Carícias / Carícies


0.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2010: O cultuado diretor catalão Ventura Pons conseguiu fazer um filme cheio de talento – e ao mesmo tempo insuportavelmente chato, desagradável, repulsivo, nojento, asqueroso.

Carícias é a transposição para o cinema de uma peça de 1991 de Sergi Belbel, catalão como Ventura Pons. O filme tem uma estrutura como La Ronde – é formado por 11 seqüências, ou episódios, ou esquetes; em cada uma delas há um diálogo entre duas pessoas; uma das pessoas da primeira seqüência se encontra, na segunda seqüência, com uma terceira pessoa; na quarta seqüência, essa terceira pessoa encontra um quarto personagem, e por aí vai, até que, na última seqüência, o círculo se completa quando reaparece o personagem que só havia aparecido na primeira. 

Bela estrutura, certo? Certo, certo. Max Ophüls fez isso. Outros grandes nomes fizeram. A questão é que os catalães Sergi Belbel e Ventura Pons nos colocam diante de 11 diálogos de pessoas que se odeiam profundamente, que se agridem com imensa violência. No primeiro, por exemplo, temos um jovem casal; ele (David Selvas) chega em casa, ela (Laura Conejero) está lendo. Começam a discutir, um diálogo áspero, duro – e rapidamente passam para a porrada. Primeiro ele bate nela. Depois ela bate nele, e bate muito, até deixá-lo quase desacordado, sangrando, caído no chão.

Termina a primeira seqüência, e na segunda essa jovem esposa que apanhou do marido e bateu nele se encontra com a mãe dela (Julieta Serrano). Têm um diálogo áspero, duro, agressivo. Não há porrada física, mas as agressões verbais são como facas afiadas.

Entre uma seqüência e outra, há alguns segundos de tomadas frenéticas das ruas de Barcelona à noite; as tomadas são feitas com a câmara num carro em movimento, e depois aceleradas, tipo assim 48 quadros por segundo, em lugar dos normais 24 quadros.

Tudo muito bonito, tudo muito bem feito, tudo repetitivo, cansativo.

         Embuste, falsificação, mistificação

O roteiro, de autoria do próprio autor da peça, é aquela coisa típica metida a grande arte, a intelectual, a genial, a diferente, a revolucionária. É uma completa e absoluta babaquice. Modismo, coisa idiota, pretensiosa, imbecil.

Me lembrei daquela coisa que andou por aí nos anos 60 – como se chamava mesmo? O teatro da agressão. Uma coisa feita para épater les bourgeois – ao mesmo tempo em que quer parecer avançado, genial, diferente, e na verdade é só idiota mesmo. Eta troço imbecil. Embuste. Falsificação. Mistificação.

Para que toda essa carrada de adjetivos fortes que usei aí nos dois parágrafos anteriores não fique parecendo solta, despropositado, gratuito, me dei ao trabalho de anotar parte dos diálogos de um dos 11 episódios. É o encontro de uma mulher de uns 50, 60 anos (Montserrat Salvador) – que na seqüência anterior havia se encontrado com a mãe da jovem esposa da primeira seqüência – com um mendigo (Agustin Gonzalez), numa esquina. A mulher – o espectador só compreenderá isso quase ao fim daquela seqüência – é irmã daquele homem que hoje é um mendigo. E foi amante da mulher dele, morta dez anos antes; aparentemente, roubou dele a sua mulher.

Vamos ao diálogo:

Mendigo (ao ver a mulher se aproximar dele, no momento em que ele está revirando uma caixa de lixo na rua): – “Puta vestida de velha!”

Mulher: – “O que você procura?”    

Mendigo: – “Comida.”

Mulher: – “Faz mais de dez anos que não nos vemos.”

Mendigo: – “Tenho fome.”

Mulher: – “Você não me diz nada?”

Mendigo: – “Puta!”

Mulher: – “Você não me diz nada?”

Mendigo: – “Puta, puta, puta. Vai embora. Tenho fome. (… Remexe mais no lixo.) Uma sardinha!”

Mulher: – “Não tenho pena de você.”

Mendigo: – “Três sardinhas!”

Mulher: – “Não tenho pena de você.”

Mendigo: – “Vá embora, puta. São minhas.”

Mulher: – “Não quero comer.”

Mendigo: – “Puta. Eu sei quem você é.”

Mulher: – “Sabe?”

Mendigo: – “Sim. Uma puta vestida de velha, uma policial disfarçada. Não, não! Não vai me cortar o cabelo! Quero ficar aqui! Não me limpe a merda, quero a merda seca. Assim meu cu não fica frio. As sardinhas são minhas.”

Mais adiante, alguns episódios à frente, haverá um diálogo nesse tipo de tom – os diálogos parecem ser de surdos; uma pessoa não ouve o que a outra está dizendo – entre um homem (Sergi López) e uma mulher (Mercè Pons), em que ele fala, repetidamente, a respeito do cheiro horroroso da xoxota dela. Pensei em copiar um trecho também, mas fiquei com preguiça. Acho que o diálogo transcrito acima dá uma idéia do espírito da coisa.

       No meio da imbecilidade toda, o diretor demonstra talento

Nunca tinha ouvido falar em Sergi Belbel. Vejo na Wikipedia que nasceu em 1963, e que a partir de 2005 tornou-se o diretor do Teatro Nacional da Catalunha. Sua primeira peça é de 1986, e Carícias, de 1991, o tornou famoso. Em 2000 Ventura Pons voltou a fazer um filme baseado em peça de Belbel, Morir (o No).

Já havia visto um filme de Ventura Pons, Anita Não Perde a Chance/Anita No Perd el Tren, um filme que me deixou absolutamente encantado. Por causa dele resolvei experimentar este Carícias. Poderia ter parado de ver no segundo episódio, mas quis saber onde aquilo tudo iria dar – até para ficar conhecendo um pouco mais esse cineasta que é muito incensado, e que, afinal, fez pelo menos um grande filme.

E o filme, como disse lá no início, demonstra grande talento. O roteiro, a trama, o texto – tudo é embuste. Mas, apesar disso, vê-se o talento do diretor. Os atores estão todos excelentes. A trilha sonora, do colaborador de sempre do cineasta, Carles Cases, compositor de primeira grandeza, é ótima. De coisas desse Sergi Belbel, não passo nem perto, nunca mais na vida. Mas ainda vou atrás de outros filmes de Ventura Pons.

Não vou é atrás de outras opiniões na internet. Haverá seguramente dezenas de textos de pseudo-intelectuais usando expressões elegantes e frases incompreensíveis para exaltar a qualidade da narrativa anticonvencional, seres solitários à procura de amor e afeto expressando os sentimentos inversos ao que desejam, blábláblá.

Por desencargo de consciência, procurei no Movie Guide de Leonard Maltin, no Film Guide de Jean Tulard e no Cine Guia português de Miguel Lourenço Pereira; nenhum dos três menciona o filme – que foi exibido no Festival de Berlim em 1998. O AllMovie traz uma breve sinopse e não se arrisca a opinião alguma.

Nesta anotação aqui vou ter que ficar falando sozinho, sem apresentar outra opinião.

Carícias/Carícies

De Ventura Pons, Catalunha/Espanha, 1998

Com David Selvas (homem jovem), Laura Conejero (mulher jovem), Julieta Serrano (mulher mais velha), Montserrat Salvador (mulher velha), Agustin Gonzalez (velho), Naim Thomas (garoto), Sergi López (homem), Mercè Pons (moça), Jordi Dauder (homem mais velho), Roger Coma (garoto), Rosa María Sardà (mulher)

Roteiro Ventura Pons e Sergi Belbel

Baseado na peça de Sergi Belbel

Fotografia Jesus Escosa

Música Carles Cases

Produção Els Films de la Rambla, Television de Catalunya, Televisión Española

Cor, 92 min

1/2

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