3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2010: Este novo filme do diretor inglês Sam Mendes, feito em 2009, após o excelente, violento e tristíssimo Foi Apenas um Sonho/Revolutionary Road, é um filme em tom menor. É sutil, delicado, suave – e sutil, delicada e suavemente otimista, esperançoso.
Não poderia haver duas obras mais antagônicas que o filme de Sam Mendes de 2008 e o filme de Sam Mendes de 2009 – e há que se respeitar um diretor que consegue isso.
Não é apenas o tom que é o oposto – no de 2008 duro, tenso, pessimista, desesperançado, sem saída, no de 2009 esperançoso, bem humorado, em alguns momentos até engraçado mesmo, embora com uma graça sutil, nada escrachada. Foi Apenas um Sonho é um filme de época: a ação se passa no final dos anos 50, início dos 60; Por uma Vida Melhor retrata uma realidade de hoje, final da primeira década do novo século e novo milênio. Foi Apenas um Sonho reúne dois grandes atores que são também gigantescas estrelas, Leonardo DiCaprio e Kate Winslet, os protagonistas do segundo filme de maior bilheteria de toda a História, Titanic; Por uma Vida Melhor tem como protagonistas dois bons atores, mas que são bem pouco conhecidos, pelo menos fora dos Estados Unidos, John Krasinski e Maya Rudolph.
Foi Apenas um Sonho retrata um casal que tem tudo para ser feliz e é miseravelmente infeliz; Por uma Vida Melhor retrata um casal que poderia ter muitos motivos para ser infeliz e é alegre, de bem com a vida.
Mas, sobretudo, mais do que retratar apenas um casal, Por uma Vida Melhor discute essa coisa absolutamente doida, maluca, que pode acontecer e acontece quase sempre na vida de um casal: ter filhos. Virar pai, virar mãe.
Ao longo dos 97 minutos do filme, fala-se muito, fala-se demais sobre filhos, paternidade, maternidade. Há todos os tipos de considerações a respeito desses temas fundamentais na vida de todos nós – frases bobocas, frases vazias, frases frívolas, frases estupidamente sérias. É um belo roteiro, este feito pelo casal de escritores Dave Eggers e Vendela Vida, que Sam Mendes, com sua extrema competência, soube transformar num bom filme.
Na abertura, uma cena de sexo com frescor, limpidez
O filme começa com uma cena de sexo bem sacada, bem pouco usual: um longo plano com a câmara parada ao lado da cama em que Burt faz sexo oral com Verona. Não, nada ofensivo, nada pornô. Sam Mendes consegue mesclar explicitude com um frescor, uma limpidez quase angelical: é um plano de conjunto, a câmara está a razoável distância da cama, e os dois estão cobertos por um lençol, e estão fazendo sexo e conversando. Burt, antes mesmo de Verona, descobre que ela está grávida.
Burt e Verona (interpretados por John Krasinski e Maya Rudolph, atores vindos da TV) são pessoas sensíveis – e de resto comuns, “normais” (se é que isso existe), medianos, nem geniais nem pobres de espírito. Ordinary people, como diziam Paul McCartney em suas canções e Robert Redford no título de seu primeiro filme como diretor. São típicos de seu tempo – nem à frente, nem atrás dele. Têm 30 e poucos anos e, como tanta gente hoje em dia nessa faixa etária, parecem mais ter 18, 20; ainda não se realizaram na vida, Burt tem até dúvidas sobre se não seriam fracassados. Ele trabalha como corretor, uma atividade que garante ao casal uma vida razoavelmente confortável mas pouca ou nenhuma grande satisfação.
Mas são duas pessoas sensíveis, e, embora a gravidez não tenha sido exatamente planejada, adoram a idéia de ter um filho. Querem desde já o que de melhor possa haver para a criança. E isso inclui a questão de se definir o lugar onde ela vai nascer, a cidade em que o casal vai se fixar, fazer seu lar.
Os pais de Verona estão mortos, e então a primeira idéia deles é que a criança nasça na cidade em que vivem os pais de Burt (interpretados por Jeff Daniels e Catherine O’Hara). Acontece que, no momento em que o jovem casal informa aos pais de Burt que vão ter um filho, são informados de que eles estão de mudança para a Europa.
