Procurando Elly / Darbareye Elly

4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Procurando Elly, do iraniano Asghar Farhadi, é uma obra-prima, um filme excepcional, extraordinário. Merece todos os superlativos que possa haver.

É um absoluto show de competência, talento, inteligência. É dessas obras maduras, em que não há falha alguma, tudo é perfeito.

Não me lembrava de ter ouvido falar deste filme, embora ele tenha sido premiado com o Urso de Prata em Berlim; a informação está na capa do DVD. Peguei na locadora para experimentar – se não se experimenta coisa desconhecida, fica-se estagnado. Mas, ao colocar o filme para ver, fiz a velha combinação com Mary: se for ruim ou chato demais, paramos e vemos outra coisa.

Com dez minutos de filme eu estava babando de admiração, surpresa, alegria diante de uma obra bem feitíssima. É uma das grandes alegrias da vida ver um filme sobre o qual não se sabe nada e que surpreende pela qualidade.

E ele vai melhorando cada vez mais. É daquele tipo de filme que tem a capacidade de envolver o espectador, carregar o espectador para dentro dele; a gente vai ficando cada vez mais aflito, angustiado com o desenrolar da história.

Tem um pegada forte, envolvente, que só grandes cineastas conseguem criar. Lembrei de Polanski, de A Faca na Água, O Bebê de Rosemary, O Inquilino – obras-primas que carregam o espectador para o mundo dos personagens e o deixam com profunda angústia, como se estivesse participando da trama.

A trama começa simples: quatro homens e quatro mulheres entre 30 e 40 anos, com três crianças, viajam em três carros para passar um fim de semana perto do mar. Veremos mais tarde que são de Teerã, e a capital iraniana não fica muito longe do Mar Cáspio.

Seis iranianos de classe média, pessoas comuns, num fim de semana na praia

São três casais, mais uma moça solteira, a Elly do título (Taraneh Alidoosti), e um homem  divorciado, Ahmad (Shahab Hosseini). Ahmad vive na Alemanha, está passando uma temporada no país natal, reencontrou-se com o grupo de amigos, resolveram fazer a viagem.

São, todos eles, de classe média. Pessoas comuns, normais. Não se fala em data, em que ano se passa a ação, mas é nos dias de hoje; o filme é de 2009, e portanto aquelas pessoas comuns, normais, vivem sob a brutal ditadura teocrática dos aiatolás, mas não há referência alguma a aiatolás, a ditadura, Ahmedinejad, nada. São oito pessoas que vivem suas vidas – as mulheres usam véu para cobrir os cabelos, como é obrigatório, mas usam às vezes calças compridas, riem, brincam. Ninguém reza, ninguém faz orações ajoelhado, curvando a testa até o chão. Não se fala explicitamente, mas todos estudaram, provavelmente têm curso superior. Se não fosse pelos véus das mulheres, não haveria indicação alguma de vivem numa sociedade fechada, rígida, em que a religião paira sobre tudo e todos.

Na maioria dos grupos de amigos, acontece de haver uma pessoa mais decidida, mais prática, que toma boa parte das iniciativas. Naquele grupo, essa pessoa é Sepideh (Golshifteh Farahani, uma atriz de beleza fulgurante). Foi Sepideh (na foto acima, ela e Elly) que telefonou para reservar uma casa perto do mar, foi Sepideh quem convidou Elly para ir junto com os três casais e mais o disponível Ahmad – Elly é professora da filhinha de Sepideh e Amir (Mani Haghighi).

Ao chegar ao local, no entanto, o grupo é informado por uma senhora que administra algumas casas ali de que, inesperadamente, o dono da casa onde iria passar as duas noites estaria ali no dia seguinte. Eles poderiam ocupar a casa, mas só por uma noite, e teriam que desocupá-la cedo no dia seguinte. Aí surge uma primeira mentira, uma pequena mentirinha inocente: para conseguir um lugar para ficar as duas noites, para contar com a simpatia da administradora, contam para ela que um dos casais – Ahmad e Elly – está em lua-de-mel, e precisa de um quarto só para ele.

“Um final de casamento amargo é melhor que uma amargura sem fim”

A administradora tem disponível, sim, uma casa bem ampla, que poderia abrigar a todos; fica bem junto do mar; só está bastante suja, e com alguns vidros das janelas quebrados.

O grupo vai até lá, fica em dúvida – a casa de fato é muito grande, mas está bem mal tratada. Conversam, põem em votação – topam ficar na casa.

Há muitas brincadeirinhas sobre a possibilidade de os dois solteiros iniciarem um namoro. Coisa mais absolutamente normal – embora um tanto embaraçosa, dada a insistência com que o assunto vem à tona.

