Vinicius de Moraes escreveu que são demais os perigos nesta vida. Tinha carradas de razão. Mas é impressionante como os perigos têm a capacidade de se acumular na adolescência. Atravessar a adolescência é como percorrer um campo cheio de minas terrestres.
Meninas Não Choram, produção alemã de 2002, é uma perfeita amostra disso.
“Ser adolescente é uma merda”, diz Maria von Heland, autora do argumento e do roteiro e realizadora do filme, numa entrevista em um especial do DVD. “Não importa como, onde, em que época. É um tempo difícil. Você é tratado como adulto, você parece adulto, tem que lidar com problemas de adulto, mas a única experiência que você tem é de uma criança.”
Maria von Heland nasceu em 1965, em Estocolmo, mas filha de pais alemães. Estudou artes nos Estados Unidos e cinema na Alemanha. Tinha apenas 37 anos quando lançou este Große Mädchen weinen nicht, seu segundo longa-metragem.
Na entrevista para o making of que acompanha o filme no DVD, conta que entrevistou dezenas e dezenas de adolescentes, como preparação para a elaboração da história e do roteiro. Não usou a história específica de nenhum dos jovens que ouviu – mas certamente soube captar o clima, os anseios, o linguajar, os modismos dos adolescentes que ela mostra no filme.
Ser adolescente é uma merda em qualquer lugar, em qualquer época, como ela bem diz, mas os adolescentes que ela mostra, especificamente, são os berlinenses do início do novo século e novo milênio. Berlinenses da classe média – meninos e meninas que nunca passaram por qualquer tipo de privação material. Que, ao contrário, sempre tiveram tudo à sua disposição – boas escolas, bons médicos, bons transportes públicos, boa e farta comida.
Um filme que foi um fabuloso acerto de casting
A trama que Maria von Heland criou gira em torno de duas garotas, amigas desde sempre, desde que tinham aí 3 ou 4 anos de idade. A loura Kati e a ruiva Steffi estão agora, na época em que se passa a ação, com 16; estudam no mesmo colégio, na mesma classe, na mesma fileira.
Kati é interpretada por Anna Maria Mühe (à direita na foto), que é 1985 e estava portanto com 17 anos quando o filme foi lançado. Foi seu primeiro filme; sua filmografia já tem, em setembro de 2014, 48 títulos, e ela acumula cinco prêmios e quatro outras indicações.
Steffi é o papel de Karoline Herfurth (à esquerda na foto), nascida em 1984, que estava portanto com 18. Tem 33 filmes no currículo (inclusive Perfume – A História de um Assassino, O Leitor e Vincent Quer Ver o Mar), já ganhou cinco prêmios e duas outras indicações.
As duas são berlinenses, como as personagens que interpretam.
Assim como para Anna Maria Mühe, Meninas Não Choram foi o filme de estréia de outra adolescente promissora, Jennifer Ulrich, também berlinense, também de 1984. Sua filmografia tem 44 títulos, inclusive o excelente A Onda/Die Welle (2008) e o muito provavelmente bobo As Donas da Noite (2010), sobre um trio de jovens vampiras que deve ter feito sucesso entre os adolescentes; por coincidência, ou não, Karoline Herfurth faz outra das três vampiras.
Neste seu filme de estréia, Jennifer Ulrich faz uma personagem que não aparece muito na tela, mas é fundamental na trama, Yvonne, colega de classe de Kati e Steffi.
Espero que tenha ficado claro, com essa rápida apresentação das três atrizes, que Meninas Não Choram foi um acerto fabuloso de casting. E deve ter sido um filme de grande impacto na Alemanha na época de seu lançamento.
O filme começa de forma bem suave, mas ficando cada vez mais barra pesada
No início da narrativa, até parece que estamos diante de um mais um filmezinho banal sobre os probleminhas e os prazeres da adolescência, como o cinemão comercial americano adora fazer. Steffi e Kati são absolutamente curiosas e interessadas em sexo. Observam os garotos tomando banho depois da aula de ginástica. São virgens ainda, mas se preocupam em ter camisinhas à mão para quando o momento surgir – e elas querem que surja logo. Em especial Kati, que quase já teve sua primeira experiência, mas o namoro acabou não dando certo.
Steffi tem namorado firme, Carlos (David Winter, na foto abaixo), da mesma classe das duas na escola, guitarrista e cantor de uma iniciante banda de rock. Carlos, garotão centrado, não força a barra para trepar com a namorada – espera que ela esteja preparada, com vontade.