Burt e Verona farão então diversas viagens a locais onde há parentes e/ou amigos dos dois, para escolher onde vão se fixar. A suave, sutil comédia se transforma então num road movie. A peregrinação do casal por diversas cidades americanos, com passagem até por Montreal, ocupa praticamente todo o filme – a peregrinação, a rigor, é o filme, como indica o título original, Away We Go, algo que poderia ser traduzido como lá vamos nós. (Aliás, o título do filme em Portugal, Um Lugar para Viver, me parece mais apropriado do que o escolhido pelos exibidores brasileiros.) Nas viagens, eles encontrarão tipos esquisitos, tipos desagradáveis, tipos interessantes, gente que se dá bem, gente que sofre – a maioria, pais ruins.
Uns querem demais e não têm, a maioria tem sem querer
O jovem casal vai se defrontar com uma realidade dura, uma situação inexplicável, sem lógica, sem razão, sem explicação, que é simplesmente o que existe mesmo na vida: como é possível que algumas pessoas desejem profundamente ter filhos e não consigam, enquanto tantas outras (milhares, milhões) têm filhos sem querer, sem planejar, sem estar preparadas para essa tarefa dificílima, complexa, que requer tanta responsabilidade?
Ou seja: este é um filme que vai fundo nesta questão que é uma das mais importantes que há na vida.
É um tema fundamental, mas não são muitos os bons filmes que a abordam. Recentemente, a diretora francesa Sylvie Verheyde tratou dele em Stella, outro belo filme. Ao anotar sobre ele, não consegui deixar de falar da minha velha tese, a de que, para ser pai e mãe, as pessoas deveriam passar por exigentíssimos concursos, vestibulares.
Diante deste Por uma Vida Melhor, me permito transcrever o que disse no meio do comentário sobre Stella:
Mais de 15 anos atrás, cheguei a escrever o início do que achava que deveria ser um artigo sério a ser desenvolvido um dia: “Os dogmas religiosos e a biologia que me perdoem, mas a lógica humana indica que Deus (ou a natureza, para quem não acredita em Deus) errou profundamente. Nenhum homem ou mulher deveria ter a capacidade de ser pai ou mãe – até prova em contrário. Ser pai ou mãe não deveria ser uma obrigação decorrente da biologia, deveria ser uma opção. Mais ainda: para permitir que alguém decidisse ser pai ou mãe deveria haver vestibular. Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente.”
Acho que Por uma Vida Melhor só confirma minha tese.
A riponga bicho-grilo new wave fala uma frase racista
Sam Mendes, que tinha grande experiência no teatro quando fez seu primeiro longa-metragem para o cinema, Beleza Americana, de 1999 (cinco Oscars, inclusive melhor filme, melhor direção e melhor roteiro original), já se firmou como um grande diretor de atores. Prova isso mais uma vez neste filme. Todas as interpretações são excelentes. John Krasinski e Maya Rudolph, que fazem o casal de protagonistas, são extraordinários. E estão maravilhosos também todos os atores que fazem os parentes e amigos dos personagens centrais; cada um deles aparece pouco, apenas em algumas seqüências, mas todos têm atuação impecável. Maggie Gyllenhaal dá um show como a mãe riponga, bicho-grilo, new age, absolutamente maluca – e que, apesar de todo o new-agismo, fala uma frase que revela racismo.
Ah, sim, é necessário falar da questão do preconceito. Verona é mulata, filha de casamento miscigenado, de branco com negra (ou vice-versa).
Não é uma questão muito importante, esta, a cor da pele de Verona. Quer dizer, essa questão não é realçada, na história; existe, mas é secundária. A intenção dos roteiristas e do diretor – me parece – é tratar disso de fato como uma questão menor; toda a postura do filme, e dos personagens, é pós-questão racial. É como, por exemplo, o fato de a filha do personagem de Jeff Goldblum em O Mundo Perdido – Jurassic Park, de Spielberg, ter a pele negra, ou o fato de ser negra a pele de Sidney, o noivo da branca judia Rachel, em O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme. Esses dois filmes mostram, como escrevi aqui alguns meses atrás, “uma realidade que felizmente já existe: embora em minoria, uma parte da humanidade já se livrou do racismo. Ou, dito de outra maneira: é possível, sim, ir em frente. Não estamos todos condenados a ser idiotas, imbecis, ao longo de toda a História.”
Em Por um Mundo Melhor, a questão de que alguns seres da raça humana têm uma cor de pele e outros têm outra não chega a ser inexistente. Ou seja: ao contrário dos dois filmes citados no parágrafo acima, não se dá de barato que afinal vivemos numa era em que cor da pele já deixou de ser uma questão, um problema. Mas indica que ela pode e deve deixar de ser problema.
