Fazer uma comédia sobre a perseguição dos nazistas aos judeus é um ato de coragem. Mas Trem da Vida, que o diretor romeno radicado na França Radu Mihaileanu realizou em 1998 é mais ousado ainda que uma simples comédia, porque é um filme não realista – é uma farsa, uma fantasia, uma obra de realismo fantástico, do surrealismo, quase um nonsense.
Um ano antes de Trem da Vida, o italiano Roberto Benigni havia feito uma comédia sobre o mesmo tema, A Vida é Bela, um filme de grande sucesso e, na minha opinião, um tanto superestimado, com seus três Oscars, outros 52 prêmios e 31 indicações.
Não que Benigni tivesse, é claro, inventado a roda. Os judeus – assim como os ciganos, homossexuais, portadores de deficiência – ainda estavam sendo presos e enviados para os campos de concentração quando Charles Chaplin fez O Grande Ditador (1940) e Ernst Lubitsch realizou Ser ou Não Ser (1942), duas comédias ácidas, duras, mas comédias, sobre o nazismo.
O grande diferencial de Trem da Vida, me parece, é o fato de ser uma narrativa nada, nada realista. E, nisso, ele foi um precursor de uma série de filmes que seriam feitos nos países surgidos dos escombros do comunismo, como a Geórgia e, em especial, a própria Romênia natal de Radu Mihaileanu. Filmes que denunciam, com extrema violência, imensa virulência, o outro regime totalitarista que dominou diversos países europeus ao longo de várias décadas do século XX.
Era como se aqueles diretores, que viveram sob as ditaduras comunistas, tivessem tanto ódio do totalitarismo imposto pelo império soviético que se insurgiam também contra o estilo narrativo que o Estado comunista exigia, o realismo socialista, optando pelo oposto dele – um estilo surrealista, quase nonsense.
Como já escrevi aqui: Em Os 27 Beijos Perdidos, feito por Nana Djordjadze em 2000 na Geórgia, a terra natal de Stálin, há um navio que passeia pelas ruas da pequena cidade e pelos campos ao seu redor, um marinheiro que perdeu o mar, um oficial que manda a artilharia disparar seus canhões em direção ao local em que sua mulher o trai com outro homem, um sujeito que amarra rolamentos no pauzão de 27 centímetros e depois não consegue tirá-los de lá e a cidade inteira tem que acudi-lo; e, numa seqüência antológica, um camarada que está comendo uma mulher de pé, encostando-a numa mesa, usa, para ficar mais alto e facilitar o trabalho, dois livrões de Karl Marx sob os pés – livros que em seguida vão pegar fogo.
Em Casamento Silencioso/Nunta Muta, feito em 2008 na própria Romênia, a narrativa do diretor Horatiu Malaele passeia pelo paranormal, vê fantasmas, bota os atores para atuar como que em um teatro farsesco, faz um surrealismo que deixaria Fellini humilhado de inveja.
O louco da aldeia é que dá aos sábios a idéia de fugir num trem
Essa fuga do realismo, essa vingança não só contra a ditadura, mas também contra a sua estética, é o cerne de O Trem da Vida – mais ainda que a opção, corajosa e difícil, pelo riso.
O filme conta a história de um vilarejo judeu, um shtetl, no verão de 1941, quando as tropas nazistas dominavam a maior parte da Europa, e, no seu avanço, iam prendendo milhares, milhões de judeus, que em seguida eram deportados, em trens, para os campos de concentração e extermínio. Não se especifica em que país fica aquela pequena aldeia – pode ser qualquer um da Europa Central ou do Leste, como a própria Romênia (onde boa parte do filme foi rodado).
Quem primeiro avista os nazistas chegando a uma aldeia próxima é Schlomo (Lionel Abelanski, na foto acima), o louco daquela aldeia, daquele shtetl específico. É Schlomo que conta o que viu para o conselho de sábios do shtetl, chefiado pelo Rabino (Clément Harari) – e é ele também, o louco da aldeia, que dá a idéia: antes que chegue o trem nazista para deportá-los, a aldeia poderia criar o seu próprio trem, pintá-lo como um trem nazista, e fantasiar alguns de seus habitantes como soldados nazistas. E assim eles poderiam viajar e escapar das prisões – viajar rumo à Rússia, depois rumo à Palestina.
