Anotação em 2011: O diretor Elia Suleiman parece ter usado seu ódio, sua indignação diante da situação de seu povo, os palestinos, como combustível para fazer este O Que Resta do Tempo.
A sensação que se tem é de que ele respondeu ao absurdo, à total falta de lógica da realidade – um povo sem pátria, sem o reconhecimento de seu Estado, cercado por um poderosíssimo Estado de grande força bélica, em eterna luta – com um filme que igualmente carece de lógica. Reagiu ao absurdo com um filme propositadamente absurdo. O Que Resta do Tempo é tão nonsense, tão surrealista, quanto deve ser a vida na Palestina.
Há na história do filme muitas coisas autobiográficas: Fuad (Saleh Bakri, ao centro na foto abaixo), um dos personagens centrais, é o pai do diretor. O personagem mostrado ao longo das várias épocas em que a ação se passa – 1948, 1970, 1980 e agora – é o próprio Suleiman, e o diretor e roteirista faz o papel de si mesmo já maduro, nos dias de hoje.
No site oficial do filme, Suleiman explica: “O Que Resta do Tempo é um filme autobiográfico, em quatro episódios, sobre uma família, minha família, desde 1948 até a época recente. O filme é inspirado nos diários pessoais de meu pai, começando quando ele era um lutador da resistência, e nas cartas de minha mãe a membros da família que foram forçados a deixar seu lugar. Combinado com minhas memórias íntimas deles, o filme tenta fazer um retrato da vida cotidiana dos palestinos que ficaram e foram denominados de ‘árabes-israelenses’, vivendo como minoria em sua terra natal.
Um filme desconcertante, estranho – e fascinante
A forma que Suleiman escolheu para contar sua história é desconcertante, estranha, e ao mesmo tempo fascinante. Não há propriamente uma seqüência lógica – é a falta de lógica, de sentido, afinal, que ele quer mostrar, denunciar. Mais que uma história, o que o filme apresenta são como que uma seqüência de episódios, quase como se fossem esquetes, pequenos quadros soltos, independentes.
O tom é de farsa, de alegoria. É um tom de humor negro, mas um humor negro demais, uma coisa extremamente dolorosa, asfixiante, perturbadora.
Começa nos dias de hoje: um homem, Menashe (Menashe Noy), põe uma mala no bagageiro de seu carro, senta-se ao volante e dirige. Mal vemos o passageiro sentado no banco de trás – só quem prestar muita atenção, ou revir a sequência, conseguirá identificar que o passageiro é o próprio Elia Suleiman. Enquanto dirige, o motorista fala pelo rádio com um colega, e depois fala quase sem parar – para o passageiro, que não diz nada, mas na verdade fala sozinho, para si mesmo. Começa a chover forte, a chuva vai apertando cada vez mais, o motorista amaldiçoa a chuva – e de repente tudo em volta do carro desaparece, como se o carro tivesse sido abduzido por um OVNI, tivesse sido transportado para uma outra realidade, para o além.
Não é à toa que o filme tem um subtítulo apavorante: “Crônica de um presente ausente”. Não há presente para os palestinos. O presente está ausente.
Corta aí, e estamos em Nazaré, em 1948. O filme diz a data precisa: 16 de julho de 1948. Nazaré, onde Cristo nasceu – e onde nasceu também, Suleiman, em 1960. O exército de Israel está tomando a cidade; há alguma resistência, palestinos armados lutam contra os soldados, mas a vitória destes vem rápida.
Um grupo armado anda pelas ruas. Uma mulher se dirige a eles, grita de uma forma lancinante – um dos homens, sem parar de caminhar, atira nela, a mulher cai morta no chão.
Não faz sentido – e não é para fazer sentido mesmo. É para mostrar uma situação que não tem lógica.
Uma seqüência se repete uma, duas vezes. É o nonsense da realidade
Lembrando: as Nações Unidas aprovaram em novembro de 1947 a criação de um Estado judeu na Palestina. Houve uma guerra civil entre o recém-criado Estado de Israel e árabes; Israel declarou sua independência em maio de 1948, e invadiu territórios árabes a partir daí. De lá até hoje, Israel tem enfrentado uma série de guerras com os vizinhos árabes, e em diversas ocasiões ocupado territórios, inclusive nas duas áreas reservadas aos palestinos, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia. Nazaré fica ao norte da Cisjordânia, em território israelense; os árabes são ali minoria.
Assim como a cena do homem que atira na mulher que fala e grita, diversas sequências do mais puro nonsense se seguirão na narrativa.
Patrulhas do exército, da polícia, estão sempre invadindo as casas dos palestinos, fazendo buscas por armas. Exigem-se documentos a toda hora; Fuad a todo momento é questionado por essas patrulhas.
Depois de abandonar uma tentativa de resistência, Fuad desenvolve o hábito de ir pescar com um amigo, à noite. Chega um jipe israelense, um holofote é aceso sobre os dois pescadores, eles são interrogados – o que estão fazendo? Por que estão pescando ali?
Daí a alguns minutos, repete-se a situação, e a sequência é praticamente a repetição da mostrada anteriormente. Passam-se alguns minutos, repete-se novamente a situação – como um disco quebrado. Como uma gagueira. É a mais absoluta falta de lógica, o nonsense – exatamente como a realidade da vida daquelas pessoas sem pátria, sem presente, cujo presente é ausente.
Elia Suleiman é autor de dez títulos, que incluem curta-metragens e documentários. Já ganhou 11 prêmios e teve seis outras indicações. O Que Resta do Tempo, feito com capital da França, Bélgica e Itália, participou da mostra competitiva do Festival de Cannes. Foi o terceiro longa-metragem do diretor a abordar a relação entre palestinos e israelenses, após Chronicle of a Disappearence, de 1996, e Intervenção Divina.
Não é um filme fácil de se ver – muito ao contrário. É uma experiência dura, pesada – uma amostra de como deve ser a vida dos árabes e palestinos ali.
É um filme agressivamente violento, ao retratar aquela realidade violenta. E tudo é feito com um talento impressionante. Um imenso talento, e uma revolta tão imensa quanto.
O que Resta do Tempo/Le Temps qu’il Reste
De Elia Suleiman, França-Bélgica-Itália, 2009
Com Elia Suleiman (ES), Saleh Bakri (Fuad), Avi Kleinberger (official do governo), Ehab Assal (homem com cellular, tanque), Amer Hlehel (Anis), Nati Ravitz (comandante do IDF), Menashe Noy (motorista de táxi), George Khleifi (o prefeito), Lotuf Neusser (Abu Elias), Ali Suliman (o namorado de Eliza)
Fotografia Marc-André Batigne
Montagem Véronique Lange
Produção The Film, Nazira Films, France 3 Cinéma, Artemis Films. DVD Imovision
Cor, 109 min
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Baixar o Filme – O Que Resta do Tempo – http://bit.ly/rMJHRe