Um Doce Olhar, do realizador turco Semih Kaplanoglu, ganhou o Urso de Ouro e o Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim de 2010, ano em que foi lançado. Ganhou outros seis prêmios e teve mais seis indicações.
Mas não é um filme que agradou apenas aos jurados de festivais e aos críticos. No IMDb, por exemplo, há diversos textos de pessoas comuns, como eu ou o eventual leitor, com loas e mais loas ao filme.
É uma daquelas obras que mostram o mundo através dos olhos de uma criança. O protagonista, Yusuf (Bora Altas), tem aí entre sete e dez anos – o filme não explicita, e não sou muito bom para cravar a idade de crianças.
Filho único, Yusuf vive com o pai, Yakup (Erdal Besikçioglu), e a mãe, Zehra (Tülin Özen), numa região bem remota da Turquia – um lugar montanhoso, de montanhas altas, belíssimas, de uma vegetação exuberante, com árvores frondosas.
Yakup vive basicamente do mel que recolhe das colméias de abelhas no alto das árvores – Bal, o título original do filme, é a palavra turca para mel. Não é uma vida fácil, de forma alguma, até porque, nos últimos tempos, está mais difícil encontrar as colméias, que estão cada vez mais raras, e exigem que Yakup faça caminhadas mais e mais longas.
Mas, se a vida é dura, difícil, pelo menos a família não passa por necessidades básicas. A casa em que vivem, encarapitada num morro, é ampla e tem todos os confortos básicos. São pobres – mas estão muito longe da miséria.
Um garotinho que só se comunica com o mundo através do pai
Yusuf tem que caminhar um bocado até a escola rural em que estuda.
Em casa, junto do pai, Yusuf lê o que está escrito na folhinha – lê a data e as informações que a folhinha traz sobre aquele dia: tantos anos de tal fato histórico, tantos anos de outro fato histórico.
Lê bem, com segurança.
Na escola, no entanto, é absolutamente incapaz de ler sequer o título de uma das historinhas do livro-cartilha. Gagueja, tartamudeia, fica tenso, nervoso, não consegue passar do título. Os colegas riem dele, o professor tem que mandar a turma ficar em silêncio.
Com o pai, Yusuf conversa normalmente.
Quando o pai não está presente, ele gagueja.
Confesso que não consegui compreender essa estranha síndrome.
A relação é toda com o pai. Com a mãe, Yusuf estabelece pouco contato.
Zehra demonstra preocupação com o filho. Pergunta ao marido o que eles podem fazer – mas o pai parece não ver problema no comportamento de Yusuf.
Numa determinada ocasião, Zehra levará Yusuf a um imã, para que o religioso o abençoe.
A bênção e a fé do imã, no entanto, não modificam em nada o comportamento do garotinho.
Ele só se comunica com o mundo através do pai.
O pai está escalando uma árvore muito alta; o galho que o segura começa a quebrar
O espectador fica sabendo antes do filho Yusuf e da esposa Zehra sobre o destino de Yakup.
A câmara está parada, fixa, sobre um tripé, certamente. Não importa muito para o espectador onde repousa a câmara – o fato é que a primeira tomada de Bal é de uma câmara que está parada, fixa, no meio de uma floresta.
A primeira tomada do filme leva uns 3, talvez 4 minutos.
A câmara está lá, fixa, paradona. É o anti-cinema, de vez que kinema, no grego – a palavra que deu origem ao cinema tal qual o conhecemos desde o finalzinho do século XIX -, significa movimento.
O homem, que depois saberemos que é Yakup, é que se movimenta.
Traz um burro, que carrega seus instrumentos. Anda no meio das árvores, olha, observa.
Depois de andar pra lá e pra cá (saindo, inclusive, do quadro de visão da câmara, que permanece fixa, paradona, anti-kinema, anti-movimento), ele se decide a laçar um galho de uma determinada árvore.
Joga o laço num galho da árvore escolhida.
E em seguida vai escalando a árvore, puxando-se pela corda, batendo os pés na árvore.
Vai escalando a árvore.
Aí acontece um ruído.
O galho que Yakup laçou começa a quebrar. O peso de Yakup é maior do que o galho pode suportar.
Depois de uns 3, talvez 4 minutos, há um corte.
A segunda tomada do filme, um close-up, mostra Yakup na horizontal.
Corta, e o filme nos apresenta uma terceira tomada, um plano geral: Yakup, ao contrário do que poderíamos ter pensado ao ver a segunda tomada, não está caído no chão.
Não. Está em posição horizontal em relação ao solo, perpendicular em relação à altíssima árvore. Ainda não caiu. Pode ser – quem sabe? – que não caia. Pode ser que, se cair, não morra. Mas, se cair, daquela altura, provavelmente morrerá.
