Ao longo dos primeiros, digamos, 95 minutos dos 102 que dura A Família Flynn, no original Being Flynn, mostra-se que o jovem Nick teve uma vida duríssima, barra pesada, dramática, apavorante.
A mãe, Jody (interpretada por Julianne Moore), morreu cedo, de forma trágica, traumatizante. O espectador só saberá como foi quando a narrativa já está chegando ao fim.
O pai (o papel de Robert De Niro, dono de uma das produtoras do filme, a Tribeca), Jonathan Flynn, sempre foi ausente. Deixou a mulher quando o filho eram bem garoto – e desapareceu. A ausência do pai tornou-se ainda mais marcante na vida de Nick (interpretado por Liam Broggy quando garoto, e por Paul Dano quando jovem adulto) devido às cartas que ele mandava para o menino. Dezenas e dezenas de cartas de um pai que jamais dava as caras.
Jonathan é mostrado no filme como um total desajustado, beirando a insanidade. Esteve preso quando o filho era garoto, por forjar cheques; era alcoólatra, violento, egocêntrico, homofóbico, preconceituoso (xingava negros como já seria absurdo fazê-lo no Sul Profundo nos anos 30 ou 40, mas que era absolutamente inaceitável, inconcebível, nos anos 90 numa grande metrópole).
E é megalômano, mitômano: considerava-se um grande escritor. Dizia que os Estados Unidos tiveram três grandes escritores: Mark Twain, J. D. Salinger e ele, Jonathan Flynn. Escrevia sem parar o que considerava O Grande Romance Americano, um calhamaço interminável que nunca ninguém havia lido.
Na época em que a ação começa, quando Nick Flynn está com uns 27 anos, Jonathan trabalhava como motorista de táxi e morava num apartamento em prédio decadente, bastante pobre. Mas sua vida ainda iria piorar muito, muitíssimo, a partir daí.
Nick, por sua vez, era um jovem bastante perdido. Achava que ainda seria um escritor, como o pai se acreditava, mas duvidava muito de seu próprio talento. Fazia trabalhos ocasionais.
Ficou conhecendo dois amigos, que moravam num imóvel que havia sido uma boate e pertencia a um sujeito ligado ao crime organizado; o sujeito havia sido preso, a boate havia fechado, o imóvel estava abandonado, os dois amigos o ocupavam – um deles era traficante de drogas. Nick acabou sendo aceito por eles.
Através desses dois, o rapaz ficou conhecendo Denise (Olivia Thirlby), uma moça que trabalhava em um abrigo para pessoas sem-teto, os miseráveis das ruas da grande metrópole. Nick e Denise começaram um caso, e o rapaz foi trabalhar no abrigo.
A miséria dos sem-teto que o filme do diretor Paul Weitz mostra é a mais sórdida, degradante, nauseante, absurda que pode haver. É o mundo da Inglaterra da Revolução Industrial que Charles Dickens retratou em seus romances acontecendo numa metrópole do país mais rico do mundo no limiar do século XXI.
E o jovem Nick cai no poço das drogas.
As informações abaixo são, a rigor, spoiler
A capinha do DVD informa: “Baseado em uma história real”. Eu não tinha visto esse título no alto da contracapa; tinha pego o filme para experimentar uma produção nova com De Niro.
Não há – como agora é o costume – créditos iniciais.
Nos créditos finais, está lá: baseado no livro de memórias Another Bullshit Night in Suck City, por Nick Flynn.
E Nick Flynn aparece nos créditos também como um dos produtores executivos.
É absolutamente chocante saber que toda aquela trágica história de vida de Nick Flynn tenha de fato acontecido.
E é fascinante saber que o homem que passou por todas aquelas experiências duríssimas, traumáticas, tenha superado as adversidades mais incríveis e se firmado como escritor.
Nick Flynn, nascido em 1960 numa pequena cidade de Massachusetts, publicou seu primeiro livro, uma coletânea de poemas, em 2000, quando estava, portanto, com 40 anos de idade. Um segundo livro de poemas saiu em 2002. O livro de memórias que deu origem ao filme foi publicado em 2004, e ele ainda escreveria dois outros de memórias, e mais uma peça teatral.
Já ganhou sete prêmios literários.
Está casado com a atriz Lili Taylor – que trabalha no filme, no papel de Joy, uma das funcionárias do abrigo para homeless.
