Flores do Amanhã / Xiang ri kui

3.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: Belo, sensível filme, feito com extrema competência em todos os quesitos. Um drama sério sobre paternidade, educação, dificuldade de comunicação entre as gerações, tendo como pano de pano as mudanças no Planeta China ao longo das últimas cinco décadas.

O narrador é o filho – Xiang Yang nasceu em 1967, conforme nos informa a voz dele em off, na abertura. A câmara do diretor Zhang Yang mostra em close a dor do parto da mãe, Xiu Qing (interpretada pela grande, bela estrela Joan Chen). Xiu Qing dá à luz em parto normal, dentro de casa.

Mais de duas horas de bom cinema depois (a versão do filme em DVD tem 133 minutos), veremos outro parto, no ano 2000, e portanto em hospital, com os cuidados da medicina moderna, tudo sendo filmado em câmara de mão pelo pai, como hoje em dia acontece. A narrativa do diretor Zhang Yang é daquelas que gostam voltar ao princípio, fechar o círculo, encerrar o ciclo. Coisa de gente grande, de quem sabe fazer.

Mas voltemos ao início.

Na abertura do filme, a voz em off de um Xiang Yang adulto nos conta então que ele nasceu em 1967. E que, quando era ainda bebê, engatinhando, os pais puseram diante dele diversos objetos, para ver qual o garotinho pegaria primeiro. E o bebê pega um pincel, para imensa satisfação do pai, Gengnian Zhang (Haiying Sun, excelente ator), ele próprio um pintor.

Num pequeno canteiro diante de sua casa, Zhang, o pai, havia plantado girassóis, nos conta a voz em off do filho adulto, enquanto a câmara mostra belos girassóis.

Não tenho a menor idéia do que significa o título original do filme, que, passando para o alfabeto ocidental, vira Xiang ri kui, mas deve ter a ver com girassóis. O título em inglês do filme é Sunflower, girassol – e os girassóis permeiam a história da família. Não dá muito para entender por que os distribuidores brasileiros acrescentaram o “amanhã” ao título, Flores do Amanhã, mas títulos brasileiros um tanto sem lógica são velha tradição.

         Um intróito em 1967, depois um longo segmento em 1976

Depois do rápido intróito, com o nascimento do garoto, em 1967, há um fade out, e temos um grande letreiro anunciando que estamos em 1976. O garoto Xiang Yang está agora com nove anos de idade, e é um moleque travesso: sobe no telhado das casas, e usa, com o maior amigo, o bodoque – epa, bodoque é o termo mineiro; perdão, o estilingue, para atingir as meninas do bairro. Atinge também um adulto que chega ali, bem na testa – danada de boa pontaria tem o moleque Xiang Yang, não erra uma.

O adulto que está chegando e acaba de ser atingido na testa é Zhang, o pai do garoto travesso. Zhang está naquele exato momento voltando de um campo de trabalho, onde ficou internado durante seis anos.

         Depois, novo segmento em 1987, outro em 1999

 O segmento do filme passado em 1976 é longo. Mostra a situação dura, duríssima, de um pai que esteve ausente praticamente durante toda a vida do filho, e tem que reassumir a chefia da casa, da educação do moleque. Xiang Yang não reconhece Zhang como seu pai; uma criança de nove anos dificilmente tem lembranças da época em que tinha três, e portanto o garoto a rigor não sabia o que era um pai, que seu pai era aquela pessoa que de repente entra em sua casa, faz sua mãe gemer na cama e dá um monte de ordens a ele.

 Zhang é um pai severo, rigoroso, até demais – e já parte de um gap, um buraco, uma lacuna gigantesca. O pai cai de pára-quedas na vida do garoto, exigindo dele uma disciplina férrea que ele jamais havia conhecido.

É um belo drama familiar, esse que a trama do filme desenha.

Haverá, depois, um pulo para o ano de 1987, Xiang Yang portanto com 20 anos, e depois outro salto para 1999, o filho então com 32, e um epílogo em 2000.

