Anotação em 2010: Não tinha visto ainda O Círculo, do iraniano Jafar Panahi, feito em 2000. Vi agora – antes tarde do que nunca. É uma obra de uma força imensa, descomunal. Na minha opinião, é um dos mais fortes panfletos feitos nas artes contra a opressão. Algo assim como Guernica, de Picasso.
O filme me trouxe à mente várias obras grandes, poderosas – um impacto que prova e comprova sua qualidade.
O Círculo não tem propriamente uma trama. Retrata acontecimentos ao longo de um único dia, momentos de um dia na vida de diversas mulheres no Irã de hoje. Primeiro focaliza uma mulher que está num hospital onde sua filha está dando à luz; depois a abandona e focaliza, uma após outra, três mulheres que – saberemos bem mais tarde – estão saindo da prisão; depois de passar pela terceira delas, acompanha uma outra, que também esteve presa, é recebida em casa como uma pária, e sai à procura de uma amiga, enfermeira, porque precisa fazer um aborto; vai em frente nessa Ronda à la Max Ophüls e pega então uma pobre mulher que tenta se desfazer da filha que não tem condições de criar; e em seguida acompanha alguns momentos de uma última mulher que está sendo levada presa, não se sabe exatamente por que – possivelmente acusada de prostituição.
Uma ronda, uma quadrilha, uma trágica dança de roda, um círculo, que volta ao começo numa tomada que mostra uma pequena janela de porta de cela que se fecha, assim como no início da ação uma janela da porta da sala de cirurgia do hospital se fecha diante da mãe que vê a filha dando à luz uma menina.
Nem seria preciso, mas Jafar Panahi realça ainda mais essa noção do círculo, da coisa viciada e apodrecida do princípio ao fim, com alguns momentos em que sua câmara – que ora fica bastante estática, ora caminha na mão atrás de suas tristes, trágicas personagens – faz movimentos de 360 graus em torno de si mesma.
“O sinal está fechado pra nós.” As portas estão todas fechadas para as mulheres naquela sociedade – é a primeira e mais óbvia leitura. As mulheres no Irã são seres inferiores, não têm vontade própria, são oprimidas por séculos e séculos de um machismo violentíssimo. Nada é permitido a elas, a não ser que algum macho – o pai, o marido – faça a gentileza de o consentir.
Um estilo forte – com uma câmara educada, longe da explicitude
A gente sabe que as sociedades são machistas, e sabe que, na frente desse nojento campeonato para ver quem é mais medieval, quem é mais neandertal, estão, sem dúvida, os países muçulmanos. (E, evidentmente, nada a ver com a religião em si; o problema nunca é a fé, e sim o que os homens fazem com ela.) Uma coisa, no entanto, é ter a noção intelectual, distante, de um fato – outra é ver a arte demonstrando isso, com imagens fortíssimas, violentíssimas, de uma tristeza profunda.
Jafar Panahi mata a cobra e mostra o pau.
E uma das coisas fantásticas neste filme maior é que o estilo do diretor Panahi, sua câmara, não são nunca explicitamente violentos. Ao contrário. Num mundo em que as câmaras se tornaram cada vez mais explícitas, seja para mostrar feridas, torturas, sexo, trasmutação de ser humano em vampiro, o que for, a câmara do iraniano Jafar Panahi é educada. Discreta. Desvia-se muitas vezes do pior. Por exemplo: Pari (Fereshteh Sadre Orafaiy, nas duas fotos abaixo), a mulher que saiu da prisão para ser expulsa da casa da família e sai à procura de alguém que a ajude a abortar, tem enjôos, como todas as grávidas. Em 99% dos filmes do atual cinemão americano ou europeu, a câmara explicita o jorro do vômito. A de Panahi, não; educadamente, discretamente, ela se desvia do óbvio.
