Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei


4.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Nunca houve uma história como a de Wilson Simonal. A vida dele é extremamente rica, cheia, impressionante, marcante. Era importantíssimo que se fizesse um filme sobre ela. O resultado final nem precisaria ser excelente, e já seria um filme precioso. Pois este documentário é ótimo – fica muito além das expectativas.

O cinema brasileiro tem sido pródigo em documentários, e documentários sobre músicos têm sido feitos às dezenas – Paulinho da Viola, Arnaldo Batista, Vinicius de Moraes, Titãs, Paulo Vanzolini foram temas de filmes, para citar só alguns, de estilos e épocas distintas. Mas o caso de Wilson Simonal é único. Simonal foi um dos maiores ídolos populares que este país já teve, um fenômeno de fato só comparável – como está dito no filme – a Roberto Carlos; depois de condenado por um crime que jamais se provou que cometeu, foi linchado e condenado ao mais completo esquecimento. Há gerações que, antes deste filme, jamais tinham ouvido falar de Simonal.       

Fiquei pensando, depois que comecei a fazer esta anotação: eu tive a sorte de ver um show de Simonal, no Anhembizão, o Pavilhão de Exposições lotado com uma multidão calculada em cem mil pessoas. E ele fazia com as cem mil pessoas o que fez com 30 mil no Maracanãzinho, e fez com as platéias do Teatro Record, de diversos teatros e casas de show do Brasil todo e de vários países do mundo – regia o coral; dizia: agora só os 50 mil do lado esquerdo, e o povo do lado esquerdo cantava e o do direito ficava em silêncio. E depois vice-versa. Agora só as mulheres – e o povo obedecia.  

Aí veio 1971, e a imprensa toda noticiou que Simonal era dedo-duro, informante da ditadura. E então Fernanda, minha filha, jamais ouviu uma única faixa de disco de Wilson Simonal. Inês, minha filha torta do segundo casamento, que morou comigo quase dez anos e formou seu gosto musical ouvindo os discos que eu punha para tocar, jamais ouviu a voz de Wilson Simonal. Como todos os brasileiros da minha geração, eu também participei do crime de condenar Simonal ao ostracismo – sem provas. Uns quatro ou cinco anos atrás, comentei com a Mary alguma coisa do tipo: se eu não fosse tão preguiçoso, poderia escrever um livro sobre Simonal. Alguém teria que fazer.

Fizeram este filme. Maravilha.

         Uma narrativa coordenada, centrada

Simonal 1

 O filme reúne, como é o padrão, trechos de apresentações de Simonal – na TV, em casas de espetáculo, no Maracanãzinho lotado com uma multidão entusiasmada que fazia o que ele mandava, do jeito que ele queria – e depoimentos de diversas personalidades. A pesquisa pelo material da época foi excelente, há belas imagens, impressionantes atuações do cantor. E são belos depoimentos. Tem Luís Carlos Mièle, Nelson Motta, Ricardo Cravo Alvim, Ziraldo, Jaguar, o Boni da Globo, Pelé, Tony Tornado, Paulo Moura, Bárbara Heliodora, Chico Anysio, os filhos Max de Castro e Simoninha, Sandra Cerqueira, a segunda mulher dele, que o acompanhou nos duros anos de ostracismo e bebedeira, até a morte por cirrose, em 2000.

É comum os documentários biográficos se perderem um pouco no meio de tanta informação, e ficarem num ziguezague entre os temas e as épocas. Este aqui não se perde. Ao contrário: me impressionou como os diretores e roteiristas conseguiram fazer uma narrativa coordenada, centrada, seguindo sempre uma linha mestra, um fio. Primeiro eles mostram a carreira de Simonal, o espetacular sucesso que ele teve nos anos 60, até chegar ao posto, dividido com Roberto Carlos, de cantor mais popular deste país divinamente musical; depois falam do envolvimento dele com a Seleção brasileira de 1970, e a partir daí, da ditadura, da época em que se vivia; esse é o gancho para mostrar a acusação de que ele foi dedo-duro dos milicos; e a partir daí o filme vai mostrando e discutindo o julgamento e a condenação geral do artista, e o período de ostracismo.