A abordagem da questão cor de pele pelos roteiristas e do diretor é sutil como tudo o mais no filme. É assim: ainda há algumas pessoas que se preocupam com cor da pele, que ainda manifestam preconceito; são pessoas menores, que devem ser desprezadas.
Ou seja: é um filme que questiona a imensa responsabilidade que os pais têm, e que, sutilmente, faz um elogio à miscigeneção. Duas posições admiráveis, maravilhosas, que merecem todo o aplauso.
É um filme para se ver e rever.
Beleza de trilha sonora, boa escolha de canções incidentais
A anotação já está bem grande, e a frase acima seria um encerramento, mas é preciso ainda falar da trilha sonora. É uma maravilha. As músicas incidentais são extremamente bem escolhidas – que maravilha ouvir What is Life, do primeiro álbum solo de George Harrison, de 1970, Meet in the Morning, de Bob Dylan, ou uma versão de Oh, Sweet Nuthin’, de Lou Reed. Ou ouvir que a canção que Verona canta para fazer adormecer a sobrinha de Burt, abandonada pela mãe, é Mr. Tambourine Man, de Dylan, uma das letras mais elaboradas, sofisticadas e tristes da história da música.
Mas são igualmente belas as diversas canções originais criadas para o filme por Alexi Murdoch, um jovem cantor e compositor de quem jamais tinha ouvido falar, e que Sam Mendes descobriu. São canções folk, melancólicas, suaves, belíssimas. Beleza de trilha sonora.
Por uma Vida Melhor/Away We Go
De Sam Mendes, EUA, 2009
Com John Krasinski (Burt), Maya Rudolph (Verona), Jeff Daniels (Jerry), Maggie Gyllenhaal (LN), Allison Janney (Lily), Catherine O’Hara (Gloria), Carmen Ejogo (Grace), Jim Gaffigan (Lowell), Josh Hamilton (Roderick), Melanie Lynskey (Munch), Chris Messina (Tom)
Argumento e roteiro Dave Eggers e Vendela Vida
Fotografia Ellen Kuras
Música Alexi Murdoch
Produção Focus Features, Big Beach Productions, Edward Saxon Productions.
Cor, 97 min
***1/2
Título em Portugal: Um Lugar para Viver. Título na França: Away We Go
o filme que que mais me emocionou em toda minha vida ! ! ! naum canso de assisti-lo .
Gostei tanto desse filme… e olha que não sou fã desse diretor, os filmes dele são pra baixo.
Este tb tem um tom para baixo, mas tem alguns pontos risíveis, do tipo “seria cômico se não fosse trágico”.
Gostei tanto que assistia dando pause, parando pra pensar. Geralmente, quando fico pausando o filme é pq ele é ruim ou não me cativou, mas com esse aqui foi diferente, eu não queria que ele terminasse, pode? Lembro que quando assisti, fiquei com vontade de que o meu então namorado visse tb, mas acabou passando…
Concordo totalmente com o que vc escreveu sobre ter filhos; o filme retrata isso muito bem (quanta gente maluca, meu Deus!), e o pior é que esses tipos existem; eu mesma conheço muita gente que nunca deveria sequer ter cogitado a hipótese de ter filho, mas teve, e mais de um. Mas ser mãe e pai é uma opção, as pessoas é que não param pra pensar antes de colocar alguém no mundo.
Incrível como roteiristas e diretor souberam colocar tanta realidade, e ao mesmo tempo, tanta sensibilidade no filme.
O homem, que apesar de companheiro, e de talvez ter a mesma idade que a mulher, ainda age com infantilidade nas pequenas e grandes coisas; a visível ponderação e equilíbrio dela, mostrando maior maturidade(e se irritando por isso, algumas vezes).
Enfim, como vc disse, é um filme para se ver e rever.
Prezado Sergio Vaz
Realmente o filme é muito interessante, como, aliás, são os filmes dirigidos pelo Sam Mendes.
A trilha sonora também é belíssima.
Concordo também com sua tese: ter filhos deveria ser uma opção para pessoas capazes de bem criá-los. Infelizmente, ela tem sido observada por pouca gente.
E, como sempre, sua resenha é muito precisa e elegante.
Sds.
Luiz Cesar