Pouco antes, quando a jovem Nargess (Nargess Mamizadeh) tenta encontrar Pari, a câmara pára, estática, diante da porta do casebre; atrás da porta, Pari está sendo agredida, física e verbalmente, pelos homens da família. A câmara não precisa mostrar o óbvio.
Jafar Panahi sabe matar e cobra e mostrar o pau criando um clima enlouquecedoramente opressivo. Para criar um clima enlouquecedoramente opressivo, não é necessária a explicitude. A rigor (e esse conhecimento é antigo; estão aí os filmes do mestre Hitchcock para provar), a explicitude diminui, torna banal o que se quer mostrar e demonstrar; muito mais forte é o clima, se e quando o cineasta sabe criá-lo – e o iraniano Panahi sabe muitíssimo bem.
A ditadura total, plena, onipresentemente opressora
Poucas vezes vi um filme que conseguisse criar tão forte, tão violentamente o clima de opressão quanto este O Círculo.
E aí vem um pulo do gato. Porque o que filme mostra é, sim, a opressão da mulher – mas é também, e sobretudo, a opressão ampla, geral e irrestrita de um regime totalitário, uma ditadura insana, das mais cruéis de que a História tem notícia, sobre todos os seres humanos que habitam aquele lugar, que tiveram a cruel infelicidade de nascer e viver no Irã dos aiatolás. Uma ditadura que simplesmente mata quem vai às ruas protestar contra uma eleição obviamente fraudada como foi a de Ahmedinejad em 2009.
É o clima da ditadura total que os grandes autores das distopias do século XX quiseram criar – Aldous Huxley em O Admirável Mundo Novo, George Orwell em 1984, Ray Bradbury em Farenheit 451. As pessoas vigiadas em todos os seus pequenos movimentos, a falta total e absoluta de liberdade, os olhos do Grande Irmão permanentemente abertos e vigilantes sobre cada pequeno passo de cada pessoa. O estado policialesco em sua plenitude, em sua totalidade.
Viver em ditadura teocrática muçulmana é a coisa pior que pode existir
Com um talento assombroso, O Círculo consegue – com o mostrado e com o implicitado – criar e transmitir para o espectador o clima de opressão, o medo, o pavor que as pessoas têm de andar na rua, de entrar em um ônibus, de passar por um loja, quando acontece de viverem numa ditadura. Alemães e italianos nos anos 30, russos nos anos 20 a 80, brasileiros, chilenos, argentinos, uruguaios nos anos 70, cubanos e iranianos de hoje sabem bem o que é isso.
Me lembrei, ao ver o filme, de dois outros que retratam também com brilho esse clima pavoroso do dia-a-dia sob uma ditadura: Leste-Oeste, de Régis Wargnier, e O Círculo do Poder, de Andrei Konchalovsky, não à toa dois filmes feito nos anos 90 sobre o período stalinista, o primeiro na Ucrânia, o segundo na Rússia.
Me lembrei também da canção que abria o disco mais gritantemente panfletário de John Lennon, no auge de seu período revolucionário, contra todo tipo de establishment, Some Time in New York City; a música, libertária, feminista e anti-racista a não mais poder, tinha o título de um panfleto: “Woman is the nigger of the world”, a mulher é o negro do mundo – uma expressão de revolta contra a opressão tão forte quanto a frase de A Cor Púrpura, em que o macho prepotente tenta humilhar a pobre e indefesa Celie dizendo: “Você é preta, pobre, feia e mulher”. O que por sua vez remete à definição de um personagem do grande escritor James Baldwin (ou seria dele mesmo, Baldwin?) : “Sou o mais infeliz dos homens, porque sou americano, negro e gay”.
O pavor da mãe do início da ação – por saber que a família do marido da filha jamais vai aceitar o fato de que o bebê que está nascendo é mulher – me fez lembrar outra bela canção panfletária, que um dos muitos E.Ts. que habitam a cabeça de Bob Dylan gravou quando ele tinha ridículos 22 anos de idade, “Masters of War”. Na letra, o garoto se dirige aos Senhores da Guerra – os generais do Pentágono, os congressistas que fazem o lobby da indústria de armamento, os industriais propriamente ditos – e diz a eles: “Vocês nos deram o medo mais apavorante que pode haver – o medo de trazer filhos a este mundo”.
