Suplício de uma Alma / Beyond a Reasonable Doubt

3.0 out of 5.0 stars

Suplício de uma Alma, no original Beyond a Reasonable Doubt, de 1956, foi o último filme que o veterano Fritz Lang fez nos Estados Unidos, para onde havia emigrado em 1934, fugindo, como diversos realizadores europeus, do nazismo.

É um filme feito em um estilo seco, direto, discreto. Tem uma trama inteligente, fascinante, surpreendente. Seu autor, Douglas Morrow, foi também o roteirista.

Começa com uma execução, em que o assassino é o Estado. Enquanto vão rolando os créditos iniciais, vemos um preso sendo levado para a cadeira elétrica. Entre as pessoas que assistem ao assassinato está o protagonista da história, interpretado por Dana Andrews.

Chama-se Tom Garrett. Veremos que foi jornalista, e pouco antes do começo da ação havia lançado seu primeiro romance, que teve bastante sucesso. Na primeira seqüência após essa da abertura, em que ele assiste à execução de um preso, Tom está num bar elegante com um senhor de meia idade, Austin Spencer (Sidney Blackmer, à esquerda na foto), que vem a ser o antigo patrão, o dono do jornal em que ele trabalhou.

Conversam sobre a pena de morte. O velho jornalista acha que ela seria um bom tema para o segundo livro do seu ex-empregado; foi por isso que havia sugerido a Tom que assistisse àquela execução.

Spencer é contrário à pena de morte, especialmente porque inocentes podem ser executados, bastando para isso que um promotor eloquente e manipulador convença os jurados da culpa do réu, mesmo que apenas sem provas, com base em circunstâncias. Spencer está certo de que aquela última execução pode ter sido um desses casos de injustiça fatal. Ele é um crítico firme do promotor da cidade (não se diz que cidade é – pode ser qualquer uma grande cidade), Thompson (Philip Bourneuf), um carreirista que pretende se candidatar ao governo do Estado.

É falar no diabo e ele aparece. Thompson entra com um auxiliar naquele mesmo bar. Elegante, vai até a mesa do dono de jornal que o critica nos editoriais para cumprimentá-lo. Spencer o apresenta a Tom. Conversam civilizadamente por algum tempo, até que o promotor pede desculpas e se retira para outra mesa.

Logo depois, chega ao bar Susan Spencer, a filha única do dono do jornal e namorada de Tom. Susan é interpretada por Joan Fontaine, então no auge da fama, depois de três indicações ao Oscar e uma vitória (por Suspeita, de Hitchcock, de 1941).

Os dois amigos plantam provas de que um deles foi o assassino

Spencer insiste em que Tom escreva um livro sobre a questão da pena de morte. Diz que é possível provar que um inocente pode ser condenado. Como nas grandes cidades sempre há um crime que a polícia não consegue desvendar, Tom poderia plantar evidências de que foi ele mesmo o assassino. Ele, Spencer, se encarregaria de documentar com fotos as plantações das evidências. Após a eventual prisão e condenação de Tom, seu jornal exibiria as provas de que tudo havia sido uma farsa.

Alguns dias depois, surge o que parece para Spencer uma boa oportunidade. Uma dançarina de um clube noturno, uma stripper, Patty Gray, aparece morta num terreno baldio não muito longe da cidade, estrangulada com uma meia de nylon.

Spencer manda um repórter de polícia checar como estão as investigações. A polícia ainda não tem um suspeito.

Ele e Tom passam, então, a plantar as provas de que tinha sido Tom o assassino. Deixam cair no local do crime um isqueiro de ouro com uma inscrição com o nome de Tom – presente que Susan havia dado a ele pouco antes. Compram um sobretudo cinza, igual ao que testemunhas haviam visto com um homem que havia saído da boate com Patty Gray no dia em que ela foi morta. Plantam várias evidências como estas – e Spencer faz fotos de tudo.

Não demora muito e Tom de fato é preso e acusado pelo assassinato.

O filme lança diversas pistas falsas para enganar o espectador

Até aqui, parecia que Fritz Lang se despedia do cinema americano com um filme denúncia contra a pena de morte. É, sim, uma denúncia contra a pena de morte – mas é mais do que isso.

Mas as coisas desandam, e nada sairá exatamente como o dono do jornal e seu ex-empregado haviam previsto.

 

 

 

 

 

 

 

Haverá reviravoltas. Reviravoltas absolutamente surpreendentes.

“O verdadeiro tema da derradeira realização de Fritz Lang na América não é a pena de morte, mas algo mais universal: a verdade que se esconde atrás das aparências”, escreveu o estudioso carioca A. C. Gomes de Mattos no seu fascinante livro O Outro Lado da Noite: Filme Noir (editora Rocco). “O filme de tese torna-se uma variação Pirandelliana sobre a inocência e a culpabilidade. Em alguns segundos, todas as idéias que o espectador tinha a respeito das situações expostas na trama são dissipadas.”

A. C. Gomes de Mattos aponta, certeiramente, que o filme espalha pistas falsas para o espectador. De fato, o roteirista Douglas Morrow e o diretor Lang jogam cascas de banana para o espectador pisar. Eu, por exemplo, quase pisei numa delas, numa seqüência criada para nos fazer suspeitar de Austin Spencer, o velho jornalista.

