Primeiro e até agora único filme dirigido pelo ator Liev Schreiber este Everything is Illuminated, no Brasil reduzido para Uma Vida Iluminada, é bastante interessante. O tema de fundo é o Holocausto, o Shoah, mas o tom é leve, bem humorado, brincalhão, quase farsesco.
Conta a história de um rapaz, Jonathan (o papel de Elijah Wood), nova-iorquino, judeu, um fanático colecionador de coisas que pertenceram a pessoas de sua família. Desde quando era um garotinho, e perdeu seu avô, Safran (Stepán Samudovský), Jonathan pega objetos, guarda-os em saquinhos plásticos, etiqueta-os, e pendura-os em uma grande parede de sua casa. Quando o avô morreu, Jonathan encontrou numa gaveta do criado-mudo uma espécie de broche – um vidro, ou cristal, com um gafanhoto dentro.
Quando Jonathan é um jovem adulto – os dias em que a ação principal se passa, os tempos atuais, anos 2000 –, sua avó (Jana Hrabetová) entrega para ele uma foto muito antiga e um cordão com a estrela judaica. “Seu avô gostaria que você ficasse com isso”, diz ela.
Jonathan examina cuidadosamente a foto, em que aparece um casal. O homem, então jovem, é Safran, seu avô. Atrás da foto, com a letra do avô, está escrito: “Augustine e eu – 1940 – Trachimbrod”.
Jonathan pergunta para a avó quem é Augustine, de quem ele, colecionador de coisas da família, jamais ouvira falar. Mas é tarde: naquele exato momento, a avó passa desta para melhor.
Como se a morte da avó fosse a coisa mais natural e esperada do mundo, Jonathan pega, de um copo no criado-mudo ao lado dela, a dentadura; coloca num saquinho plástico, etiqueta-o e coloca o saquinho na sua parede-memorial.
Colecionar a dentadura da avó recém-morta deve ser algum tipo de piada de humor judeu.
A história é narrada por um garotão russo de Odessa, uma figuraça
Todo o filme é cheio de piadas assim. Há muitas piadas gozando judeus, neste filme feito por um judeu, sobre judeus, cujo tema de fundo é o assassinato de milhões de judeus pelos nazistas.
Há piadas de todas as formas. Há um bando de piadas politicamente incorretas – que maravilha!
Não é preciso que o espectador seja muito atento para perceber que o nome do personagem central, Jonathan Safran Foer, é o nome do autor do livro em que o filme se baseia. O nome do autor aparece com toda clareza nos créditos iniciais – sim, porque, embora seja de 2005, Everything is Illuminated tem créditos iniciais, como se fazia antigamente e hoje em dia praticamente não se faz mais.
Os créditos iniciais dizem que Liev Schreiber foi o autor do roteiro e o diretor. O que é fascinante. Schreiber, ator de talento e prestígio, mais de 60 filmes no currículo, fez aqui sua estréia como roteirista e como diretor. Demonstra grande talento.
Se o personagem tem o mesmo nome do autor do livro que deu origem ao filme, seria de se supor que a história fosse autobiográfica. Seria a lógica.
No entanto, quem narra a história de Jonathan Safran Foer, o protagonista, não é ele mesmo, e sim Alexander Perchov III, mais conhecido como Alex. Alex – maravilhosamente interpretado por Eugene Hutz, na foto abaixo – é um russo da cidade ucraniana de Odessa, garotão aí de uns 23 a 25 anos, um tipo malandrão, bem humorado, que se veste de maneira esportiva e desengonçada, tem o cabelo topetudo e desgrenhado, adora dançar, adora os Estados Unidos, adora a música e os filmes americanos. É apaixonado por Embalos de Sábado à Noite e por Michael Jackson.
Alex é, em quase tudo, o oposto de Jonathan.
Jonathan se veste sempre de terno. Seu cabelo é sempre cuidadosamente penteado. Nunca sorri: é sério, sisudo, Filho do Tempo, como diz do garotinho personagem de Judas, O Obscuro seu autor, Thomas Hardy.
Um filme cheio de piadas politicamente incorretas
Quando o filme começa, vemos Jonathan, diante do túmulo do avô – a lápide diz “Safran Froer – 1921-1989”, e depois o seguimos pelo metrô. Mas o que ouvimos é a voz em off do ator que faz o papel de Alex.
O avô de Alex (Boris Leskin) havia criado, muitos anos antes, um serviço de atendimento a judeus que viajavam à Ucrânia em busca de informações sobre seus antepassados, ou simplesmente para visitar os locais em que eles haviam vivido.
