Santa Paciência, no original The Infidel, é uma comédia escrachada sobre um dos temas mais delicados, mais polêmicos que há no planeta: o ódio entre árabes e judeus. E é uma absoluta maravilha.
Todo mundo que gosta de cinema deveria ver. Parece ser pouco conhecido, mas esteve em cartaz no Telecine Cult e foi lançado em DVD no Brasil pela Imagem Filmes.
Parece propaganda, merchandising – e, depois que escrevi o parágrafo acima, me dei conta de que nunca tinha feito propaganda de um filme desse jeito aqui. Mas o filme merece.
É uma produção independente do cinema inglês, lançada em 2010, o segundo longa-metragem de Josh Appignanesi, um londrino nascido em 1975 que estudou antropologia no King’s College de Cambridge. Não tem atores conhecidos do público brasileiro – com a única exceção da bela Archie Panjabi, de Yasmin – Uma Mulher, Duas Vidas e O Jardineiro Fiel, e que interpreta a fascinante investigadora Kalinda Sharma da série The Good Wife.
O ator principal é Omid Djalili, um inglês de ascendência iraniana que, vejo no IMDb, é conhecidíssimo em seu país: tem vasta experiência (e prêmios e casa cheia) em comédias stand-up, é ator de programas da BBC e sua filmografia tem mais de 50 títulos.
É um extraordinário comediante.
Mahmud, o protagonista, não é muito religioso, não lê árabe – sente-se inglês, e não muçulmano
Logo no início de Santa Paciência há um close-up do rosto de Omid Djalili. O homem é feioso, careca, gorducho – às vezes ele faz lembrar outro grande ator inglês, Bob Hoskins.
Omid Djalili é Mahmud Nasir, e Mahmud Nasir está vendo TV na sala de sua casa, uma boa casa em Londres. Está vendo um noticiário sobre a iminente visita ao Reino Unido de Arshad El-Masri (Yigal Naor), um paquistanês tido por muitos como um líder muçulmano extremista, radical, anti-Ocidente.
Mahmud solta uma praga e muda de canal. Delicia-se quando aparece na tela um clip de um cantor pop (uma figura fictícia, criação do roteirista do filme, David Baddiel) que teve alguma fama nos anos 80, um tal Gary Page (James Floyd). Gary Page faz um pop dançante, e Mahmud ginga na poltrona ao som de seu ídolo.
Mahmud fala um inglês cockney, da classe trabalhadora, mas tem conforto na vida; é um pequeno empresário, dono de uma pequena cooperativa de táxis. Rapidamente veremos que Mahmud se sente muito mais um inglês como qualquer outro do que propriamente paquistanês e muçulmano. Foi criado por pais paquistaneses e muçulmanos, sim, já deu umas olhadas no Corão, mas não é um religioso praticante. Muito ao contrário. Vai pouco à mesquita, não faz orações diariamente. Não sabe ler árabe.
Na verdade, Mahmud está c…, perdão, pouco se lixando para a religião e as tradições árabes. Sua mulher Saamiya, jovem e bela (o papel de Archie Panjabi), e seu filho mais velho, Rashid (Amit Shah) um garoto aí de uns 18 anos, são bem mais apegados às tradições muçulmanas do que ele.
Rashid quer ter uma conversa séria com o pai sobre sua namorada Uzma (Soraya Radford). O diálogo é hilariante. Mahmud é daquele tipo que fala três palavrões em cada frase. O ocidentalizado pai se antecipa ao que o filho muçulmano vai dizer e diz que entende: que, antes de se casar, ele quer é comer um monte de outras mulheres. Sério, severo, o filho diz que não é nada disso; ele quer, sim, se casar já com Uzma – e aí é que está a questão. A mãe de Uzma, viúva há três anos, está para se casar com…
Rashid teme um pouco – ou bastante – a reação do pai.
A mãe de Uzma está para se casar com… Arshad El-Masri! Ele mesmo, o extremista, o radical.
Para que a mãe e o novo padrasto de Uzma dêem consentimento ao casamento – explica Rashid –, é preciso que Mahmud se mostre, hã, er.. mais muçulmano.
Rashid pede ao pai que tenha calma. A resposta:
– “Me dê uma razão para que eu fique calmo ao convidar Arshad Al-fucking Stalin para ser da minha família!”
Arshad Al-fucking Stalin! Que maravilha!
Depois de algum tempo, o pai promete que fará a vontade do filho.
Mahmud mexe nos documentos dos pais – e faz uma descoberta desconcertante
Os dois estão chegando à casa que era dos pais de Mahmud. Seu pai já havia morrido faz tempo, e agora ele perdeu a mãe. Estão indo lá recolher alguns pertences que serão levados para a casa de Mahmud, antes de desocupar o imóvel.