O grupo força a barra para que, numa necessária ida de alguém até um mercado para comprar comida, Ahmad vá com Elly. Os dois vão – Elly quer aproveitar para ligar para a mãe de seu celular, e na casa o telefone não tem sinal. Durante o passeio, Ahmad conta a Elly que é divorciado; ela pergunta por que, e ele conta que um belo dia sua mulher alemã disse para ele a seguinte frase:

– “Um final amargo é melhor que uma amargura sem fim.”

Ahmad fala a frase em alemão, usando as mesmas palavras que ouviu da ex-mulher, e depois traduz para o farsi. Uau, meu, que frase. – “Um final amargo é melhor que uma amargura sem fim.”

Nessa primeira noite – não se fala em data, mas o que dá para imaginar é que seja a noite de sexta para sábado –, os oito adultos e as três crianças, todos juntos, brincam daquele joguinho de mímica, em que uma pessoa escolhe uma frase ou título de obra conhecida, faz mímica, e o grupo tem que adivinhar a frase.

Uma tranqüila reunião de amigos num fim de semana na praia.

Quando chegamos à manhã do segundo dia, à manhã do sábado, estamos aí com uns 20, talvez 30 minutos de um filme de 119. Lá pelo meio do dia, ocorrerá uma tragédia.

         No momento crucial, a câmara de mão

O título original do filme é, na transcrição para nosso alfabeto, Darbareye Elly. Naturalmente, não sei o que isso significa. Mas, em inglês, o título é About Elly, e na França foi exibido como À Propos d’Elly – sobre Elly, a respeito de Elly. Os exibidores brasileiros escolheram Procurando Elly, e com isso revelam que, em algum momento, Elly some, desaparece. Por que, raios, não chamaram o filme de Sobre Elly?

No momento em que a tragédia ocorre, o diretor Asghar Farhadi usa câmara de mão. Durante uns dois, talvez quatro minutos, vemos aquelas pessoas correndo de um lado para outro, nervosas, agitadas – e as imagens são feitas em câmara de mão, uma câmara tensa, nervosa, agitada. A forma vem junto com o conteúdo, a câmara realça o que está sendo mostrado naquele momento, o nervosismo, a perplexidade, o apavoramento daquelas pessoas.

Essa é uma das muitas manifestações de maturidade do diretor Asghar Farhadi, e ela me encantou. Há filmes de diretores jovens, ou até mais veteranos, que buscam fazer coisas “diferentes”, e abusam de câmara de mão, por exemplo. Ou entortam a câmara – como se as pessoas olhassem para o mundo com a cabeça torta. Ridículo. As coisas deveriam ser usadas nos momentos certos, quando há uma justificativa para isso. Como neste filme.

Asghar Farhadi sabe fazer cinema como gente grande. Consegue atuações excelentes, excepcionais, desse grupo grande de atores. Seus movimentos de câmara são precisos, belos, justos. A marcação dos personagens em cena, seus deslocamentos entre os aposentos da casa, na praia, é feita com um talento, uma maturidade de babar.

         A tensão vai crescendo, vai ficando insuportável

Mas, fora a competência com que trata os aspectos formais de seu filme, impressionam a riqueza do roteiro, a forma como Farhadi, ele próprio autor do roteiro e co-autor do argumento, ao lado de Azad Jafarian, soube criar personagens críveis, verossímeis, verdadeiros.

A partir do momento em que a tragédia ocorre, aquelas pessoas vão começar a procurar culpas, a responsabilizar um ou outro pelos problemas. A tensão entre eles vai crescendo, vai ficando cada vez mais insuportável.

Já havia sido contada uma pequena mentirinha à mulher que administra as casas – a lorota de que Ahmad e Elly eram recém-casados. De forma quase natural, não estudada, não arquitetada, começam a surgir aqui e ali pequenas mentiras – e a situação vai ficando cada vez mais tensa, mais grave.

É brilhante a forma como aquelas pessoas vão construindo uma teia, um emaranhado de mentiras em que vão se atolar como se caíssem num pântano, na areia movediça, no inferno.

Como pano de fundo de tudo, está, é claro, a forma com que aquela sociedade se estrutura, a rigidez das normais sociais, que, é claro, têm a ver com a rigidez da religião. Em pleno século XXI, aquelas pessoas de classe média, com condições materiais confortáveis, estudadas, usando aparatos da tecnologia moderna, estão aprisionadas por conceitos medievais em relação ao casamento – algo que deixa os hábitos sicilianos de se exibir o lençol da noite de núpcias manchado de sangue parecendo uma coisa avançada, progressista.