A bela Yvonne, que também é da mesma classe, tem fama de dar pra todo mundo.
Esse início suave serve para que o espectador vá conhecendo as características básicas das personalidades desses garotos e garotas. Veremos que Steffi é filha única, o pai é jornalista, a mãe costuma viajar a trabalho; aparentemente, todos ali se dão bem.
Já Kati tem uma irmãzinha bem mais nova, aí de uns 8, 10 anos. A mãe é extremamente religiosa, e rígida. Está sempre pegando no pé da filha adolescente para que ela não saia tanto à noite, não se pinte, não use roupas provocantes. E Kati gosta de se pintar e gosta de mostrar o corpo que tem. Tem seios amplos – e isso ao mesmo tempo é um problema e um prazer para ela.
O tom suave vai desaparecer bem rapidamente, e Meninas Não Choram vai ficar cada vez mais barra pesada. Muito barra pesada.
O filme enrosca o espectador numa teia de angústia exasperante
Numa primeira ida a uma boate que não conheciam, bem longe da casa delas, no lado Leste da cidade, levados por um jovem fotógrafo por quem Kati se interessa, Klaus (Tillbert Strahl-Schäfer), as duas flagram Hans (Stefan Kurt), o pai de Steffi, com outra mulher.
Steffi conhece aquela mulher, sabe que ela é colega do pai no jornal; chama-se Jeanette (Teresa Harder).
Ela põe na cabeça que vai se vingar da amante do pai, e também da filha dela, Tessa (Josefine Domes). Inventa um esquema que fará com que Tessa, garota mais ou menos da idade dela, talvez um pouquinho mais velha, que quer ser cantora, vá parar – pensando que está indo a um estúdio de gravação – num estúdio de filmes pornô.
As tragédias passarão a acontecer como bola de neve, como uma avalanche.
Depois de um início leve, suave, Meninas Não Choram enrosca o espectador numa teia de angústia exasperante.
Alguns adolescentes se perdem, outros conseguem escapar das armadilhas
Uma das minas terrestres mais comuns no caminho dos adolescentes são as drogas – e o filme passa pelo tema, como não poderia deixar de ser, é claro. É tão difícil uma pessoa atravessar a adolescência sem se enredar nas drogas quanto uma pessoa tentar caminhar entre as gotas de uma tempestade sem se molhar.
Há ainda a atração da violência, da marginalidade, da vida bandida – tão exaltada, glorificada, em tantos e tantos filmes.
Há até o apelo do fanatismo religioso.
Cada um de nós conhece, viu de perto jovens que tiveram problemas mais ou menos sérios com drogas. Jovens que acabam caindo no banditismo são em menor número, ao menos na classe média mais escolarizada, mas não chegam a ser raridade.
Formação de caráter é uma coisa absolutamente complexa; são infinitas variáveis agindo sobre o adolescente, esse ser em formação. Os pais podem fazer tudo da melhor forma possível e imaginável, e acontecer de o garoto ou a garota se perder.
No filme, a bela Yvonne é sofrida, angustiada: conta para Steffi que o pai a maltrata. Creio, porém, que a intenção da diretora Maria von Heland foi deixar em aberto para o espectador decidir – isso pode ser mentira, fantasia da garota. Mas o fato é que ela vai se perder na vida.
Steffi não tem nada do que reclamar de pai e mãe. Os dois a tratam muito bem. Ela reage ao fato de que o pai trai a mãe com planos de vingança absolutamente despropositados. Por algum motivo, desenvolveu um caráter brutal. Tem tudo para se perder de forma inapelável, sem retorno.
Kati, sua amiga-irmã, no entanto, vai se revelando, a cada novo golpe do destino, uma pessoa sensata, cordial, centrada.
Acontece no filme exatamente como acontece na vida. É assim mesmo. É exatamente assim. Alguns adolescentes se perdem completamente, outros chegam perto disso, outros conseguem escapar das armadilhas.
O filme mostra que, dez anos após a guerra do Muro, Berlim ainda era duas
Vi Meninas Não Choram por absoluto acaso. Estava zapeando num finalzinho de madrugada insone, passei pelo filme quando ele estava com uns 15 minutos – exatamente na sequência em que Steffi flagra o pai se agarrando com outra mulher na boate –, e não consegui parar de ver. Mas vi mal, exausto, embora ainda sem sono, quase sem volume para não acordar a Mary. Fui atrás do DVD na Top Cine, e aí vimos juntos o filme inteiro.