No meio das pistas falsas, das cascas de banana, o roteiro joga também pistas certeiras. É muito interessante o personagem interpretado por Arthur Franz, Bob Hale, o assistente do promotor Thompson. Hale havia tido um caso com Susan, antes que ela conhecesse Tom. Susan havia terminado o namoro, mas Hale continuava apaixonado por ela.

A importância de Hale na trama vai aumentando à medida em que a narrativa avança.

Pequeninos detalhes mostram a grandeza do realizador

Dois pequeninos detalhes chamaram especialmente minha atenção no filme. São de fato coisinhas mínimas, mas que, na minha opinião, são amostras da grandeza do realizador que é Fritz Lang.

Um deles acontece numa sequência que envolve exatamente Bob Hale, o assistente do promotor apaixonado pela noiva do réu. Hale é enviado pelo chefe a Miami, à procura de ligações entre o acusado, Tom, e a vítima, Patty Gray. Lá ele entrevista o dono de uma boate, uma espelunca, onde Patty Gray havia trabalhado anos atrás. Faz um calor insuportável em Miami, um calor viscoso, parecido com este que tem feito ultimamente em São Paulo. O dono da boate sua, Bob Hale sua. Há um ventilador ligado bem perto deles. O dono da boate pega uma grande barra de gelo e a coloca diante do ventilador, enquanto responde às perguntas do homem de gravata que veio do Norte, de um lugar onde não faz aquele calor infernal.

O outro pequenino detalhe acontece no meio de um belo movimento da câmara na prisão em que Tom está. É um travelling – a câmara vai se deslocando da esquerda para a direita, mostrando as várias celas. E então ela passa – suavemente, como não quer nada – pelo espaço entre duas das celas, em que dois presos estão no chão, jogando damas. Cada jogador faz seu lance, e então empurra o tabuleiro para mais perto do adversário na outra cela.

A câmara prossegue seu movimento, até chegar à cela de Tom, o protagonista da história.

Provavelmente aquele pequeno detalhe dos dois presos mal sentados no chão, jogando uma partida de dama, nem será observado por muitos dos espectadores. Mas é uma forma forte – embora ao mesmo tempo suave – de mostrar a humilhação, a miséria, o horror que é estar encarcerado, enjaulado, como uma fera de circo.

Um filme diabolicamente surpreendente

O livro The RKO Story diz que Beyond a Reasonable Doubt, o ultimo filme de Fritz Lang nos Estados Unidos, era repleto de ambiguidades e ironias que sempre fascinaram o diretor. No entanto – diz o livro –, o roteiro de Douglas Marrow era muito forçado e rebuscado para satisfazer aos críticos ou as platéias.

Exatamente o mesmo adjetivo – far-fetched, rebuscado – é usado por Leonard Maltin, que deu 2.5 estrelas em 4 para o filme. “Rebuscada história de um homem que finge ser culpado de um crime para fazer uma crítica ao sistema judiciário (…). Produção de valores pálidos. Idéia intrigante não se segura.”

Cada cabeça, uma sentença. Acho que a idéia intrigante se segura, sim.

Assim, me faz bem ver que o Guide des Films de Jean Tulard, que nem sempre dá cotações para os filmes, para este aqui dá 4 estrelas, coisa raríssima no gigantesco guia de 3.600 páginas em 3 volumes. Na sinopse, o Guide revela o final, o que eu acho absurdo, e sentencia: “Um suspense diabólico para esse último filme americano de Lang”.

Na França, o filme se chamou L’Invraisemblable Vérité, a verdade inverossímil. Belo título. Em Portugal, chamou-se A Verdade e o Medo. Só os exibidores brasileiros para inventarem uma bobagem como Suplício de uma Alma.

Naturalmente, o título original, Beyond a Reasonable Doubt, além de uma dúvida razoável, refere-se ao princípio jurídico: um júri só deve condenar um réu quando não há dúvida razoável de que ele é mesmo culpado.

Em 2009, Peter Hyams refilmaria a história de Douglas Marrow, num roteiro que o próprio diretor escreveu e que mudou bastante a história original. O título original da refilmagem foi o mesmo do filme de Fritz Lang, Beyond a Reasonable Doubt, mas no Brasil ele se chamou Acima de Qualquer Suspeita, o que provoca uma confusão danada com o Acima de Qualquer Suspeita/Presumed Innocent, de Alan J. Pakula, de 1990, baseado na obra de Scott Turow.

Achei este Beyond a Reasonable Doubt de Fritz Lang um belo filme. Surpreendente, fascinante. Para usar a expressão do Guide de Jean Tulard, um filme diabolicamente surpreendente.

Anotação em outubro de 2012

Suplício de uma Alma/Beyond a Reasonable Doubt

De Fritz Lang, EUA, 1956.

Com Dana Andrews (Tom Garrett), Joan Fontaine (Susan Spencer), Sidney Blackmer (Austin Spencer), Philip Bourneuf (Thompson), Shepperd Strudwick (Wilson), Arthur Franz (Bob Hale), Edward Binns (tenente Kennedy), Robin Raymond (Terry), Barbara Nichols (Sally)

Argumento e roteiro Douglas Morrow

Fotografia William Snyder

Música Herschel Burke Gilbert

Montagem Gene Fowler Jr.

Produção Bert E. Friedlob, RKO. DVD Versátil.

P&B, 80 min

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Título na França: L’invraisemblable vérité. Em Portugal: A Verdade e o Medo.

 

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