Mulher Diabólica / The Wicked Lady


0.5 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Às vezes a gente esquece que a estupidez, a ruindade, sempre podem ser maiores ainda do que imaginávamos. Sempre podem nos surpreender. É o que demonstra este filme aqui, que peguei para ver sem referência alguma, só por ser antigão, anos 40, preto-e-branco.

Logo depois da apresentação, temos um plano geral, uma rica propriedade do interior da Inglaterra, um castelo imponente lá ao fundo, duas pessoas andando a cavalo no gramado imenso diante dele. Corta, e temos um plano americano, o casal cavalgando lado a lado; e qualquer espectador percebe como é mal feita a transparência – é absolutamente claro, nítido, que o casal está no estúdio, e o que se vê atrás é uma paisagem filmada anteriormente e que está sendo projetada invertida atrás deles no estúdio.

Isso, mais o diálogo que eles travam, e a atuação deles, falsa como loura fajuta, já bastam para demonstrar com absoluta clareza, com três minutos de ação: o filme é uma porcaria.

Nada contra o esquema da transparência em si. Grandes filmes usavam transparência, atores que parecem estar em um carro, uma carruagem, ou a cavalo, no estúdio, e um filme com paisagem passando atrás. Hitchcock usou e abusou disso, às vezes de forma até mal cuidada. Mas essa primeira seqüência deste Mulher Diabólica exagera na ruindade.

Isso não é nada, porém, diante de tudo que está para vir.

O casal que cavalga no interior da Inglaterra do século XVII é Sir Ralph Skelton (Griffith Jones), magistrado e milionário, e Caroline (Patricia Roc), jovem pobre que ele acolheu em seus domínios, e com quem vai se casar em breve, conforme o espectador fica sabendo já naquele primeiro diálogo.

Caroline chama para seu casamento sua prima e melhor amiga Barbara (Margaret Lockwood). No momento em que ela chega ao castelo, vinda de Londres, e bate o olho em Sir Ralph, e Sir Ralph bate o olho nela, os dois fazem caretas exageradas, e até os móveis da sala percebem que, pronto, lá se foi pelo ralo o casamento de Caroline.

Com menos de dez minutos de filme, Sir Ralph está se casando, sim, mas com Barbara, e não com Caroline. Caroline, atendendo a pedido de Barbara, continua vivendo no castelo, administrando a propriedade, sendo dama de honra no casamento que deveria ser seu.

No baile após o casamento, surge um estranho (mais tarde saberemos que é Kit Locksby, interpretado por Michael Rennie). No momento em que Kit bate o olho em Barbara, e Barbara bate o olho em Kit, os dois fazem caretas exageradas, e até o piso da sala percebe que, pronto, lá se foi pelo ralo a fidelidade conjugal da nova Lady Skelton.

Kit dança com Barbara e faz declarações arrebatadas a ela. Mais ainda: ao final da dança, pode-se beijar a noiva, é o costume – mas o costume é um beijinho suave, e Kit agarra a noiva recém-casada e aplica-lhe um amasso e um longo beijo de língua bem no meio do salão.

Mas péra aí. A gente não aprendeu, vendo tantos filmes sobre a sociedade inglesa do século XVII, que tudo era muito pudico, muito contrito? Que um levíssimo toque de uma mão em outra mão já era motivo de terrível frisson?

Pois é. Este filme inglês aqui desmonta um monte de coisas que aprendemos vendo tantos filmes baseados em Jane Austen e outros autores clássicos. Mas deve-se notar que a autora da novela em que o filme se baseia, Magdalen King-Hall, sabia menos sobre o que estava falando do que Jane Austen e os demais clássicos: ela nasceu em 1904, e morreu em 1971.

Barbara, Lady Barbara Skelton, está só começando a mostrar do que é capaz. Com mais meia hora de filme, o que até então era uma narrativa sobre romance se transforma numa aventura de salteadores, de assaltantes de estrada, quase um bangue-bangue. A lady vai se fantasiar de homem e assaltar carruagens na madrugada – e trepar com um famoso e notório bandido que ataca naquela região, o Capitão Jackson (James Mason) e confessar-se muito feliz com aquela vida cheia de emoções. Depois vai assassinar um, dois, três. Sempre sentindo muito prazer com tudo isso. Wicked Lady!

Os atores estão, todos, sem qualquer exceção, pavorosos – o que é estranhíssimo num filme inglês, o país de melhor escola de atores do mundo. Essa Margaret Lockwood é um absurdo. As caretas que ela faz – olhos esbugalhados, boca cerrada – são de fazer o pior Jim Carrey um ator moderadíssimo, de maneiras suaves e controladas. Os exageros de dramaticidade são de tornar uma novela mexicana coisa sutil, bem dirigida.

E depois falam mal do Ed Wood.

Bem. Agora que já desopilei um pouco o fígado, vamos aos fatos e às outras opiniões.

Grande sucesso de bilheteria na Inglaterra (o filme é de 1945, o ano do fim da Segunda Guerra, e é absolutamente compreensível que, depois de tantos bombardeios nazistas, e da perda de dezenas de milhares de ingleses, a população quisesse um escapismo), o filme, segundo o iMDB, foi a primeira produção inglesa a sofrer cortes pela censura dos produtores americanos, devido ao comportamento mais que libidinoso da anti-heroína.

Segundo o guia da Time Out, a controvérsia sobre a ousadia com que o adultério era mostrado fez bem para a bilheteria do filme. Leonard Maltin escreveu uma linha – é bem provável que não tenha perdido tempo vendo o filme: “O título se refere a (Margaret) Lockwood, neste drama de época inconvincente sobre mulher fora-da-lei que se une ao ladrão Mason nos seus mal-feitos” – e acrescenta que houve uma refilmagem em 1983. Sintomaticamente, na edição 2009 de seu Movie Guide Maltin tirou fora o filme de 1945, e fala só da refilmagem de 1983, com um elenco bom: Faye Dunaway, Alan Bates, Sir John Guilgud, Denholm Elliot.

Pauline Kael aparentemente não perdeu tempo com esta bobagem.

Sobre o diretor Leslie Arliss (1901-1988), Jean Tulard diz em seu Dicionário: “Pouco conhecido fora da Inglaterra, foi primeiro jornalista e crítico, em seguida cenógrafo, antes de passar para a direção. (…) Lançou James Mason, Stewart Granger e Margaret Lockwood. A partir de 1955, dedicou-se à televisão”.

OK. Talvez fosse o caso de reconhecer que o filme estava à frente de seu tempo ao criar o personagem de Barbara – uma mulher que tem prazer com o crime, que, em busca de emoções, acaba viciada no crime. O verbete do filme no iMDB está cheio de gente que faz os maiores elogios. Tá bom. Mas que é um dos piores filmes de toda a história, lá isso é. 

Mulher Diabólica/The Wicked Lady

De Leslie Arliss, Inglaterra, 1945.

Com Margaret Lockwood, Patricia Roc, James Mason, Griffith Jones, Michael Rennie

Roteiro Leslie Arliss

Diálogos adicionais Gordon Glennon e Aimée Stuart

Baseado na novela The Life and Death of the Wicked Lady Skelton, de Magdalen King-Hall

No DVD. Produção Gainsborough Studios.

P&B, 104 min 

Bola preta.

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *