Anotação em 2011: A seqüência demora a chegar, mas, quando finalmente chega, já passada a metade do filme, é longa, belíssima, fabulosa, espetacular, em todas as acepções dos termos: o Titanic vai ressurgindo na superfície do mar!
As imagens são de ótima qualidade. E a sequência é longa.
Claro, não tem todos aqueles requintes, aquela reconstituição perfeita, primorosa, que o mago James Cameron exibiu ao mundo 17 anos mais tarde, após anos de preparação, ao custo de US$ 200 milhões, no filme que se tornaria a maior bilheteria de todos os tempos (até ser derrotado, 12 anos depois, por outro filme do próprio Cameron, Avatar).
Mas é uma sequência extasiante, capaz de mexer com as emoções de qualquer ser humano fascinado pela lenda do Titanic – e, de resto, será que existe alguém que já tenha ouvido falar no Titanic e não seja fascinado por ele?
A sequência em que o Titanic volta à tona, ressurge do fundo do mar após décadas de repouso cerca de 3.600 metros abaixo da superfície, no Atlântico Norte, é a melhor coisa deste O Resgate do Titanic/Raise the Titanic, produção inglesa de 1980, dirigida por um tal Jerry Jameson, nome obscuro.
Mas só por ela o filme já vale.
Raise the Titanic foi um imenso fiasco de público e crítica, embora se baseasse num livro – do mesmo nome, escrito pelo americano Clive Cussler, lançado em 1976 – que foi best-seller durante 36 semanas nos Estados Unidos.
Li o livro na época, em 1980, e acho que até me diverti. Me lembrava de pouca coisa, ao ver pela primeira vez o filme agora, 21 anos depois. Encontrei o DVD na locadora como lançamento recente, feito pela ClassicLine, uma empresa especializada em vender DVDs de filmes que, por algum motivo ou outro, não têm detentores de direitos autorais. Não me lembro se ele teve lançamento comercial nos cinemas aqui, mas, no passado, chegou a ser lançado no Brasil em VHS pela Top Tape. Nunca tinha tido a oportunidade de ver; peguei agora por pura curiosidade, pelo fascínio do Titanic, porque em 2012 a tragédia completa um século, e também porque, confesso, usei o lançamento do filme nos Estados Unidos como gancho, como pretexto, para publicar no Jornal da Tarde em 1980 uma imensa reportagem recontando a epopéia do Titanic.
Mas isso é outra história.
Uma trama completamente implausível
A verdade dos fatos, pura e simples, é a seguinte: a trama do livro, e portanto do filme, é uma imensa, gigantesca bobagem. É uma trama completamente implausível, absolutamente destituída de qualquer coisa próxima ao bom senso. A sensação que se tem é assim: o tal escritor, Clive Cussler, teve a idéia de explorar o imenso potencial de marketing do nome Titanic. Bem, vamos fazer uma história em que o governo americano vai topar o desafio de a) achar a exata localização do Titanic e b) fazê-lo voltar à tona. Mas por que diabos o governo americano precisaria içar o Titanic? Aí, partindo do ponto quase final, ele bolou a trama – uma trama mais inverossímil do que o valor de uma nota de três guaranis.
(Se bem que, inverossímil por inverossímil, todos os 432 filmes de James Bond são da mesma categoria.)
É mais ou menos assim: num futuro próximo, nos anos 1980 (o livro, lembro, é de 1976), um cientista, Gene Seagram (David Selby), passou anos criando um complexo sistema defensivo que tornaria os Estados Unidos e seus aliados imunes a qualquer ataque de mísseis soviéticos. Para que o sistema funcionasse, seria necessária uma fonte de energia poderosíssima, encontrada num minério raro, mil vezes mais potente que o urânio, o plutônio, um tal de bizânio.
(Sim, o livro criou, inventou, um novo mineral. Ficção científica é para isso mesmo, uai – liberdade total. O nome certamente foi inspirado em Bizâncio, bizantino.)
Junto da superfície do planeta, havia apenas uma jazida de bizâncio, perdão, bizânio, numa ilha remota no Ártico, perto do Pólo Norte, que, no início daquele século (o passado, o XX), pertencia ao Império Russo. Um agente americano foi enviado à tal ilha remota, agora (nos anos 1980), e descobriu que o bizânio havia sido retirado de uma mina por americanos, ali por volta de 1910, e, depois de muitas aventuras, que incluíram perseguições pelo exército russo, tiroteios, e tal, havia sido levado para a Escócia e de lá para o porto inglês de Southampton, onde, em 1912, foi colocado num dos muitos compartimentos de carga de um novo, luxuoso, extraordinário navio que, em abril, partiria em sua viagem inaugural para Nova York.
Portanto, no momento em que se passa ação, os anos 1980, o sistema defensivo que tornaria obsoleta a guerra fria, que acabaria com o perigo de uma guerra nuclear, dependia de se encontrar o bizânio… nos compartimentos de carga do Titanic!
Primeiro é preciso localizar o navio. Não será fácil. Até então, não se sabia a exata localização do Titanic – sabia-se que era numa área a cerca de tantas milhas a Leste da Terra Nova, mas a área a ser varrida pelos pequenos submarinos de exploração de grandes profundidades era vasta, imensa.
E, ah, sim, claro: a trama inclui também os russos. Os serviços de espionagem da União Soviética acompanham de perto a movimentação da Marinha americana, e, quando finalmente o Titanic ressurge na superfície, magnífico, impávido, colosso, os russos, à época soviéticos, aparecem para cobrar o bizânio: afinal, o mineral havia sido retirado de uma ilha então pertencente ao czar, e portanto agora pertencente a todos os heróicos e felizes trabalhadores da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Com alguns dos mesmos elementos deste filme, James Cameron faria o seu Titanic
Não sei se ficou claro. Se não tiver ficado muito claro, a culpa seguramente é em parte minha, que não soube descrever direito a trama. Mas parte da culpa, posso jurar, é de Clive Cussler, o sujeito que bolou essa história maluca, sem pé nem cabeça.
Pois é: maluca, sem pé nem cabeça. No entanto, a trama do livro e do filme inclui: a) o Titanic; b) um triângulo amoroso; c) um sobrevivente do Titanic ainda vivo, já bem velhinho – uma participação especial do grande Alec Guinness; d) equipes que partem em navios para a região onde o Titanic afundou e usam helicópteros e pequenos submarinos que descem até 3.600 metros de profundidade.
O triângulo amoroso, aqui, é formado pelo tal cientista inventor do sistema de defesa, Gene Seagram, uma repórter de um grande jornal de Washington, interpretada por Anne Archer, e o grande herói da narrativa, o capitão Dirk Pitt (Richard Jordan), um misto de oficial da marinha americana com pirata, aventureiro, super-herói, o homem escolhido pelo governo para comandar as buscas ao Titanic e, depois, pela engenhosa (e doidíssima) tecnologia para fazer o transatlântico voltar à superfície.
James Cameron usaria esses mesmos quatro elementos citados acima para criar sua história e seu filme, que arrebataria platéias do mundo inteiro, no maior sucesso do cinema até então.
Claro: às vezes, com os mesmos elementos, se produz ora um grande abacaxi e ora um gigantesco blockbuster. Coisas da vida.
Depois do sucesso do livro Raise the Titanic, Clive Cussler teria uma carreira firme como escritor de romances de aventura. Seus livros chegaram nada menos que 17 vezes à lista dos mais vendidos do New York Times. E ele desenvolveria, paralelamente, uma carreira como arqueólogo marinho. Foi o fundador e presidente da National Underwater and Marine Agency, que descobriu mais de 60 pontos de navios naufragados!
“Trama tola, diálogos risíveis”
Um exemplo do fracasso comercial do filme: ele sequer consta do Box Office Mojo, o cuidadoso e respeitado site que acompanha a renda dos filmes e traz a classificação das maiores (e menores) bilheterias de todos os tempos – o ranking que hoje abre com Avatar e tem Titanic como vice-campeão.
Um exemplo do fracasso do filme na crítica: Leonard Maltin deu 1.5 estrelas no total de 4, e foi impiedoso: “Longa, chata adaptação do best-seller de Clive Cussler sobre a intriga que leva ao maior trabalho de resgate de todos os tempos. A trama tola e os diálogos risíveis minam a excitação do clímax do levantamento do navio.”
Roger Ebert deu 2.5 estrelas em 4. Sempre mais prolixo do que Maltin (às vezes quase tão prolixo quanto eu), Ebert abre sua crítica assim:
“Raise the Titanic é quase um bom filme. Tem alguns momentos maravilhosos, mas eles são estragados por duas subtramas idiotas. Por que será que eles sempre destroem grandes idéias intrometendo nos filmes aqueles dois infalíveis becos sem saída, A Garota e Os Russos?”
Grande Ebert. O texto dele tem vida, tem graça.
“Raise the Titanic é melhor quando trata do assunto principal. O filme consegue recriar um pouco da aura de romance do próprio Titanic. Começa com velhas fotografias do grande navio, e com uma rápida prévia dele em seu túmulo submarino. (…) O momento em que o Titanic surge na superfície da água é realmente muito emocionante. (…) Algumas resenhas criticaram os efeitos especiais, mas eu penso que eles são bastante bons. (…)
“Então eu gostei da parte que envolve o navio. Na gostei foi da compulsão do filme de espalhar todo tipo de ‘interesse humano’, como se levantar o Titanic não fosse o suficiente.”
Ebert gosta dos filmes que vê. Não tem a má vontade de muita gente, que parece detestar previamente todos os filmes, e detestar o fato de ter que ver filmes e escrever sobre eles. (Às vezes eu mesmo dou umas reclamadas sem sentido.)
E ele gosta de uma boa história contada de maneira direta, sem frescura. De preferência, na ordem cronológica. Me lembro que, no meio do endeusamento planetário pelo Titanic de Cameron, Ebert fez um comentário parecido com o que fez sobre este Raise the Titanic. Tipo assim: mas tinham que inventar uma história de amor, uma sobrevivente do naufrágio, levá-la de helicóptero até a região em que o navio afundou, e aí fazer um flashback? Mas se a história do navio em si e as histórias das milhares de pessoas que existiram de fato e estavam lá já eram fantásticas, incríveis, para que inventar esses adereços todos?
O que encanta no Titanic de Cameron é o Romeu e Julieta
Aí Roger Ebert exagerou um pouco. A história real do Titanic é fascinante, tudo o que diz respeito ao Titanic é fascinante. Faz 99 anos que o Titanic fascina a humanidade. Mas, para multidões de adolescentes, o grande fascínio do filme de James Cameron é a história de amor entre o jovem belo pobre e a jovem bela de família de alta linhagem prometida a um milionário, nada menos que Romeu e Julieta em meio a uma das maiores tragédias reais da história da humanidade.
Desde 1997 adolescentes se emocionam com o Romeu e a Julieta do Titanic de James Cameron – e não param nunca de se emocionar. Sobra até pra mim. É absolutamente louco como o Google conduz adolescentes sonhadoras (e até sonhadores) ao texto imenso que escrevi em 1980, na época em que Raise the Titanic foi lançado, e que parecia condenado a ficar submerso para sempre em duas páginas amareladas na coleção do Jornal da Tarde do belo arquivo do sexto andar do prédio do Estadão junto da Marginal. (E aí não consigo deixar de lembrar quantas vezes a gente brincou que aquele prédio parece o Titanic afundando junto do Tietê – brincadeira de mau gosto.)
Quando levantei o texto que estava submerso na coleção amarelada do JT, quando o resgatei e botei na internet, não podia ter idéia de quanta gente iria lê-lo. Coisa de louco – não o meu texto, mas a fascinação que o Titanic exerce sobre gerações após gerações.
Enfim: não concordo muito com a frase do Roger Ebert – não acho que Raise the Titanic seja quase um bom filme. Acho que é um filme fraco, porque conta uma trama louca, ensandecida, inverossível, implausível, boba. Mas a seqüência em que o Titanic ressurge é uma maravilha.
Essa seqüência, a bela trilha sonora de John Barry e mais os poucos minutos em que Alec Guinness está em cena fazem o filme valer a pena.
O Resgate do Titanic/Raise the Titanic
De Jerry Jameson, Inglaterra, 1980
Com Jason Robards (almirante James Sandecker), Richard Jordan (Dirk Pitt), David Selby (Dr. Gene Seagram), Anne Archer (Dana Archibald), Alec Guinness (John Bigalow), Bo Brundin (capitão Prevlov), M. Emmet Walsh (Vinnie Walker)
Roteiro Adam Kennedy
Adaptação Eric Hughes
Baseado no romance Raise the Titanic, de Clive Cussler
Fotografia Matthew F. Leonetti
Música John Barry
Produção ITC Entertainment. DVD ClassicLine.
Cor, 115 min
**
A história é simplismente ESPETACULAR, e o difícil de acreditar é que a história seja real !!! Mas apesar da história ser linda, a trajedia é simplismente HORRÍVEL
A meu ver, tragédia mesmo é assassinar a língua portuguesa escrevendo tragédia com J e simplesmente com I, coitada da pobre língua portuguesa já tão maltratada