Anotação em 2011: Um belo filme, este drama familiar do diretor Claude Miller. A direção de arte é um show, com reconstituição cuidadosa, meticulosa, de diversas épocas. A trama – inspirada em pessoas e fatos reais – é fascinante, e o ótimo elenco brilha; Cécile De France tem uma das melhores oportunidades de sua carreira até agora, e está excepcional.
Miller e sua co-roteirista Nathalie Carter escolheram contar a história misturando os vários períodos em que a ação se passa. Tem sido uma opção de muitos roteiristas; é uma tendência. Nos primeiros 20 minutos de filme eles talvez tenham exagerado um pouco nas idas e vindas no tempo, mas a verdade é que funciona bem a narrativa da forma como preferiram contá-la.
As primeiras seqüências se passam no verão de 1955. Um garoto franzino, muito pálido, tímido, está sendo conduzido por sua mãe em um grande clube. Chama-se, veremos em seguida, François (aos sete anos, é interpretado por Valentin Vigourt, um ator mirim de grande expressividade). A mãe é Tania – o papel de Cécile De France –, uma mulher forte, vigorosa, desportista, grande nadadora. O pai, Maxime (Patrick Bruel), também tem porte atlético, é forte, saudável, se dá bem nos exercícios físicos, nos esportes.
Veremos rapidamente que Maxime tem imenso desgosto por seu filho ser, ao contrário dele e de sua mulher, um menino de compleição fraquinha, inteiramente avesso aos exercícios físicos. Como muitos garotos solitários e tímidos, François inventa um amigo inexistente, um irmão que só ele vê. E seu irmão imaginário é o oposto dele: é um atleta, um super-homenzinho. Maxime, o pai, se irrita tremendamente com a fantasia do garoto. Tania, a mãe, tenta proteger o filho.
Logo se misturam a essa narrativa fatos de 30 anos mais tarde, de 1985. Ao contrário do que se poderia esperar de um garoto tão tímido, um tanto rejeitado pelo pai, aos 37 anos François (agora interpretado por Mathieu Amalric) é um homem aparentemente sem grandes traumas, sem grandes problemas; é um terapeuta, cuida de crianças problemáticas – como ele havia sido –, e aparentemente é um bom e bem sucedido profissional.
A mãe pede a ajuda de François: Maxime acabou de perder o cachorro que adorava, e, desconsolado, chocado com a perda, sumiu de casa. Nessas seqüências que mostram Tania já idosa, a garota Cécile de França foi bem maquiada, mas Claude Miller e seu diretor de fotografia Gérard de Battista evitam que a câmara a focalize em close-up.
1955, François com sete anos, garoto franzino, tímido; 1985, François com 37 anos, homem feito e saudável. Parece muito simples, e então teremos sequências em 1962, François adolescente interpretado por um terceiro ator (Quentin Dubuis). Foi nessa época, adolescente, que François ficou sabendo da história de sua família. A história não é contada a ele nem pela mãe nem pelo pai, e sim pela tia e grande amiga, Louise (o papel de Julie Depardieu).
O espectador verá então, a partir aí de uns 30 minutos de filme, entremeados na narrativa, além de fatos de 1955, 1962 e 1985, acontecimentos a partir bem lá de trás, de 1936, no pré-guerra, bem antes de François nascer.
Não teria qualquer sentido, é claro, revelar neste comentário o que vem a partir daí, os fatos do passado da família que François demorou pelo menos 14 anos para ficar sabendo, e que Claude Miller só começa a revelar após meia hora de filme.
Mas acho que dá para dizer que o que até aí parecia apenas um drama familiar, a história de François, de sua relação com seu pai e sua mãe, toma uma dimensão maior, de uma tragédia muito mais ampla, porque vai falar da chegada da Segunda Guerra e seus efeitos sobre as famílias de Maxime, o pai, e Tania, a mãe – todos judeus.
O filme se baseia em um livro autobiográfico
Se for atento, o espectador perceberá que o sobrenome do autor do livro em que se baseia o filme, Grimbert, é o mesmo de François. Philippe Grimbert, o autor do livro, nasceu em 1948, exatamente como François, seu personagem obviamente autobiográfico.
Diz a Wikipédia francesa que, depois de fazer o curso de Psicologia, Philippe Grimbert passou vários anos fazendo análise com um lacaniano, antes de abrir seu próprio consultório em Paris. Trabalha lá, e também em duas instituições em outras cidades francesas, com adolescentes autistas ou psicóticas. Deve ser um bom terapeuta, como o filme mostra que François é, porque, se conseguiu superar os problemas deixados por aquela infância de rejeição do pai, e depois os advindos com os segredos da família que passou a conhecer na adolescência, tem fibra e experiência para ajudar os outros a superarem os seus traumas.
Volto à Wikipédia: apaixonado por música, dança e informática, Philippe Grimbert publicou dois ensaios, Psychanalyse de la chanson e Pas de fumée sans Freud. Escreveu ainda três romances, La Fille de l’être (1998), La Petite Robe de Paul (2001) et Un Secret (2004).