         Um belo retrato de décadas de difícil relação pai e filho

Haveria enciclopédias para se falar a respeito deste filme. Já seria uma obra fascinante apenas e tão somente pelo retrato que faz da relação de várias décadas entre pais e filho. O fato de que tudo se passa no Planeta China, feito por habitantes daquele estranho, obscuro, misterioso lugar, torna tudo mais absolutamente fascinante.

“Seus filhos não são seus filhos, são filhos da vida”, escreveu, num momento de especial genialidade, Gibran Khalil Gibran. A grande questão é que mais de 90% dos pais não percebem isso.

Ter filhos é uma loucura absoluta.

“Os bebês, na maioria, são coincidências”, diz um texto brilhante em Uma Prova de Amor/My Sister’s Keeper, de Nick Cassavetes. “Duas pessoas transam, ou coisa assim, e pronto. Coincidência. Claro, a gente ouve essas histórias sobre como todos planejam suas famílias perfeitas, mas a verdade é que a maioria dos bebês é produto de noites de bebedeira e falta de controle da natalidade. São acidentes. Só as pessoas que têm problemas para fazer bebês é que de fato planejam tê-los.”

Se ter filhos já é uma total loucura, saber como criar os filhos, como educá-los, é uma loucura mais arrematada ainda. Os putos não vêm com bula, com manual de instruções – e mesmo que os pais sejam esforçadíssimos, seriíssimos (embora só as pessoas que têm problema para fazer bebês é que de fato planejam tê-los, e portanto, são a princípio esforçadíssimos, seriíssimos), tudo que eles fizerem pode resultar num bobo, ou num deliqüente, em maior ou menor grau.

         Os pais de Xiang Yang amam o filho – mas não sabem como criá-lo

Zhang e Xiu Qing, os pais de Xiang Yang, se amam, e amam o filho único. Viúva de marido vivo, levado para campo de trabalho, Xiu Qing foi permissiva com o garotinho, que virou um moleque travesso demais, sem medida. Ao voltar para casa depois de seis anos ausente, caindo de pára-quedas na vida do garoto de nove anos, Zhang vai para o extremo oposto, a rigidez absoluta, marcial. Não dá certo.

Muita gente da minha geração – a de nós que nascemos entre a bomba de Hiroshima e o surgimento do rock’n’ll, os dez anos entre 1945 e 1955, a geração que achava que não só podia mas que de fato iria mudar o mundo – babou com o diálogo entre pai e filho que Cat Stevens compôs quando tinha 22 anos. O artista malucamente precoce fazia as duas vozes, a do pai, grave, séria, e a do filho, aguda, lancinante. O pai propunha calma, reflexão, antes que o filho se decidisse por qualquer coisa; o filho reagia agressivo, dizendo que o pai não sabia nada sobre o que ele, filho, pensava e vivia: “Desde o momento em que aprendi a falar me deram ordem para ouvir”.

(Credo: que verso absolutamente fantástico – “From the moment I could talk I was ordered to listen”. O cara tinha 22 anos, e tem gente na face da Terra que acha que Cat Stevens é de segunda categoria.)

Muitos pais, em 1970, o ano da canção “Father and Son”, eram tão absolutamente rígidos, donos da verdade absoluta, e pouco afeitos a qualquer tipo de diálogo, que, quando mostrei a tradução da letra para uma amiga mais jovem, ela fez um comentário que jamais esqueci: “Pô, se meu pai conversasse comigo desse jeito, eu não teria o que reclamar dele”.

         Os pais pecam por ausência, por permissividade ou por rigidez absoluta

Em 1987, diante do filho de 20 anos, Zhang era tão autoritário quanto o pai da minha então jovem amiga de 1970. Só a palavra dele importava, só a vontade dele deveria ser atendida.

A imensa maioria dos pais, acho eu, peca pela ausência, que é o pecado maior. Mais recentemente, depois de toda a revolução dos costumes a partir dos anos 60 e 70 no Ocidente, os que não pecam pela ausência passaram a pecar pela permissividade total.