Ao mexer nos documentos da família, Mahmud descobre que não era filho biológico de seus pais. Eles haviam adotado Mahmud quando este era bebê.
Atônito, perplexo, Mahmud irá a uma agência governamental para se certificar de que foi mesmo adotado e para tentar saber o nome de seus pais biológicos.
A sequência acontece quando o filme ainda não chegou aos 20 minutos, e então não é spoiler dizer que Mahmud fica sabendo que seus pais biológicos são judeus.
O nome original de Mahmud Nasir era Solly Shimshillewitz.
A trama que virá a seguir é deliciosa, inteligente, fantástica.
Fazer comédia sobre tema muito sério é difícil. Caminha-se sobre o fio da navalha
Que beleza de sacada do autor e roteirista David Baddiel!
Um árabe, um muçulmano – embora bastante ocidentalizado – descobre que é árabe, muçulmano, apenas por criação, e, geneticamente falando, é judeu!
Que maravilha de idéia!
Fazer comédia – e comédia escrachada, escancarada, sem pejo, abertamente desavergonhada – sobre tema muito sério é algo extremamente difícil. Caminha-se sobre o fio da navalha. Os perigos são muitos, e avassaladores. Eu, particularmente, não gosto, por exemplo, do aclamadíssimo, oscarizado A Vida é Bela, de Roberto Begnini – até porque acho Begnini um chato de galocha.
Mas este é só um exemplo.
A dificuldade de tratar tragédias como algo engraçado é real. Mel Brooks conseguiu escapar ileso com seu Os Produtores – mas são raros os casos em que alguém consegue se dar bem nessa empreitada dura.
Pois esse roteirista David Baddiel e o garoto Josh Appignanesi conseguiram fazer um filme extraordinário, excepcional. É engraçadíssimo, hilariante. Não é ofensivo nem a judeus nem a muçulmanos. Claro: os ortodoxos, os fundamentalistas, os radicais dos dois lados certamente vão se enfurecer com o filme. Mas os ortodoxos, os fundamentalistas, este são enfurecidos por natureza, são enfurecidos com tudo e todos, com a vida.
Mas, noves fora os radicais, Santa Paciência não ofende ninguém – a não ser o preconceito, o racismo, o radicalismo, a intolerância.
E, além de ser engraçadíssimo, hilariante, o filme põe a nu, expõe, disseca exatamente a imbecilidade, o ridículo, o grotesco que é tudo isso, o preconceito, o racismo, o radicalismo, a intolerância.
É uma maravilhosa, salutar, bem-vinda ode à convivência entre as pessoas das diferentes crenças, heranças culturais.
Nisto, The Infidel se alinha a uma cepa bem-aventurada de belos filmes, como, por exemplo, Ó Jerusalém, O Visitante, A Banda, London River.
É uma delícia ver a diversidade cultural das pessoas envolvidas na produção do filme. O diretor Josh Appignanesi, inglês de Londres, como já foi dito, pelo sobrenome é certamente descendente de imigrantes. O autor do argumento e do roteiro David Baddiel é americano do Estado de Nova York. Omid Djalili, esse fantástico ator que eu não conhecia, tem ascendência iraniana, como já se disse. A maravilhosa Archie Panjabi nasceu na Inglaterra de pais indianos, passou parte da infância na Índia e trabalha no cinema e na TV de Inglaterra e Estados Unidos.
Frank Capra aplaudiria Santa Paciência. Gente de boa fé, gente que tem esperança, dos dois lados, certamente vai aplaudir. Dá até para achar que a canção de Steve Earle cantada por Joan Baez pode não ser um sonho assim tão impossível: “I believe that one fine day all the children of Abraham will lay down their swords forever in Jerusalem.” “Acredito que um belo dia todos os filhos de Abraão vão deitar suas espadas para sempre em Jerusalém”.
Pode até ser. Quem sabe? Se eles não se extinguirem uns aos outros antes, quem sabe?
Anotação em outubro de 2012
Santa Paciência/The Infidel
De Josh Appignanesi, Inglaterra, 2010
Com Omid Djalili (Mahmud Nasir),
e Archie Panjabi (Saamiya Nasir), Amit Shah (Rashid Nasir), Leah Fatania (Nabi Nasir), Richard Schiff (Lenny Goldberg), Yigal Naor (Arshad El-Masri), Soraya Radford (Uzma), James Floyd (Gary Page)
Argumento e roteiro David Baddiel
Fotografia Natasha Braier
Música Erran Baron Cohen
Produção Slingshot Productions, Ombadsman, The Salt Company International. DVD Imagem Filmes.
Cor, 105 min
***1/2
Título nos EUA: The Reluctant Infidel.