2.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Claro, já se fizeram muitos filmes sobre triângulo amoroso. É uma coisa tão comum na vida, por que não seria um tema recorrente no cinema? Este filme aqui do diretor Robert Guédiguian talvez seja, porém, o que mais expressa em palavras, abertamente, cortantemente, o dilema da pessoa que se liga aos outros dois pontos do triângulo.
Essa, me parece, é a principal característica do filme – ao lado da sua insistente busca pela falta de charme, de glamour, seu persistente esforço para se mostrar “sujo”, “mal feito”, “mal acabado”, anti-Hollywood.
Mas vamos, como o estripador, por partes.
Lugar comum. “Quer mais lugar comum do que a vida?”, dizia o contista Luiz Vilela. Para lembrar só de alguns, há Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, baseado em Jorge Amado – um triângulo safado, bonachão, bem baiano, mas sobrenatural, que vai além desta vida. Há Uma Mulher Para Dois/Jules et Jim, de François Truffaut – elegante, literário, em que dois franceses e um alemão tentam (sem muito sucesso, é verdade) encarar as coisas como se pudessem ter um distanciamento escandinavo das emoções. E há, entre tantos outros, As Duas Faces da Felicidade/Le Bonheur, de Agnès Varda.
Não dá para saber, naturalmente, se Robert Guédiguian viu o filme de Varda, mas deve ter visto, com toda certeza. Vejo no site da Fnac francesa que o DVD de Le Bonheur foi lançado na França em 2006 (no Brasil, ele não foi lançado em VHS nem em DVD, e, pelo que eu saiba, jamais voltou a ser exibido depois da época do lançamento, nos anos 60). Os dois filmes são muito parecidos em diversas coisas, a partir do fato de que são franceses. Nos dois, os personagens que formam o triângulo amoroso são da classe trabalhadora; não são pobres, têm o básico, e até um pouco mais que o básico, mas são pessoas simples, comuns, não são intelectualizadas nem especialmente cultas. Nos dois, toca-se Mozart – com a diferença de que em Le Bonheur só se toca Mozart, e neste Marie-Jo e Seus Dois Amores há diversos trechos de peças eruditas de vários autores, e também canções populares.
Em Le Bonheur, o operário apaixonado pela esposa que – são demais os perigos desta vida – se apaixona também por outra mulher diz uma frase assim: “Eu achei que eu pudesse ter direito a ter duas felicidades ao mesmo tempo”.
A partir daí, os dois filmes se afastam. A lembrança que tenho de Le Bonheur (vi o filme nos anos 60; ele foi lançado na França em 1965, e passou aqui em 1966, ou 1967) é de que é um filme de uma beleza visual deslumbrante, enquanto este aqui persegue a feiúra; e no de Varda, tirando essa frase que citei, e mais algumas outras, os personagens não ficam falando muito sobre o que está acontecendo – ao contrário do que acontece no filme de Guédiguian. E, ao contrário deste triângulo aqui, o de lá não sofre demais o tempo todo.
Marie-Jo (Ariane Ascaride) trabalha como motorista em um hospital; sua tarefa é pegar pessoas doentes em suas casas e levá-las até o hospital para o tratamento, e depois trazê-las de volta. Está casada há mais de 20 anos com Daniel (Jean-Pierre Darroussin, na foto acima), que tem uma pequena empresa ligada à construção civil – ele constrói, reforma e faz consertos de imóveis. Os dois têm uma filha de uns 18, 20 anos, Julie (Julie-Marie Parmentier) Quando a ação começa, já faz quase um ano que Marie-Jo está tendo um caso com Marco (Gérard Meylan, na foto abaixo), um piloto de navios, um prático, que faz a manobra de chegada e saída de grandes navios ao porto – a ação, com em outros filmes de Guédiguian, passa-se em Marselha, a cidade natal do diretor. O próprio trabalho de Marie-Jo, sem horário rígido, com janelas entre uma tarefa e outra, a favorece, facilita as idas à casa de Marco.