Natural do Planeta China, Zhang pecou pelo oposto – pela rigidez absoluta.

         No meio da vida da família, a Revolução Cultural

O Planeta China. Ainda haveria muito o que dizer sobre as relações familiares mostradas neste belo filme. Mas é importante, é fundamental lembrar que a história se passa no Planeta China – essa coisa tão distante e misteriosa quanto Plutão, ou a sétima lua de um astro que gire em torno de alguma estrela da Ursa Maior.

Flores do Amanhã foi exibido no Ocidente. Teve versão em que os créditos aparecem tanto nos anagramas chineses quanto em inglês. Está aí disponível nas locadoras, e provavelmente também na internet para ser baixado.

O eventual espectador ocidental do filme talvez não se lembre, mas em 1966 – um ano antes do nascimento de Xiang Yang – iniciou-se no Planeta China a Revolução Cultural. A Revolução Cultural, que durou de 1966 a 1976, exatamente o ano do segundo período focalizado no filme, foi, a muito grosso modo, algo assim como o AI-5 da ditadura militar brasileira instaurada em 1964, o golpe dentro do golpe, a revolução dentro da revolução, a radicalização do radicalismo.

Algo mais ou menos assim: apesar de estarmos no poder há 20 anos, ainda restam entre nós alguns que não aderiram aos nossos ideais; são burgueses incorrigíveis, filocapitalistas, esdrúxulos, exógenos: cacemo-los, ó povo orgulhoso! – e lá foram as hordas de jovens da Guarda Vermelha caçar não-comunistas até embaixo do tapete. Como aliás havia sido feito nos Estados Unidos dos anos 50, na louca caçada aos comunistas ou filocomunistas ou whatever, comandada por Joseph McCarthy.

A caça ao “inimigo” – mesmo que ele não exista, mesmo que seja preciso inventá-lo. Velhíssima tática dos regimes de exceção, e até mesmo de períodos sombrios das democracias, como demonstra o macartismo, ou ainda o governo Bush filho, ou a Venezuela sob o tacão do bufão Chávez.

         Um filme da China de hoje que mostra barbaridades do regime

Zhang volta à sua casa em 1976 – o ano em que se encerrou a Revolução Cultural, o ano da morte de Mao Tsé-Tung – após seis anos no que é referido no filme como “campo de trabalho”. No campo de trabalho, Zhang apanhou muito; torturaram-no batendo nas suas mãos, as mãos de pintor, embora ele pedisse para que batessem em qualquer outro lugar, menos nas mãos. (No Estádio Nacional de Santiago do Chile, os sádicos loucos então a mando de Pinochet, muito parecidos com os sádicos loucos de qualquer regime de exceção, diga-se ele “de esquerda” ou “de direita”, cortaram as mãos de Victor Jara, antes de darem o tiro de misericórdia.)

Zhang volta para casa sem poder usar as mãos para criar sua arte.

Isso é dito com todas as letras no filme no Zhang Yang: que houve tortura – e casos e casos de extrema injustiça – no tempo da Revolução Cultural. Muitas outras faces do regime ditatorial chinês são expostas no filme – e é muito doido, é muito difícil para alguém que, como eu, ou, penso, a imensa maioria de nós que sabemos pouco sobre o Planeta China, entender como a censura da ditadura de partido único deixou que o filme fosse feito, e fosse distribuído pelo mundo, e chegasse ao Ocidente capitalista, decadente, doente.

         Não dá para saber por que permitiram o filme – mas ainda bem que permitiram

E aí vou tentar me informar um pouco. Até aqui, expressei minhas sensações, minhas opiniões. Vou tentar ver o que se diz a respeito do filme, na tentativa de entender por que a ditadura chinesa permitiu que esta bela obra – bela, mas que fala demais da realidade – chegasse ao Planeta Terra. (Na foto, Joan Chen, como Xiuqing, e Haiying Sun, como Zhang, já idosos.)