Um imenso talento numa estética “pobre”, apressada, sôfrega
O que a gente fica pensando, ao ver esta obra de arte propositadamente “impura”, “suja”, em que um extraordinário domínio de narrativa, de linguagem cinematográfica, vem envolto com um tom de pressa, de sofreguidão, de estética pobre (afinal, o cinema iraniano dos anos 90, início dos 2000, no breve período de afrouxamento da ditadura dos aitolás, antes da volta do radicalismo com Ahmedinejad, foi o mais puro herdeiro do neo-realismo italiano), é assim:
Nascer e viver sob o domínio do fanatismo islâmico é a pior coisa que pode acontecer a um ser humano. É muito pior que ser, ao mesmo tempo, “americano, negro e gay”; consegue ser até pior do que ser, ao mesmo tempo, “preta, pobre, feia e mulher”.
É assim: nascer mulher sob o domínio do fanatismo islâmico na insana ditadura dos aiatolás iranianos – melhor é não nascer.
Pelo menos enquanto o povo iraniano não conseguir o que Jafar Penahi defende (e o que o leva à prisão, de tempos em tempos): derrubar a opressão.
Porque a opressão pode ser vencida, sim. A África do Sul demonstrou. Os russos, os ucranianos, os georgianos e tantos outros demonstraram. Os próprios iranianos demonstraram isso, ao derrubar o xá – infelizmente, no entanto, para ver se instaurar em seguida uma ditadura ainda pior, exatamente como os cubanos que acharam estar livres da opressão quando caiu Fulgêncio Batista.
Louco, absolutamente louco é ver que neste fim de mundo que é a América Latrina estamos doidinhos para percorrer o caminho rumo à opressão.
O Círculo/Dayereh
De Jafar Panahi, Irã-Itália-Suíça, 2000
Com Nargess Mamizadeh (Nargess), Maryiam Palvin Almani (Arezou), Mojgan Faramarzi (prostituta), Elham Saboktakin (enfermeira), Monir Arab (mulher da bilheteria), Solmaz Panahi (Solmaz), Fereshteh Sadre Orafaiy (Pari), Fatemeh Naghavi (mãe)
Roteiro Kambuzia Partovi
Baseado em idéia de Jafar Panahi
Fotografia Bahram Badakshani
Produção Mikado Film, Jafar Panahi Film Productions
Cor, 90 min
***
Olá, moço dos mais de mil filmes.
Vejo poucos filmes. Revejo muitos dos que adoro e acabo não entrando em contato com novidades. Mas, porque o filme O Círculo estava numa prateleira de premiados, acabei por assisti-lo há uns dois anos. Gostei muito.
Então… a cada vez que lia no seu site uma expressão como: quem gosta de filme cabeça, iraniano… não vai gostar dessa comédia gostosa, etc, etc, eu me lembrava de O Círculo e achava que havia algo de errado com o meu (bom) gosto.
Acho que não estou entendendo alguma coisa. Terei sido claro?
Grande Jorge!
Minha resposta a você, minhas explicações sobre as brincadeiras que faço sobre o cinema iraniano, estão no post sobre o filme romeno “Como Eu Festejei o Fim do Mundo” (https://50anosdefilmes.com.br/2010/como-eu-festejei-o-fim-do-mundo-cum-mi-am-petrecut-sfarsitul-lumii/). Por favor, dê uma olhada lá…
Um abraço.
Sérgio
Alerta. No Brasil, há evangélicos obviramente fundamentalistas cristãos que fazem plágio dos Talbans, principalmente visando ‘enbrulhar mulheres’ em burcas cristãs. Exagero meu?