalistas
Resistência é um filme tão inquietante que nos mostra até mesmo que há dois tipos de resistentes.
Há os fundamentalistas, os idiotas, os desprovidos de razão, os incapazes de compreender nuances, como o garoto George, tadinho (interpretado por Iwan Rheon). E, graças ao bom Deus, a todos os deuses, às estrelas, ao posicionamento de Marte com Vênus, ou seja lá o que for, há os que sabem fazer distinções entre uma coisa e outra, como Sarah, como Maggie, a mais velha das mulheres do lugar (uma bela interpretação de Sharon Morgan).
Resistência não é um filme para agradar a todas as platéias. Fundamentalistas de todos os matizes muito provavelmente não vão compreendê-lo – e pior, vão dizer que o filme defende exatamente o que eles pensam.
Besteira. Este é um filme contra os fundamentalistas.
Um filme que respeita a inteligência do espectador
O belo site All Movies não fez análise crítica do filme – apresenta apenas um boa sinopse. Em uma rápida busca por outras opiniões, vi que os leitores do IMDb se dividiram entre os que odiaram e os que amaram o filme. Há quem diga que o difícil é resistir ao sono ao ver Resistência; ou que é um filme à procura de uma história.
Um leitor da Grã-Bretanha, no entanto, escreveu o seguinte:
“Resistance é um filme de guerra como nenhum outro que já vi. Provavelmente o mais acurado seria descrevê-lo como um filme sobre a humanidade encontrada na guerra. Isso provavelmente o marca como um filme anti-guerras, e claramente não é para o gosto de todos. É, todavia, para o meu, e me peguei pensando sobre ele por muitos dias depois de vê-lo. É um filme que fica com você. É também um filme que talvez espere bastante da audiência, motivo pelo qual minha mulher e eu ficamos incrivelmente gratos, porque isso é cada vez mais raro. Eu recomendaria a você que visse este filme, se você gostar de idéias, beleza e nada de respostas fáceis. As atuações são uniformemente sensacionais e a fotografia, de tirar o fôlego. Não veja caso você goste de que digam a você o que pensar. Este é um filme sobre questões difíceis em circunstâncias extremas, e como tal exige um compromisso do espectador.”
Concordo plenamente com o leitor do IMDb que escreveu isso. Ele pegou perfeitamente, acho eu, essa característica importante de Resistência: nesta época em que são cada vez mais comuns os filmes que tratam os espectadores como se fossem burros, este filme vai na contramão. É um filme para platéias inteligentes.
Anotação em janeiro de 2014
Resistência/Resistance
De Amit Gupta, País de Gales-Inglaterra-Alemanha, 2011
Com Andrea Riseborough (Sarah), Tom Wlaschiha (Albrecht), Sharon Morgan (Maggie), Michael Sheen (Tommy Atkins), Iwan Rheon (George), Kimberley Nixon (Bethan), Alexander Doetsch (Steiner), Stanislav Ianevski (Bernhardt), Anatole Taubman (Sebald), Simon Armstrong (o pai de George), Mossie Smith (Ruth)
Roteiro Amit Gupta e Owen Sheers
Baseado no livro Resistance, de Owen Sheers
Fotografia John Pardue
Música Mark Bradshaw
Montagem Christopher Barwell
Produção Big Rich Films, Film Agency for Wales, Square One Entertainment. DVD Califórnia Filmes.
Cor, 92 min
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Boa tarde, Sérgio! Relutei muito em escrever o meu comentário sobre esse filme. Dificilmente fico pensando muito sobre filmes (e creio que isso seja um defeito), mas a esse foi impossível não ficar pensando e de ter medo, literal pavor dessa possível realidade, foi algo inquietante que me acompanhou por vários dias e só acalmei-me quando vi que era uma ficção e que dentro do contexto histórico, mesmo que a invasão tivesse falhado, seria difícil uma vitória nazista.
Mas creio que aqui a discussão não é história, e penso que o sentimento de angústia do filme vem do fato de não sabermos nada, apenas algumas notícias bem esparsas e, por fim, ver que não haverá final feliz, como muitas vezes ocorre na vida.
Mais perplexo fico, em saber que, por motivos diferentes, esse filme não permite que as pessoas que assistem a ele fiquem indiferentes.
Que bela análise! Tão linda quanto o filme a que acabei de assistir. Precisava “conversar”
com quem também tivesse mergulhado nele e aqui encontrei dito tudo o que vi e um pouco mais. Obrigada.
Nossa, Sonia, que delícia receber sua mensagem!
Muito obrigado!
Penso nisso quando faço essas anotações sobre os filmes que vejo: quando a
gente termina de ver um filme de que gosta, tem vontade de conversar sobre
ele, checar a opinião de outras pessoas. E imagino que o Google pode levar
pessoas – como aconteceu com você – a ler os meus textos. Para gostar ou
desgostar!
Que legal que nossas opiniões são parecidas!
Espero que você volte outras vezes ao site.
Um abraço.
Sérgio
Pode me dizer onde consigo esse filme dublado ou legendado? Eu assisti pelo youtube mesmo sem legenda, entendo um pouco de inglês e nada de alemão,mas mesmo assim fiquei encantada com o filme é maravilhoso. Os atores principais são magníficos! Seu texto também é maravilhoso. Parabéns
Olá, Maristela!
Antes de mais nada, agradeço pela mensagem e pelo elogio ao meu texto.
Quanro ao que de fato importa: o filme saiu no Brasil pela em DVD pela Califórnia FIlmes. Acho que você poderá encontrar nos sites grandes livrarias, tipo Cultura ou Saraiva ou Fnac. Ou pode tentar diretamente com a empresa que lançou.
Sobre como encontrá-lo na internet, não vou poder ajudar você. Não é minha praia, não conheço os caminhos das pedras.
Um abraço.
Sérgio