Mil Anos de Orações / A Thousand Years of Good Prayers


3.0 out of 5.0 stars

Anotação em 2009: Esta obra de Wayne Wang de 2007 é um belo pequeno filme: suave, delicado, simples, em tom menor. Parece um conto, não uma novela, um romance. De fato, é baseado em um conto – e, ao contrário de tantos filmes baseados em contos, em que se procura adicionar mais elementos para expor algo mais complexo, aqui a aparência é de que não procuraram adicionar nada. É um conto.

Não vai aí uma crítica, uma reclamação, de forma alguma; é apenas uma constatação, um fato. Poderia ser resumido assim: chinês já idoso, viúvo, chega aos Estados Unidos para visitar a filha, que emigrou para lá 12 anos antes e está bem estabelecida no novo país; imensas distâncias os separam; vão ter uma relação tensa, difícil.

É isso – e é muito mais, porque o diretor Wang e a roteirista Yiyun Li, ela própria a autora do conto em que se baseia o filme, souberam, com talento e uma grande dose de sabedoria, mostrar as diversas camadas que envolvem esse encontro de dois seres em tudo distantes um do outro. Diversas camadas – como se fossem uma cebola. Ou matriochkas, aquelas bonecas típicas russas que são colocadas umas dentro das outras, da maior até a menor.

A menção que faço às matriochkas não é à toa. Deixado sozinho na casa da filha Yilan (Faye Yu) durante os dias inteiros, enquanto ela sai para trabalhar, o Sr. Shi (Henry O) percorre o quarto da filha, examina os pertences dela, e encontra duas matriochkas, uma delas com as figuras de uma mulher e a outra com as figuras de um homem. E a existência de dois conjuntos de bonecas russas no quarto da imigrante chinesa também não é à toa, conforme o espectador verá quase ao fim desse filme de apenas 83 minutos de duração.

         12 anos de distância – e nenhum abraço no reencontro

Mas vou voltar ao começo. O filme abre com um plano de conjunto, em um aeroporto, na área de desembarque dos passageiros. A câmara está parada, e ficará parada, estática, na área em que estão as pessoas que esperam quem desembarca. Vemos pelas costas algumas pessoas que esperam, e vemos de frente os que chegam. Entre eles está um senhor chinês, o Sr. Shi. Uma moça o chama, não muito alto, quase em voz baixa, chinesamente: “Pai”. Os dois se aproximam um do outro – a câmara permanece quieta, estática. Pai e filha não se encostam, não dão um abraço, não dão as mãos – nenhum gesto de carinho, afeto, afeição. Ele diz que ela parece jovem, como era quando partiu, e ela diz que já se passaram 12 anos.

amil1Pai e filha que não se vêem há 12 anos, e, ao se reencontrarem, não fazem um gesto de ternura. Na primeira tomada de seu filme, Wayne Wang nos conta muito a respeito da relação – ou da ausência de relação – entre o Sr. Shi e Yilan.

Ao longo do filme, vai nos contar bastante sobre a relação-falta de relação entre os dois, através de pequenos detalhes, pequenas elipses, pequenos silêncios. É daquele tipo de filme que fala mais pelo que não é dito, pelas entrelinhas, do que pelo que é falado, embora muitas coisas também sejam ditas explicitamente.

Não se explicita, por exemplo, a cidade em que Yilan vive. Não é uma grande metrópole, é uma cidade média; pelo rigor do inverno, sabemos que é uma cidade de Estado do Norte. (Os créditos finais informarão que o filme foi feito em Spokane, Washington, e Coeur d’Alene, Idaho, no Noroeste americano, próximos ao Canadá.)

Veremos que Shi não foi um pai próximo da filha – e ela é a filha única. Na verdade, foi um pai bastante ausente. Ao abismo afetivo vieram se somar 12 anos de vida de Yilan nos Estados Unidos, numa sociedade absolutamente diferente da da China comunista. Sim, porque ele não é de Hong Kong, ou de Formosa (Wayne Wang é de Hong Kong), da China capitalista. E, apesar de tudo, apesar de ter visto seu próprio pai comer o pão que o diabo amassou na China de Mao, em especial na época absolutamente radical da Revolução Cultural, Shi demonstra simpatias pelo comunismo, bem diferentemente do que Yilan sente.

Não que Yilan seja uma daquelas pessoas absolutamente apaixonadas pelo capitalismo, pelo American way of life. Não é; vive uma vida até confortável, materialmente falando – não é rica, mas não passa por nenhuma necessidade material básica. No entanto, é uma estrangeira, uma imigrante, não tem pátria – perdeu a que deixou para trás e não chegou a sentir como sua a nova em que vive. É uma pessoa dura, fechada, crispada; não é feliz. O pai, ao contrário, acredita ser feliz – apesar de todos os problemas que teve na vida.

Veremos que a convivência entre pai e filha é um diálogo de surdos, uma impossibilidade absoluta de comunicação entre pessoas tão diferentes, de universos e gerações e ambições tão díspares – e que no entanto são parecidas em algumas características básicas da personalidade. Pai e filha têm em comum uma grande rigidez na forma de olhar os outros e o mundo; e ambos são extremamente fechados em si mesmos.

         Um belo diretor de cinema, falando de orientais ou ocidentais

Wayne Wang conta essa história da maneira mais suave e simples possível. Não há uma nota alta em sua pequena sonata. Tudo é em tom menor. 

É um belo diretor de cinema, esse senhor, com uma rica filmografia que muitas vezes fala de imigrantes chineses (como o belíssimo O Clube da Felicidade e da Sorte, de 1993), mas que também mostra o dia-a-dia de americanos que não têm qualquer relação com suas origens asiáticas (como o díptico Cortina de Fumaça/Smoke e Sem Fôlego/Blue in the Face, de 1995, em que divide a autoria com o escritor Paul Auster, em que boa parte da ação se passa em uma tabacaria do Brooklyn).

O tema central de todas as suas obras, no entanto, o que dá uma magnífica coerência ao que faz, independe do fato de tratar de imigrantes de origem chinesa ou de americanos de outras origens; seu tema básico é sempre a família, os laços familiares – ou exatamente a falta deles. Como fez em Em Qualquer Outro Lugar/Anywhere But Here, seu belo filme de 1999, sobre as distâncias entre uma mãe e sua filha única, interpretadas pelas excelentes Susan Sarandon e Natalie Portman.

Aqui, fez mais um belo filme. Belo pequeno filme, que vai pouco a pouco abrindo as matriochkas e revelando as camadas interiores dessa difícil, quase impossível relação pai e filha.

Mil Anos de Orações/A Thousand Years of Good Prayers

De Wayne Wang, EUA, 2007.

Com Henry O (Mr. Shi), Faye Yu (Yilan), Vida Ghahremani (Madame), Pavel Lychnikoff (Bóris)

Música Lesley Barber

Produção Boram Entertainment. Estreou no Brasil 21/11/2008.

Cor, 83 min

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