O pai de Alex (Oleksandr Choroshko) havia herdado o negócio do pai. E esperava transmiti-lo para o filho.
A voz em off de Alex nos conta essa história, primeiro enquanto vemos as imagens de Jonathan em Nova York, e depois quando vemos imagens do próprio Alex e sua família em Odessa.
Foi assim que Alex ficou conhecendo Jonathan: após a morte de sua avó, o rapaz viajou para a Ucrânia, para saber mais sobre o passado de seu avô, e tentar descobrir quem era Augustine, que aparecia na foto ao lado de Safran em Trachimbrod.
No filme baseado em livro de Jonathan Safran Foer em que o protagonista tem o nome do autor, quem escreve a história da visita de Jonathan à terra de seu avô é esse Alex, jovem malandrão de Odessa que sempre havia achado que os judeus têm merda na cabeça. Até conhecer o colecionador Jonathan.
A coisa de achar que judeu tem merda na cabeça é dita pela voz em off de Alex bem no início do filme. Com todas as letras.
Um avô cego que dirige carro, um pai que bate no filho adulto, um cão chamdo Sammy Davis Jr. Jr.
A forma com que o filme mostra Alex e toda a sua família beira a mais aberta farsa. É uma gozação esculachada, escancarada. Alex fala num inglês cheio de palavras pouco usuais, tem um jeito de sonso, de meio bocó – embora seja, na verdade, bastante esperto.
O pai de Alex dá socos na cara dele quando ele fala alguma bobagem.
O avô, então, é uma figura cômica. Diz ter ficado cego, depois de perder a mulher – e tem até um cão guia, que ganhou de Alex o nome de Sammy Davis Jr. Jr. Até o cão é doido. Quanto ao avô, está sempre de péssimo humor, e não gosta absolutamente nada de judeus – embora tenha vivido ganhando dinheiro de judeus que levava em turnês pelo interior da Ucrânia.
Alex, o avô e Sammy Davis Jr. Jr. se incumbirão de levar Jonathan para sua excursão em busca de uma cidade, Trachimbrod, que não está nos mapas e de cujo nome ninguém parece ter ouvido falar.
O avô cego vai dirigir o carro, com Alex na cadeira do carona. E Jonathan, que tem sério problema de fobia de cães, será obrigado a compartilhar o banco de trás do carro velhíssimo com Sammy Davis Jr. Jr.
O filme trafega na fina linha entre o cômico e o grotesco com uma segurança espantosa
O tom, repito, é sempre bem humorado. Um tom cômico, esculachado, escrachado, politicamente incorretíssimo, beirando a farsa aberta. Às vezes parece beirar também o realismo fantástico.
Novato, neófito, inexperiente tanto em escrever roteiros quanto em dirigir, Liev Schreiber demonstra grande talento, repito. Seu filme não desafina – trafega nessa fina linha que separa o cômico do grotesco com uma segurança espantosa.
Não me ocorreu isto enquanto via o filme, mas sim dois dias depois (ao contrário do que normalmente acontece, não fiz a anotação imediatamente após ter visto o filme): o tom deste All is Illuminated faz lembrar o de Trem da Vida (1998), o fascinante, maravilhoso filme do romeno radicado na França Radu Mihaileanu, também sobre o Holocausto.
É sempre arriscado fazer esse tipo de afirmação, mas eu poderia jurar que Liev Schreiber viu e reviu Trem da Vida, antes de fazer seu filme de estréia como roteirista e diretor.
O autor do livro de fato fez uma viagem à Ucrânia, assim como o protagonista
E aí? Seria All is Illuminated uma história autobiográfica – embora narrada por um ucraniano, e não por um judeu americano?
Jonathan Safran Foer nasceu em Washington, em 1977. O livro Everything is Illuminated é de 2002 – entre o lançamento do livro e o do filme passaram-se portanto apenas três anos. Em 2005 ele lançou Extremely Loud and Incredibly Close, que seria transformado em elogiado filme em 2011. Atualmente, segundo a Wikepedia, ele ensina escrita criativa na New York University; também segundo a enciclopédia da era da internet, seus trabalhos dividem público e crítica – há os que amam, há os que detestam.
E, sim, ele de fato visitou a Ucrânia em 2001.
Everything is Illuminated ganhou o National Jewish Book Award e o Guardian First Book Award.