Being Flynn vem se juntar a outros bons filmes sobre pessoas que se salvaram pela arte
Nesse sentido, Being Flynn faz lembrar outros filmes que mostram histórias de pessoas que tiveram vidas extremamente duras, difíceis, e, apesar de tanta adversidade, conseguiram se salvar através da arte.
Entre os Muros da Prisão/Les Hauts Murs, de Christian Faure (2008), por exemplo, é uma espécie de Pixote francês, sobre escolas-presídios para adolescentes na França dos anos 30. Mostra a infância e adolescência de um garoto numa dessas escolas-presídios, Yves Tréguier. Yves Tréguier se tornou escritor com o pseudônimo de Auguste Le Breton; o filme se baseia em suas memórias. Auguste Le Breton escreveu mais de 70 livros, muitos deles histórias policiais; diversas de suas obras foram adaptadas pelo cinema, como Rififi, de Jules Dassin (1954), e Os Sicilianos, de Henri Verneuil (1969).
Dois outros filmes franceses da mesma época de Entre os Muros da Prisão também retratam histórias de jovens criados em ambientes de muita pobreza, material ou moral, ou as duas juntas, que também escapariam da marginalidade graças a seu talento e amor à arte. É assim com a protagonista de Stella, beleza de filme da diretora Sylvie Verheyde – e a diretora deixa claro que a personagem Stella tem muito dela própria. Chimo (Mohammed Khouas), o jovem árabe de Lila Diz…, de Ziad Doueri, também tem praticamente tudo para se transformar num deliquente, num marginal; é salvo pela capacidade de escrever sobre suas próprias experiências.
Being Flynn vem se juntar a esses bons filmes.
Não se diz em momento algum onde a história se passa. Parece Nova York, mas é Boston
Dizer que Being Flynn é uma história real é um spoiler? Ou não, de forma alguma – na verdade é uma informação muito fascinante que faz o espectador ver o filme com mais interesse?
Não sei. De fato não sei.
Há um grande número de filmes que informam de cara, em letreiro no início da narrativa, nos créditos iniciais, que aquela é uma história real, ou é inspirada em uma história real.
Being Flynn não traz esse aviso. Talvez tenha sido excesso de zelo, mas achei melhor colocar bem lá em cima o aviso de que viriam a seguir informações que poderiam ser interpretadas como spoiler. Porque, se souber com antecedência que se trata de uma história real, o espectador saberá que a trama terá um final feliz.
Um detalhe: não se fala explicitamente, em momento algum, em que cidade se passa a ação.
Being Flynn foi inteiramente filmado em Nova York. Não vemos nenhum marco óbvio da cidade, tipo Empire States Building, Times Square ou Central Park, mas para mim (e também para Mary e meu cunhado Márcio, que viu o filme conosco e morou muito tempo em Nova York) ficou absolutamente claro que a ação se passa na maior metrópole americana.
No entanto, a história real aconteceu em outra grande metrópole, Boston.
De Niro tem uma belíssima interpretação. E o jovem Paul Dano se revela um grande ator
Robert De Niro brinda o espectador com uma belíssima interpretação.
Grande, maravilhoso ator, De Niro andou fazendo alguns filmes como se estivesse apenas com o piloto automático ligado. Andou fazendo muita careta, e se aventurou por comedinhas como Entrando Numa Fria, Entrando Numa Fria Maior Ainda, Entrando Numa Fria Maior Ainda Com a Família.
Como Jonathan Flynn, esse personagem trágico, quase louco, que passa por privações absurdas, inimagináveis, ele até faz caretas – mas elas são essenciais, são parte da personalidade do homem que ele interpreta. Está muitíssimo bem.
Deve ter se envolvido bastante com o projeto de filmar essa história real repleta de tragédias, já que botou sua empresa Tribeca para co-produzir.
E Paul Dano é uma revelação.
Gozado: até poucos dias atrás, não tinha idéia de quem é esse garoto. Em um período de duas semanas, vi dois filmes com ele: primeiro Ruby Sparks – A Namorada Perfeita, e agora este aqui.
O garoto não é um novato – eu é que sou desatento. Sua filmografia no IMDb já tem 32 títulos, incluindo três que em agosto de 2013 estavam em fase de pós-produção e em filmagem. Ele trabalhou em O Clube do Imperador (2002), Roubando Vidas (2004), Pequena Miss Sunshine (2006), Sangue Negro (2007), Aconteceu em Woodstock (2009), Encontro Explosivo (2010); vi os seis, mas confesso que não reparei nele.