Não há informações sobre o diretor Zhang Yang nos meus muitos livros; ele não consta dos meus três dicionários de cineastas, nem está no livro Cinema Now, que fala de 60 cineastas em atividade nos anos 2000. O iMDB informa apenas que ele nasceu em 1967 – exatamente como o seu jovem personagem –, e é autor de seis filmes, que receberam 16 prêmios e cinco outras indicações.

Em sites diversos, vejo que Zhang Yang (na foto abaixo) formou-se em Literatura Chinesa em 1988, e depois estudou no Departamento de Direção na Academia Dramática Central de Pequim, onde se formou em 1992, e passou a trabalhar no Estúdio de Cinema de Pequim. Seu filme de 1999, Banhos, também uma história sobre vida em família, ganhou 17 prêmios mundos afora – no Planeta China e no Planeta Terra.

Essas informações do parágrafo acima indicam que não é um contestador, um rebelde, um dissidente. Muito ao contrário – é aprovado pelo Sistema, pelo Establishment.

O AllMovie traz uma sinopse bastante correta do filme – e mais nada. Leonard Maltin não o inclui entre os 18 mil filmes resenhados no seu Movie Guide de 2009.

Luciano Ramos fala sobre o filme em seu livro Os Melhores Filmes Novos (Editora Contexto, 2009). Conta que o filme foi premiado no Festival de San Sebastian, na Espanha, em 2005. “O jovem cineasta demonstra o pulso e a sensibilidade de um veterano, com um estilo neo-realista comparável ao de Ettore Scola.” Eu não chamaria o estilo de Scola de neo-realista, mas de fato há semelhança: como este filme aqui, Scola gosta de mostrar histórias que percorrem décadas e décadas, o panorama político e social da Itália como pano de fundo.

“Claramente inspirado no pai do diretor, o protagonista é um pintor que, nos anos 1970, teve as mãos quebradas por ter sido acusado de refratário ao partido. Voltando para casa após uma temporada na prisão, não consegue mais trabalhar, nem se relacionar satisfatoriamente com o filho. O roteiro mostra a evolução desse relacionamento até os dias de hoje. Isso permite admirar a impressionante habilidade dramática do ator Haiying Sun, que até este filme só tinha trabalhado na TV chinesa. Ao contrário da igualmente talentosa Joan Chen, que interpreta a sua esposa e que já fez 49 filmes. Desde 1987, com O Último Imperador, de Bertolucci, ela passou a filmar no Ocidente e ficou famosa com a série Twin Peaks, de David Lynch.”

A rigor, a rigor, o mais correto seria dizer que o protagonista não consegue mais trabalhar como pintor; trabalhar, ele trabalha. Mas me parecem muito boas todas as afirmações do crítico, professor e estudioso Luciano Ramos. De fato, o desempenho de Haying Sun como o pai, ao longo de várias décadas – com um trabalho de maquiagem excelente, que o faz envelhecer – é extraordinário.

O personagem do filho, Xiang Yang, é interpretado – e bem interpretado – por três diferentes atores, um para cada época focalizada, 1976, 1987 e 1999.

Continua para mim sendo misterioso o fato de a censura chinesa ter permitido que o filme fosse exibido. É verdade que o filme mostra, nos trechos passados nos anos mais recentes, como houve grande progresso material na China, e isso é obviamente do interesse dos dirigentes do Partido Comunista.

Mas antes assim, claro, óbvio. Maravilha que permitiram que a gente veja esta bela obra.

Flores do Amanhã/Xiang ri kui

De Zhang Yang, China, 2005.

Com Haiying Sun (Zhang Gengnian), Joan Chen (Zhang Xiuqing),  Zhang Fan (Zhang Xiangyang aos 9 anos), Ge Gao (Zhang Xiangyang aos 19 anos), Wang Haidi (Zhang Xiangyang aos 30 anos), Jing Liang (a mulher de Xiangyang), Bin Li (Xiao Ji Shi)

Argumento e roteiro Shangjun Cai, Xin Huo e Zhang Yang

Fotografia Jong Lin

Música Hai Lin

Produção China Film Group, Fortissimo Films

Cor, 133 min

***1/2

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