Ao ver o movimento frenético da vila no dia seguinte à reunião do louco com os sábios, uma das mulheres sentencia:
– “Deus, por que são os homens que dirigem o mundo? E um louco mostra o caminho!”
Uma atmosfera onírica, surrealista, impregnada de um humor desavergonhado
Dá-se uma grande discussão para definir quais deles representarão os nazistas. Naturalmente, ninguém quer o papel do opressor. Mas o conselho de sábios vota e decide: Mordechai (Rufus), um dos bons comerciantes da aldeia, será o chefe do destacamento nazista incumbido de “deportar” os judeus.
A aldeia entra numa atividade febril – e são maravilhosas, esplendorosas as sequências, com belos travellings, elaborados planos gerais da aldeia trabalhando freneticamente, preparando o grande golpe. Essas sequências são tornadas mais fantasticamente belas pela trilha sonora, de autoria de Goran Bregovic, o grande músico natural de Sarajevo.
O filho do Rabino, Yossi (Michel Muller), é enviado até uma cidade para providenciar passaportes falsos com um amigo da comunidade. O tal amigo era um comunista ferrenho, e Yossi volta à sua aldeia comunistinha da silva, falando que ninguém deveria fugir de coisa alguma, que em breve o comunismo dominaria o mundo e tudo seria uma única e feliz nação socialista, formado apenas pelos homens novos, conforme ensinava o camarada Stálin.
Na hora de providenciar um profissional para pôr para andar a locomotiva, o máximo que conseguem é um jovem idealista, um burocrata do Ministério dos Transportes, que nunca dirigiu coisa alguma na vida. Mas ao menos ele tem um livro com instruções sobre como manejar uma locomotiva.
E por aí vai – tudo numa atmosfera onírica, surrealista, mas sempre impregnada de um humor desavergonhado, escrachado.
A garota mostra os seios para o jovem comunista: “Isto aqui não é melhor que Marx?”
A garota mais bela da aldeia, Esther (Agathe de La Fontaine, na foto), apaixona-se perdidamente por um garoto boa pinta, filho de Mordechai, e que havia sido convertido ao comunismo pela doutrinação de Yossi. Quando a bela conta ao pai o objeto de sua paixão, desperta a ira dele: ela não pode, de jeito nenhum, se apaixonar por um comunista que além de tudo é filho de um nazista.
Sim, porque a maioria dos vilarejos passa a acreditar piamente que seus compatriotas, seus amigos até dias atrás, que agora vestem fardas nazistas, passaram a ser de fato nazistas.
O próprio Mordechai, depois de algumas aulas de alemão, passa a achar que ele é, de fato, um oficial nazista que tem o direito de dar ordens aos prisioneiros judeus.
E, lá pelas tantas, a bela Esther se cansa da perspectiva de continuar virgem para todo o sempre, abre a blusa e mostra os peitos de estátua renascentista para o neo-comunista filho do neo-nazista:
– “Isto aqui não é melhor que Marx e Engels e Lênin?”
O rabino faz negócio com Deus
Num determinado momento, o trem – que anda em círculos, sem sair muito do lugar de origem – é cercado de nazistas de verdade.
O rabino negocia com Deus:
– “Meu Deus, nunca imaginei mesmo que todos nós escaparíamos. Mas faça com que as crianças e os jovens atravessem a fronteira e vivam em paz na Palestina.”
E, já que está mesmo negociando, prossegue:
– “Mulheres e homens também. Afinal, as crianças precisam dos pais. E, já que salvou tanta gente, por que abandonar os velhos? O que foi que eles fizeram?”
“A Terra só é Santa em um lugar?”
Usar o humor ao se falar de uma das maiores tragédias da história da humanidade é algo perigoso. Qualquer passo em falso e se pode cair da corda bamba no ridículo, no grotesco.
Radu Mihaileanu é um equilibrista de mão cheia. Um talento absurdo nessa arte perigosa. Jamais pisa em falso. Jamais comete uma vulgaridade. Jamais erra o tom. E tempera as tiradas surreais, oníricas, de sonho ruim, de pesadelo terrível, com pitadas de imensa simpatia pelos homens, pelos pobres seres humanos. Como no diálogo de um garotinho com sua mãe, no trem:
O garotinho: – “Ainda estamos longe?”
A mãe: – “Sim, meu querido.”
O garotinho: – “A Terra só é Santa em um lugar?”