É uma maravilha de filme.

         Que façam muitos filmes

Procurando Elly já obteve 11 prêmios e seis outras indicações. No Festival de Berlim, um dos três mais importantes do mundo, ao lado de Cannes e Veneza, o diretor Asghar Farhadi foi premiado com o Urso de Prata.

Foi o quarto filme do diretor, que estreou em 2003, com Dançando na Poeira, também um filme sobre relações familiares.

O regime dos aiatolás escolheu o filme como o representante iraniano na corrida pelo Oscar de melhor filme estrangeiro, mas ele não ficou entre os cinco indicados.

A atriz Golshifteh Farahani, que faz o principal papel feminino, o de Sepideh, uma jovem de beleza estarrecedora, nascida em Teerã, em 1983, já havia feito diversos filmes em seu país natal, mas aparentemente este foi o último. Depois de Procurando Elly, ela teve um papel em Rede de Mentiras/Body of Lies, de Ridley Scott – ela faz a jovem por quem o personagem interpretado por Leonardo DiCaprio se apaixona. Estava, em agosto de 2010, com três filmes em pré-produção no Ocidente.

Que faça muitos filmes, essa iraniana abençoada com imensa beleza e imenso talento dramático. Que faça muitos, muitos filmes Asghar Farhadi, sujeito de talento descomunal.

Procurando Elly/Darbareye Elly

De Asghar Farhadi, Irã, 2009.

Com Golshifteh Farahani (Sepideh), Shahab Hosseini (Ahmad), Taraneh Alidoosti (Elly), Merila Zare’i (Shohreh), Mani Haghighi (Amir), Peyman Moadi (Peyman), Ra’na Azadivar (Naazi), Ahmad Mehranfar (Manoochehr), Saber Abbar (Alireza)

Roteiro Asghar Farhadi

Argumentoi Asghar Farhadi e Azad Jafarian

Fotografia Hossein Djafarian

Música Andrea Bauer

Produção Dreamlab

Cor, 119 min

****

Título na França: À Propos d’Elly. Título em inglês: About Elly.

8 Comentários para “Procurando Elly / Darbareye Elly”

  1. Realmente, foi um tiro no pé (do espectador) colocarem esse nome no filme. Mas nossos exibidores são mestres nisso. Se não colocam spoiler no título, colocam no pôster principal.
    Daí que lá fiquei eu esperando a Elly sumir… Droga. Ainda assim cheguei a pensar que poderia ser alguma coisa com as crianças… Mar, mães E pais negligentes, criança sozinha na água.
    A atriz é muito bonita mesmo, aliás, as mulheres daqueles lados são quase sempre bonitas, todas com olhos grandes, até as menininhas. E é incrível como mesmo sendo bonita, ela vai ficando extenuada e “feia” ao longo do filme, por causa dos conflitos e problemas que vão surgindo. Tudo psicológico, mas que reflete no semblante e na aparência física dela. Ótima atriz mesmo.
    Beleza por beleza, não posso deixar de falar que o ator que faz o Amahd tb é lindo. Aliás, todos eles são bonitos, com exceção do que faz o marido da Sepideh.

    Uma coisa que achei interessante foi que eles falaram em honra. A Sepideh preocupada com a honra da Elly e os homens falando que mortos não têm honra. E os vivos têm? Fiquei me perguntando se na nossa sociedade alguém ainda liga pra isso. Parece que hoje nem os valores mínimos contam, muito menos a tal da honra. Se é que ela ainda existe. Acho que existe só pra quem tem, mas ninguém nem sabe pq não a reconhecem mais.

    Vc falou em “rigidez das normas sociais”, mas pra mim, todo o desenrolar tb tem muito a ver com o machismo fortemente arraigado naquela sociedade. Até as mulheres passaram a ficar contra a Sepideh, como se a culpa fosse dela. Os maridos acusavam as mulheres de descuidar das crianças. Mas, e eles, que estavam tranquilamente jogando vôlei? Por que não foram olhar os filhos, então?
    E achei engraçado depois de tantas mentiras, todo mundo querer falar a verdade, mas apenas pra livrar suas caras.

    Ao terminar de ver o filme me lembrei de uma fala da personagem Vera, de “Eclipse Total”:
    “It’s a depressingly masculine world, Dolores.”

  2. Eu trouxe a questão da honra para a nossa sociedade, mas para a deles acho que ainda existe sim, essa questão; apenas para as mulheres, claro. Só que aí a palavra já ganha uma conotação machista que tem a ver com “conceitos medievais em relação ao casamento”, como vc bem disse.

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