Na abertura, uma sequência de grande impacto
E em seguida veremos Yakup conversando com seu filho.
Yusuf aproxima-se da folhinha, e lê o que está escrito lá com uma absoluta firmeza.
E então começa propriamente a narrativa.
Não há absolutamente nenhuma lei que proíba neguinho de mexer com a cronologia, ao narrar uma história. Neguinho pode contar sua história do jeito que quiser – de trás pra frente, em zigue-zague. Como tudo é permitido, permite-se até mesmo que neguinho conte história seguindo os fatos cronológicos. Nem mesmo isso é proibido.
Depois que Resnais e Bergman misturaram sonhos e realidade, passado e futuro, então, tudo é permitido.
Inclusive – e por que não? – vermos antes de tudo um fato que vai acontecer no meio da história a ser contada. Isso é até bastante comum no cinema hoje.
E as tomadas iniciais do filme são de grande impacto.
Uma sequência belíssima com o garotinho e sua mãe
A fotografia de Bal é extraordinária.
É de uma absurda beleza o que o diretor de fotografia consegue para extrair a luz do sol sobre o verde daquelas montanhas turcas.
O garotinho Bora Altas é um estupor como Yusuf.
Há, de fato, uma outra sequência linda. Já faz alguns dias que Yakup saiu à procura de colméias; tinha avisado que ficaria fora um ou dois dias, mas está demorando, e Zehra, sua mulher, se preocupa. O espectador já sabe, desde a primeira sequência, que houve um gravíssimo acidente com Yakup.
Estão sentados à mesa Zehra e o garotinho Yusuf. Perto de Yusuf há um copo de leite. Já havíamos visto que Yusuf detesta leite. Mas a mãe está preocupada, triste, angustiada – e então Yusuf toma o copo de leite de um fôlego só, para agradá-la. Fica olhando para o rosto da mãe, à espera de reconhecimento de seu gesto de carinho – mas Zehra nem viu, percebeu, absorta que está temendo que algo tenha acontecido ao marido.
É um belo, belíssimo momento do filme.
Bal é o terceiro filme de uma trilogia com o personagem Yusuf
Agora, o que é mesmo que este filme muito bem realizado quis dizer?
Não tenho a mínima idéia.
Uma pequena criatura que só fala com os outros através do pai. Se não tem o pai presente, não fala, não se comunica.
What the fuck será que o diretor Semih Kaplanoglu quis dizer, meu Deus do céu e também da terra?
Seguramente é um problema meu. Não tenho capacidade de compreender o que o diretor Semih Kaplanoglu explicou tão bem para o júri da Berlinale 2010, e para tantos espectadores que adoraram o filme.
Vejo no IMDb que Bal é o terceiro filme de uma trilogia de Semih Kaplanoglu sobre o personagem Yusuf.
No filme de 2007, Yumurta, Yussuf, então um poeta, volta à sua cidade natal.
No segundo filme da trilogia, Süt, Yusuf não conseguiu passar no vestibular para a universidade.
Legal.
Na minha opinião, este filme é de uma chatice atroz. Mas tudo bem: minha opinião não vale nem uma moeda de três guaranis furados.
Anotação em abril de 2013
Um Doce Olhar/Bal
De Semih Kaplanoglu, Turquia-Alemanha-França, 2010
Com Bora Altas (Yusuf), Erdal Besikçioglu (Yakup), Tülin Özen (Zehra)
Roteiro Semih Kaplanoglu e Orçun Köksal
Fotografia Baris Ozbicer
No DVD. Produção Kaplan Film Production, Heimatfilm, Eurimages. DVD Paris Filmes.
Cor, 103 min.
**
Sergio, você sempre acertando na opinião. Um Doce Olhar é o típico filme chato de festival, todo lento e contemplativo. Não tem um objetivo. Diz-se como um filme sobre o amor incondicional. Até é, mas de uma maneira chata.
Só não é horroroso devido à excelente escolha do Bora Altaş para interpretar o protagonista Yussuf. Ele é ótimo, tem um olhar cativante, é doce. Daí talvez venha o nome traduzido em português, pois mais uma vez os brasileiros decidiram ignorar o Mel da tradução literal de Bal.
O bom do 50 Anos de Filmes, é que além de excelentes textos e ótimas dicas, nos livra de frias como este filme. Não tenho paciência pra esse tipo de película, ainda mais quando não diz a que veio.
Engraçado que sempre achei mesmo que você quase sempre passa meio longe de acertar a idade das crianças nos filmes. hehe Acho que não precisa cravar, mas no geral você lhes dá anos a mais. =D