O quanto há de ficção e o quanto há de realidade da vida de seus antepassados na história, não tenho idéia. Mas houve, de fato, um massacre de judeus em um lugarejo ucraniano chamado Trachimbrod (como é grafado no filme), ou Trochenbrod (como é grafado na Wikipedia em inglês).
Um excelente trabalho de escolha de atores. E uma trilha sonora sensacional
Nomes, grafias.
Não dá para saber por que raios os exibidores brasileiros resolveram reduzir a afirmação genérica, planetária, do título original, Tudo é Iluminado, para Uma Vida Iluminada. Cabeça de titulador de filmes tem mais mistérios que toda a física quântica; é uma caixinha de surpresas mais surpreendente do que o futebol.
Aliás, de quem seria a única vida iluminada a que se refere o título brasileiro? Certamente não a de Jonathan, nem a de Alex. Seria talvez a de Lista, que só aparece na história depois dos 30 minutos do segundo tempo?
Que beleza, que imponente a figura de Laryssa Lauret (na foto), a atriz escolhida para fazer Lista. Vejo que Laryssa Lauret é polonesa, nascida em 1939 – exatamente o ano em que os nazistas invadiram a Polônia e começou a Segunda Guerra Mundial. Tem apenas cinco títulos no currículo – e dois deles são séries de TV.
E esse garoto Eugene Hutz, que faz o malandrão meio bocó meio espertalhão Alex, e rouba todas as cenas em que aparece? O que que é aquilo, siô?
É ucraniano mesmo. Nasceu em 1972 na então República Socialista da Ucrânia, uma das muitas repúblicas da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Segundo o IMDb, foi líder de uma banda de música cigano-punk.
Cigano-punk! Acho que essa categoria musical nem o Carlos Bêla conhece!
(Ledo engano meu. Ao ouvir de mim a expressão cigano-punk, Carlos respondeu: “cigano-punk? já até imagino quem seja: você tá falando do Eugene Hütz, cantor do Gogol Bordello, que participou do filme Everything Is Illuminated? adoro essa banda.” O bicho é fogo.)
Sua filmografia é curtíssima: apenas quatro títulos, um deles um curta-metragem.
Liev Schreiber mostrou diversas faces de talento em seu filme de estréia como diretor. Uma delas é dirigir bem os atores. Outra é ter contado com uma direção de casting de excepcional qualidade. A diretora de cast é Avy Kaufman, uma mulher que trabalha nuns cinco filmes por ano no mínimo. Fez um trabalho esplendoroso. As figuras que ela encontrou são sensacionais.
E, para encerrar, a trilha sonora.
É uma absoluta maravilha, a trilha sonora – não apenas as composições originais, escritas para o filme por Paul Cantelon, mas em especial as canções escolhidas como músicas incidentais. Imagino que sejam músicas folk e pop da Ucrânia mesmo. São sensacionais, gostosíssimas; muitas são canções alegres, bem humoradas, que servem perfeitamente para dar o tom do filme.
Deveria dirigir mais filmes, o bom ator Liev Schreiber. E, neste ano de 2013, está em pré-produção sua segunda realização, Sydney Unplugged. É para anotar e ver assim que chegar aqui.
Anotação em fevereiro de 2013
Uma Vida Iluminada/Everything is Illuminated
De Liev Schreiber, EUA, 2005.
Com Elijah Wood (Jonathan Safran Foer), Eugene Hutz (Alex), Boris Leskin (o avô de Alex),
e Laryssa Lauret (Lista), Tereza Veselková (Augustine), Oleksandr Choroshko (Alexander Perchov pai), Zuzana Hodkova (a mãe de Alex), Stepán Samudovský (Safran, o avô de Jonathan), Jana Hrabetová (a avó de Jonathan), Ljubomir Dezera (Jonathan garotinho), Jonathan Safran Foer (gari no cemitério)
Fotografia Matthew Libatique
Música Paul Cantelon
Montagem Andrew Marcus e Craig McKay
Casting Avy Kaufman
Produção Warner Independent Pictures, Telegraph Films, Big Beach Films, Stillking Films. DVD Warner.
Cor, 106 min
***
o filme eu ainda não vi. gostaria muito. mas a trilha sonora é maravilhosa mesmo.
hahah obrigado pela citação.
Gogol Bordello, aliás, não só ainda existe como está lançando disco novo mês que vem e recentemente fez shows no Brasil.
esse Eugene, inclusive, morou por aqui algum tempo.
abração!