É um belo filme, sério, honesto. Maria von Heland, tão jovem, não parte para qualquer tipo de apelação. Sua narrativa é clara, clássica, sem firulas, sem frescuras. Mostra óbvio talento para a direção de atores – estão todos bem, adolescentes e adultos.
Me impressionou muito a garota que faz Tessa, a jovem que queria ser cantora e para quem Steffi prepara uma armadilha perigosíssima, brutal. Josefine Domes (à esquerda da foto acima e também na foto abaixo) tem uma beleza nada padrão, nada clássica – mas marcante, forte. Canta com sua própria voz algumas canções – uma delas, que coisa, “These boots are made for walkin’”, que creio ter sido o maior sucesso da carreira de Nancy Sinatra, a filha do cara, e que Stanley Kubrick usou brilhantemente na trilha sonora de Nascido para Matar/Full Metal Jacket.
Interessante ver uma garota berlinense em 2002 cantar uma canção que fez sucesso lá por 1967, 1968. Hum: 1966, na verdade. Nancy Sinatra botou o single em primeiro lugar do US Top 40 Hits em 1966, como mostra o livro da Billboard. O clipe, é claro, está no YouTube, Nancy e mais um monte de nancettes de botas e coxas de fora se balançando um tanto canhestramente, como chacretes ou faustãonetes.
Perdão – viajei. Música me faz viajar.
Ao contrário de Anna Maria Mühe, Karoline Herfurth e Jennifer Ulrich, no entanto, Josefine Domes jamais voltaria a atuar. O único filme dela que consta do IMDb é este aqui. Parece que teve uma carreira como cantora, mas sem grande sucesso.
Um detalhe que me pareceu bem importante – embora o filme só trate o tema quase en passant – é que, ainda naquele ano de 2002, fazia-se uma distinção clara entre os dois lados de Berlim, o Leste – que até 1989 era comunista – e o Oeste – que de 1945 até 1989 teve os setores americano, inglês e francês, e era uma ilha capitalista encravada na República Democrática Alemã.
Como eu disse, o filme não vai fundo nisso, trata o tema rapidamente, mas está lá. Tessa mora no lado Leste, e é mais pobre do que os demais adolescentes do filme, todos moradores do lado Oeste. Nas sequências passadas no lado Leste, o casario, os prédios são visivelmente mais pobres, mais mal cuidados.
Em 2002 já fazia mais de uma década da reunificação da Alemanha, e especificamente da reunificação de Berlim. A Alemanha Federal botou bilhões de marcos para ajudar o que havia sido a RDA a se erguer economicamente – mas, mais de dez anos depois, as diferenças entre o trecho da cidade que foi comunista e o trecho da cidade que foi capitalista ainda eram notáveis.
Impressionante.
Mas, repito mais uma vez, não é disso que trata o filme. Isso é mencionado algumas vezes, seguramente porque é uma realidade forte. Mas Meninas Não Choram não é nem pretende ser sobre política: fala dos perigos da adolescência. São demais, são terríveis – e o filme faz um belo retrato deles.
Anotação em setembro de 2014
Meninas Não Choram/Große Mädchen weinen nicht
De Maria von Heland, Alemanha, 2002.
Com Anna Maria Mühe (Kati), Karoline Herfurth (Steffi), Josefine Domes (Tessa),
e David Winter (Carlos), Tillbert Strahl-Schäfer (Klaus), Stefan Kurt (Hans, o pai de Steffi), Nina Petri (Ann, a mãe de Steffi), Gabriela Maria Schmeide (Ingrid, a mãe de Kati), Matthias Brandt (Jost, o pai de Kati), Teresa Harder (Jeanette, a mãe de Tessa), Dieter Laser (Herr Winter), Jennifer Ulrich (Yvonne), Alma Leiberg (Ramona), Chiara Steinmüller (Lotte)
Argumento e roteiro Maria von Heland
Fotografia Roman Osin
Música Nicklas Frisk e Andreas Mattsson
Montagem Jessica Congdon
Produção Deutsche Columbia TriStar Filmproduktion, Egoli Tossell Film.
Cor, 87 min
***
Título nos EUA e Inglaterra: Big Girls Don’t Cry.
Excelente análise!