Há diversas informações que eu e Suely, que viu o filme comigo, não conhecíamos, ou das quais já havíamos nos esquecido. Não sabia, ou não me lembrava, por exemplo, da história de que ele foi meio um mascote da Seleção brasileira que ganhou o tricampeonato no México; nem de que foi dele a apresentação no intervalo do famosérrimo show no Maracanãzinho na final do Festival Internacional da Canção, aquele em que Chico Buarque e Tom Jobim foram vaiados porque Sabiá ficou em primeiro lugar, derrotando Caminhando, de Vandré, que era a que o povo queria. Não me lembrava da grande campanha publicitária da Shell estrelada por ele. Não me lembrava do dueto dele com Sarah Vaughan durante visita dela ao Brasil, os dois brigando para ver quem brilhava mais ao cantar The Shadow of Your Smile. E também não me lembrava – e isso é importante – de que as orquestrações e regências dos discos dele quando estava no auge, 1967, 1968, eram de César Camargo Mariano.   

O grande furo de reportagem do filme é a entrevista com o tal contador de Simonal, Raphael Viviani, que participou do episódio que levou o cantor à ruína; a câmara mostra o entrevistador batendo à porta do sujeito, a voz da mulher dele querendo expulsar a equipe – “essa coisa já tem 40 anos e não deixam meu marido em paz”. E depois mostra o depoimento dele, na sala de sua casa acanhada, de classe média média. Ele conta como foi preso e torturado. E todos os diversos outros entrevistados comentam o episódio.

É uma história esquisita, torta, turva. Mas o filme deixa claro o que parece ter sido a verdade: desconfiado de que o contador o estava roubando, Simonal teria pedido a ajuda de alguns amigos e conhecidos dele no Dops, o famigerado órgão da repressão da ditadura, para dar um susto no sujeito, para que ele confessasse o roubo. A partir daí, um delegado disse a alguém da imprensa que o cantor era informante do Dops. Nunca se provou nada, mas virou verdade verdadeira, fato inconteste. Ninguém saiu em defesa dele, ninguém mais o chamou para participar de programa algum de rádio ou TV. Ostracismo completo, total, absoluto.

Cantor de talento imenso, showman como pouquíssimos no mundo, pobre, filho de empregada doméstica, sem estudo, sem educação formal, Simonal era, ao que tudo indica, e pelo que mostra o documentário, um sujeito meio bobo, meio pobre de espírito; cometeu a besteira de ser amigo de policiais e o grave erro de ter pedido a eles uma ação ilegal, criminosa. É grave, sim. Mas não mereceria o linchamento público a que foi submetido, é óbvio – e sob a acusação de outro crime, a deduragem, que, tudo indica, ele não cometeu. Como diz Chico Anysio: “Quero que uma pessoa me diga que foi dedurada pelo Simonal. Uma única pessoa”.  

         Mas e a música do cara?

Em seus depoimentos no filme, os filhos de Simonal dizem que o importante é que ele seja lembrado por sua música, e não pelo crime que nós todos cometemos contra ele. Parece que este filme – desde já histórico – está fazendo muita gente redescobrir, ou simplesmente descobrir, a música de Simonal. Uma reportagem no Globo de 31 de maio deste ano, 2009, com o título de “Simonalmania”, diz que o documentário foi visto por 28,5 mil pessoas em apenas duas semanas – o terceiro documentário mais visto no ano; que as músicas dele voltaram a tocar nas rádios e têm sido ouvidas “em festas das casas noturnas mais concorridas do país”; e que dois livros sobre ele estão para ser lançados. (Nenhum deles de Sérgio Vaz, esse sujeito preguiçoso.) Um DJ disse aos repórteres que os pedidos por músicas de Simonal têm aumentado a cada nova festa em que ele toca.

Então, que tal a música do cara?

O showman Mièle conta no filme que, um tempo atrás, numa rodinha com um bando de gente muito policamente correta – ou seja: de esquerda –, afirmou que Simonal foi o maior cantor que o Brasil já teve; seus companheiros de mesa disseram que não, o que que é isso, mas ele peitou: então quem é melhor que ele?

(Tem cantor melhor que ele, ou tão bom quanto ele, na minha opinião: Orlando Silva, Cauby Peixoto, Nelson Gonçalves, Ney Matogrosso; João Gilberto, Caetano Veloso, Zé Renato. Mas tudo bem.) 