A mãe: – “Tem razão. A Terra todas podia ser Santa. Bastaria querer. E nada mais seria distante.”
Um grande, talentoso realizador que produz poucos filmes, burilados como jóias
Trem da Vida foi o terceiro filme do diretor. Havia feito um curta-metragem em 1980, o ano em que se radicou da França, fugindo da ditadura patética de Nicolau Ceausescu. Em 1993 realizou Trahir e, em 1997, para a TV, seu segundo longa, Bonjour Antoine. Em 1998, ano de Trem da Vida, estava com 40 anos de idade.
É daquele tipo de artista que não produz demais; ao contrário, sua filmografia não é longa. Em 2002 veio outro filme para a TV, Les Pigmées de Carlo; em 2005, Um Herói do Nosso Tempo. E, em 2009, realizaria O Concerto, uma obra-prima maravilhosa, acachapantemente bela.
O Concerto tem várias das características que Mihaileanu já burilava em Trem da Vida. É também uma comédia, que muitas vezes passa longe dos naturalismos, do realismo pão-pão, queijo-queijo; também flerta com o nonsense, com a atmosfera onírica, surrealista. Também comete exageros – sem que isso, no entanto, desequilibre, desbalance a narrativa. E, como Trem da Vida, O Concerto é um panfletaço anti-totalitarismos, anti a entrega apaixonada e cega das pessoas às ideologias
Logo depois de ver O Concerto, poucos dias atrás – o que me deu muita vontade de rever este Trem da Vida –, anotei que o filme demonstra, como outras obras-primas do cinema, que as pessoas estão acima dos Estados, das ideologias, dos nacionalismos; que as pessoas são todas iguais; raça, existe uma só, a humana, seja a pele de que cor for, a íris dos olhos de que cor for; que são as ideologias, as fórmulas inventadas pelos que se pretendem dominadores das pessoas, que criam, nutrem e exacerbam os preconceitos entre os grupos de uma raça que afinal é a mesma; que, se fossem deixadas a seus próprios destinos, se não fossem instigadas pelas máquinas governamentais, as pessoas poderiam conviver de forma melhor, talvez até quase fraterna.
Quando passam a ser comunistas ou fantasiados de nazistas, os personagens deixam de ser fraternos
Trem da Vida insiste muito nessa noção, que está presente também em O Concerto. Em Trem da Vida, isso é realçado o tempo todo: os amigos da aldeia, uma vez divididos entre judeus e (falsos) nazistas e recém convertidos ao comunismo, tornam-se quase inimigos mortais. E a fantasia, a farda falsa, quase transforma o bom Mordechai num nazista.
Dá vontade de ver os outros filmes desse sujeito de imenso talento – os anteriores, e o que ele fez depois de O Concerto, La Source des Femmes, o poço das mulheres, uma produção de 2011 (o filme estreou no Brasil em janeiro de 2012). Credo em cruz: nesse novo filme, ele reúne a fantástica Hiam Abbas, de Lemmon Tree, A Noiva Síria e O Visitante, com a revelação Hafsia Herzi, a garotinha da dança do ventre de O Segredo do Grão. Um romeno-francês, uma palestina de Nazaré, uma francesa descendente de tunisianos e argelinos.
Promete, promete. Radu Mihaileanu é grande. Radu Mihaileanu é supra-nacional, como a música, o cinema, como toda arte que vale a pena.
Anotação em novembro de 2011
Trem da Vida/Train de Vie
De Radu Mihaileanu, França-Bélgica-Holanda-Israel-Romênia, 1998
Com Lionel Abelanski (Shlomo), Rufus (Mordechai), Clément Harari (o rabino), Michel Muller (Yossi), Agathe de La Fontaine (Esther), Johan Leysen (Schmecht), Bruno Abraham-Kremer (Yankele), Marie-José Nat (Sura), Gad Elmaleh (Manzatou)
Argumento e roteiro Radu Mihaileanu
Fotografia Giorgos Arvanitis e Laurent Dailland
Música Goran Bregovic
Produção Belfilms, Canal+, Centre National de la Cinématographie (CNC), Centre du Cinéma et de l’Audiovisuel de la Communauté Française de Belgique, Eurimages, Hungry Eye Lowland Pictures B.V., Noé Productions. DVD Imovision
Cor, 103 min
R, ***1/2