Há dezenas de filmes americanos sobre experiências de superação, mas recentemente o cinema francês tem também abordado histórias de pessoas que conseguem vencer dificuldades extremas. Três bons filmes franceses bem recentes também retratam histórias de jovens criados em ambientes de muita pobreza, material ou moral, ou as duas juntas, que escapariam da marginalidade graças a seu talento e amor à arte.
É assim com a protagonista de Stella, de 2008, beleza de filme da diretora Sylvie Verheyde – e a diretora deixa claro que a personagem Stella tem muito dela própria. Chimo (Mohammed Khouas), o jovem árabe de Lila Diz…, de Ziad Doueri, de 2004, também tem praticamente tudo para se transformar num deliquente, num marginal; é salvo pela capacidade de escrever sobre suas próprias experiências.
E Entre os Muros da Prisão/Les Hauts Murs, de Christian Faure, de 2008, mostra os horrores a que um jovem é submetido em um orfanato que é na verdade uma prisão, um campo de concentração; é uma história real. Aquele jovem, que tinha tudo para virar um bandido, transformou-se num escritor de sucesso, com o pseudônimo de Auguste Le Breton.
O François de Un Secret não passa por privações materiais – mas sua história de vida é duríssima, trágica. E na vida real, assim como no filme, o garoto tímido, fechado, rejeitado pelo pai, conseguiu vencer as grandes dificuldades.
Uma jovem atriz encantadora
Cécile De France me encanta desde a primeira vez que a vi, creio que em Albergue Espanhol, de 2002; nascida na Bélgica em 1975 – o mesmo ano de minha filha Fernanda, e também de Angelina Jolie, Drew Barrymore, Marion Cotillard, Kate Winslet e Rodrigo Santoro –, estava então com 27, mas parecia ter no máximo 20.
Não parou de me surpreender em todos os filmes que viriam depois, o delicioso Um Lugar na Platéia, o denso e político Meu Coronel, o na minha opinião superestimado Quando Estou Amando, o duro, triste, violento policial Guardiões da Ordem. Teria a sorte de ser escolhida para o principal papel feminino do espetacular Além da Vida, de Clint Eastwood.
Cécile De France não é daquelas atrizes de rosto belíssimo; é graciosa, charmosíssima, sem ser um estupor de linda. Sempre me deu a impressão de ser uma moça magra, mignon. Fiquei absolutamente surpreso ao vê-la no papel de Tania, uma desportista, atlética, nadadora impecável. Aparece neste filme com as costas largas, ombros fortes, coxas grossas, belíssimas – um mulherão, essa garota que sempre me parecia mignonzinha.
Dá um show de interpretação. Seus olhares expressam os mais diversos sentimentos – aliás, este é um filme que, com belo elenco, expressa as emoções nos olhares trocados entre as pessoas, mais do que pelo que elas dizem.
Onze indicações ao César, apenas um prêmio
Un Secret teve nada menos de 11 indicações para o César, o prêmio oficial do cinema francês, o equivalente deles ao Oscar: atriz para Cécile De France, atriz coadjuvante para Julie Depardieu, atriz coadjuvante para Ludivine Sagnier (sua aparência está completamente diferente da de diversos de seus filmes anteriores), filme, direção, roteiro adaptado, fotografia, figurinos, montagem, trilha sonora original, direção de arte.
O único César que o filme acabou levando foi o de atriz coadjuvante para Julie Depardieu. Ela está ótima como a tia querida de François, a pessoa mais firme, centrada, da família, mas sua interpretação me parece tão boa quanto a de Cécile De France – não melhor.
Paciência. Como dizia o Vandré, a vida não se resume a festivais.
Um detalhe: o IMDB registra que o título brasileiro do filme foi Um Segredo de Família. Deve portanto ter sido lançado assim nos cinemas – não me lembro dele na época do lançamento. Está sendo apresentado na TV a cabo com o título literal de Um Segredo, sem o acréscimo de “de família”. O título para o mercado americano também seguiu à risca o original – A Secret.
Outro detalhinho: para os créditos finais, Claude Miller escolheu uma velha gravação de Charles Trenet – a bela canção “Tout ça c’est pour nous”. É uma canção triste e bela – exatamente como o filme.
Um Segredo/Um Segredo de Família/Un Secret
De Claude Miller, França-Alemanha, 2007
Com Cécile De France (Tania Stirn / Grimbert), Patrick Bruel (Maxime Nathan Grinberg / Grimbert), Ludivine Sagnier (Hannah Golda Stirn / Grinberg), Julie Depardieu (Louise), Mathieu Amalric (François Grimbert aos 37 anos), Nathalie Boutefeu (Esther), Yves Verhoeven (Guillaume), Orlando Nicoletti (Simon Grinberg aos 7 anos), Valentin Vigourt (François Grimbert aos 7 anos), Quentin Dubuis (François Grimbert aos 14 anos)
Roteiro Claude Miller e Nathalie Carter
Baseado no livro de Philippe Grimbert
Fotografia Gérard de Battista
Música Zbigniew Preisner
Produção Canal+, France 3 Cinéma, Soficinéma 2, Soficinéma 3, UGC YM.
Cor e P&B, 105 min
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