Paul Franklin Dano nasceu em 1984, em Nova York; participou de uma banda de rock, Mook, como vocalista e guitarrista. Está casado (embora não no papel, mas o que importa o papel?) com Zoe Kazan, a neta do grande Elia Kazan que escreveu o roteiro de Ruby Sparks – A Namorada Perfeita, e contracena com ele no filme.
Já ganhou nove prêmios, fora quatro outras indicações.
É feioso, compridão, desengonçado. Quando um ator é feioso, compridão e desengonçado, e se dá bem na profissão, é sem dúvida porque tem talento.
Sua interpretação como Nick Flynn é impressionante.
O filme foi um fracasso na bilheteria. Uma pena
Nick Flynn é daquele tipo para quem tudo vira texto. Parece até com uma pessoa que minha filha conhece.
Neste ano de 2013, ele publicou seu terceiro livro de memórias, The Reenactments: A Memoir. (A palavra reenactments é o que parece: reencenação.) Trata da narrativa de sua experiência pessoal de acompanhar o processo de criação do filme Being Flynn.
Deve ter sido de fato uma experiência riquíssima – e também dolorosa.
É um sujeito de coragem, esse Nick Flynn. Despir-se tanto assim diante do mundo, mostrar sua vida trágica, exige muita coragem. E admitir que seu pai é uma porcaria, uma pessoa abjeta, deve ser algo extremamente difícil, penoso.
Apesar de ter no elenco Robert De Niro e Julianne Moore, dois grandes nomes, o filme parece ter sido um fracasso de bilheteria: estreou em março de 2012 nos Estados Unidos e só obteve US$ 540 mil na bilheteria, segundo o Box Office Mojo. Não se divulgou seu orçamento, mas sem dúvida alguma a bilheteria ficou muito, muito longe de cobrir o custo.
Uma pena. É um belo filme.
Anotação em agosto de 2013
A Família Flynn/Being Flynn
De Paul Weitz, EUA, 2012
Com Robert De Niro (Jonathan Flynn), Paul Dano (Nick Flynn), Julianne Moore (Jody Flynn), Olivia Thirlby (Denise), Eddie Rouse (Carlos), Steve Cirbus (Jeff), Lili Taylor (Joy), Victor Rasuk (Gabriel), Liam Broggy (jovem Nick), Chris Chalk (Ivan), Wes Studi (o capitão)
Roteiro Paul Weitz
Baseado no livro de memórias Another Bullshit Night in Suck City, de Nick Flynn
Fotografia Declan Quinn
Musica Badly Drawn Boy
Montagem Joan Sobel
Produção Focus Features, Depth of Field, Corduroy Films, Tribeca Productions. DVD Universal.
Cor, 102 min
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Um bom dia para voce, Sergio.
Tenho em minhas anotações, vi este filme em 30 de março deste ano.
Grande, belíssimo filme.
Como pode não é , um filme como este , deste quilate, ser fracasso de bilheteria.
E acreditar que uma coisa como “Avatar” foi aquele estrondo, meu Deus, não desce.
Isso vai ficar sempre entalado na minha garganta.
Bom, é opinião minha.
Uma atuação soberba, gigante, de De Niro. Este é o verdadeiro De Niro.
Aquelas comedinhas que voce cita já no final deste texto, também não vi porque não é o De Niro que eu gosto e admiro tanto.
Eu já achava o Paul Dano um grande ator desde ” Sangue Negro ” . Em “Ruby Sparks” eu comento algo sôbre ele.
O Jonathan com certeza,era um pai totalmente ausente. Tirando o problema com o álcool tinha os 4 adjetivos que voce citou para torná-lo um lixo de pessôa mas, ainda assim, não sei , em alguns momentos da história gostei de alguma coisa nele mas o lado negativo era muito forte.
De fato , difícil e angustiante a dúvida, o drama do Nick em ajudar ou não seu pai e, estar ou não ao seu lado ?
É como voce disse, o cara tem que ter peito, coragem, para mostrar sua vida trágica e admitir que seu pai é uma porcaria, uma pessôa desprezível. Não é facil, não.
Um filme muito forte e uma história ainda muito mais forte.
Um abraço !!