Marie-Jo diz a Marco numa determinada altura que ela só é feliz quando está trepando; é verdade que ela trepa muito, em casa e fora; mas, nos demais momentos – ela diz – está infeliz, exatamente porque ama dois homens ao mesmo tempo.
Em uma bela cena, quando já temos uns 20 minutos de filme, e o espectador já conheceu os personagens e já sabe como é a vida deles, Daniel está adormecido no chão de sua casa, nu. Marie-Jo, também nua, está sentada olhando para ele. Ela fala alto, sabendo que ele não a ouvirá:
– Se você soubesse o quanto eu sofro por não poder dizer a você que estou apaixonada. Como uma colegial. Como nossa filha. E não posso contar nada a você, dividir nada com você. Devo guardar tudo para mim mesma, esconder meus sentimentos. Acho que trair é isso. Trair não é só transar com outro homem. É não poder se abrir, guardar tudo para si, não como um pecado, mas como uma felicidade que queria dividir com você. Queria compartilhar tudo com você. Eu amo você. Amo vocês dois.
Robert Guédiguian foi criado num ambiente operário – o pai, imigrante armênio, trabalhou nas docas de Marselha – e militou no Partido Comunista Francês. Seus filmes retratam o mundo que ele conhece bem, e mostram as vidas de seus personagens sempre tendo como pano de fundo as questões sociais. Aqui, seu personagem Daniel se dedica a treinar jovens operários nas tarefas da construção civil; vários deles, depois de aprender o ofício, foram trabalhar por conta própria. E Marie-Jo faz parte da liderança sindical de sua categoria – só na fase emocionalmente conturbada da sua vida, exatamente a que é mostrada no filme, ela não está querendo saber dos problemas dos outros.
As preocupações sociais do diretor, sua posição política, seu apego e sua admiração pelos trabalhadores explicam em parte sua opção por essa estética anti-hollywoodiana. É absolutamente proposital a falta de glamour do filme, em tudo por tudo, a começar pelo próprio físico dos atores que ele escolhe (e ele sempre trabalha com o mesmo grupo de atores). A começar, especialmente, por Ariane Ascaride, a atriz que faz Marie-Jo – e que é casada com o diretor, e está na maioria de seus filmes. Ela absolutamente não é bonita, nem charmosa, nem glamourosa – parece, de fato, uma pessoa comum do povo, da classe trabalhadora.
Mas, muito mais que isso, o filme impressiona exatamente pelo seu persistente esforço para se mostrar “sujo”, “mal feito”, “mal acabado”, anti-Hollywood. Ou seja: retrato da vida real, mesmo – sem qualquer edulcoração. As seqüências parecem desligadas umas das outras, descosturadas; percebe-se que há um esforço para fugir à montagem tradicional, que tenta criar impactos; aqui, não – o que se quer é exatamente evitar impactos.
Mais ainda: a iluminação, a fotografia são propositadamente ruins, “sujas”. Não há qualquer trabalho para corrigir problemas de iluminação quando um ator sai de um ambiente externo iluminado e entra em casa; ao contrário, a fotografia insiste em deixar os atores mal iluminados. Nas externas, não se tenta corrigir o excesso de exposição à luz. Vendo o filme, não consegui deixar de pensar que, nesse esforço para ser anti-glamour, Guédiguian se aproxima dos dinamarqueses do Dogma 95, os xiitas do anti-Hollywood, que baniram todo o tipo de iluminação artificial, qualquer efeito especial e toda a forma de mexer com a câmara a não ser com a mão.
Para resumir e finalizar: acho que se pode não gostar deste filme – mas é forçoso admitir que ele tem um estilo muito próprio. É, no mínimo, um filme respeitável.
Marie-Jo e seus Dois Amores/Marie-Jo et Ses Deux Amours
De Robert Guédiguian, França, 2002
Com Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Julie-Marie Parmentier
Roteiro Robert Guédiguian e Jean-Louis Milesi
Produção Agat Films. Estreou em São Paulo em 29/12/2002
Cor, 124 min
**1/2
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