Já Sérgio Cabral, o grande pesquisador e escritor sobre MPB, diz que ele era um bom cantor, mas a música dele era um lixo, não prestava, não valia nada.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra, diria euzinho. Simonal foi um puta de um excelente cantor – além de um extraordinário showman. De fato, tem um suingue único, excepcional; é alegre, pra cima, e nem doente do pé resiste ao ritmo dele. Vesti Azul e Sá Marina, por exemplo, são gostosas, irresistíveis. Mas a maior parte de seu repertório é mesmo porcaria, besteira, coisa boba, menor. Um tanto cafona, um tanto brega.

Em 2006, a EMI, a ex-Odeon, pela qual ele fez a maior parte de seus discos, lançou uma coletânea juntando as faixas que ele gravou de Tom e de Chico; a intenção óbvia era mostrar que o cara, afinal de contas, não gravou só pilantragem, também gravou o melhor que há na música brasileira. Comprei o disco, como havia comprado em 2002, já na fase de rever a história e deixar de condenar Simonal pelo crime que ele afinal não cometeu, Alegria, Alegria!!!, de 1967, e Alegria Alegria vol. 2 ou quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, de 1968. Ouvi poucas vezes o disco Wilson Simonal canta Tom & Chico. Na verdade, aquelas maravilhas dos dois gigantes não ficam lá muito bem com ele. Não são a praia de Simonal – a praia dele é mesmo a pilantragem. 

Mas isso aí é só minha opinião pessoal. O que importa é que o cara merece, sim, um lugar importante na história da música e da cultura popular deste país. Felizmente este belo filme foi feito, e tudo indica que ele está sendo fundamental para recolocar as coisas no lugar.

A outra coisa que importa é termos a consciência de que fomos, nós todos, por cegueira ideológica, cúmplices de um crime como, acho, nunca houve outro no mundo, um assassinato, um linchamento de um artista talentoso – e por causa de um crime jamais provado. Fernanda e Inês deveriam ter ouvido Simonal quando eram crianças; não ouviram porque eu fui um dos linchadores. 

Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei

De Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, Brasil, 2008

Documentário. Com depoimentos de Luís Carlos Mièle, Nelson Motta, Ricardo Cravo Alvim, Ziraldo, Jaguar, Boni, Pelé, Tony Tornado, Paulo Moura, Bárbara Heliodora, Chico Anysio, Max de Castro, Simoninha

Roteiro Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal

Produção TV Zero. Estreou em SP 15/5/2009

Cor e P&B, 86 min

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8 Comentários para “Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei”

  1. Já li muitos textos sobre Simonal, mas nada tão profundo e tocante quanto este. Digo com todas as letras, e sem medo de parecer piegas: fui às lágrimas. Como fã do grande e inesquecível Simona, agradeço imensamente.

  2. Eu tenho 51 anos, lembro perfeitamento do sucesso que ele fez. Era maravilhoso o balanço dele e como contagiava o pessoal da pista. Espero que a cambada que o julgou, o condenou e assassinou, sinta agora a merda que fez.

  3. poxa, infelizmente ele nao esta mais entre nois, isto deveria ter sido feito ele em vida, para ele saber como ele era e e amado por tantos brasileiros, so fica a tristeza de nao poder punir realmente como se deve este triste contador, que queria muito saber como ele esta hoje, pois tudo que se planta colhe mais antes tardedo que nunca, tenho 55 anos e vive a epoca de simonal que era fenomenal. Abraços para a familhia

  4. Muitos anos atrás, eu andava pelo Passeio no Flamengo,e deparei-me com uma imagem que me marcou para sempre. O Simonal, carregando uma criança de colo e de braço-dado com uma moça. Não era a figura do astro que eu imaginava. Vi ali apenas um pai de família que me cumprimentou simpaticamente. Jamais vou esquecer.

  5. Também fiquei muito comovida com o documentário, Sérgio. Nunca entendi o que aconteceu com a carreira do Simonal e me senti 100% alienada pelo desconhecimento destes fatos. É bom que ele esteja sendo reabilitado e os filhos tenham a grandeza de não guardarem mágoa alguma. Ótima postagem, como sempre. Um abraço, S.

  6. Obrigado pela mensagem, cara Stella. É sempre uma alegria receber comentário seu.
    Um abraço.
    Sérgio

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