3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: Um belo, bem feitíssimo, surpreendente filme. Ao descrever um dia na vida de um homem de 80 anos, muito doente, o diretor argentino Carlos Sorín faz uma obra minimalista, que tanto esconde quanto mostra, onde quase tudo não é dito.
Um exemplo para tentar deixar claro o que eu quis dizer na frase anterior: o filme não conta qual foi o problema de saúde de Antônio (Antonio Larreta), o personagem central. Ele está doente na cama de sua casa – uma grande casa de fazenda –, com um vidro de soro a seu lado. O médico o visita, tira sua pressão, faz um exame do fundo do olho, diz que ele precisa descansar; à fiel e antiga empregada, diz que preferiria que ele estivesse internado, num hospital. Alguém comenta que Antônio deu um susto a todos.
O espectador pode presumir que ele teve um ataque cardíaco – mas isso não é dito em momento algum.
Saberemos pouco da vida de Antônio. Sim, saberemos que ele é dono daquela fazenda, e a propriedade é bastante grande; mas terá ele vivido apenas da própria fazenda, para a própria fazenda? Não se fala. Saberemos que é um homem que leu muito, e que escreve, escreveu; chegou a ser considerado uma promessa, uma esperança literária – mas teve livros publicados? Não se fala. Saberemos que ele e seu filho Pablo (Jorge Díez), pianista agora famoso, vivendo na Europa, e que ao final daquele dia deve chegar à fazenda, brigaram, ficaram muitos anos sem se ver. Não se fala sobre o motivo da briga.
É um filme que silencia sobre muita coisa.
E é um filme com muitos períodos de silêncio, e com o mínimo de acontecimentos, de fatos – só os poucos fatos de um dia que poderia ser como qualquer outro.
Minimalista, o filme do diretor Sorín é feito de pequenos detalhes. A grande garrafa de champagne, comprada 40 anos atrás, que ainda tem no rótulo da letra da mulher de Antônio, já morta (há quanto tempo? Não se fala), que ele quer abrir quando o filho chegar. A dedicatória de Jorge Luis Borges num velho livro – em que o grande escritor diz que Antônio é uma promessa. A abelha que faz barulho batendo as asas na janela do quarto. A tranca do portão junto da horta, que é difícil de abrir. Os diversos pequenos problemas que o afinador encontra no velho piano alemão na sala.
A impressão é de que os atores não são atores, são aquelas pessoas mesmo
É impressionante como Sorín sabe escolher e dirigir seus atores. A sensação que se tem é de que eles não são atores, são na vida real aquilo que fazem no filme; não estão representando, estão sendo eles mesmos. Maria del Carmen Jiménez parece que é de fato a empregada Maria del Carmen; Emilse Roldán parece que é de fato Emilse, meio enfermeira, meio auxiliar de Maria del Carmen. Roberto Rovira – quem vai dizer que aquele sujeito é ator, e não um experiente afinador de piano? Não sei o que fazem na vida esses três, mas, segundo vejo no iMDB, os dois últimos não trabalharam em outros filmes; só Maria del Carmen Jimenez tem dois outros filmes no currículo, um deles com o próprio Sorín (Histórias Mínimas, de 2002).
Num elenco impressionamente perfeito, Antonio Larreta consegue se sobressair. Claro que em parte por ser o protagonista, estar na maioria das cenas, mas também porque sua atuação é de fato fenomenal – natural, absolutamente natural. A sensação que se tem é de um ator veterano, experiente. Pois não é. Larreta tem longa ligação com o cinema, mas como escritor; começou a escrever roteiros em 1975. Até dirigiu um filme, Nunca Estuve en Viena, de 1989, e, antes deste aqui, havia trabalhado em um único outro filme como ator, La Memoria de Blas Quadra.
Segundo a Wikipedia, Larreta, nascido em Montevidéu, em 1922, é “uma das mais talentosas personalidades do teatro uruguaio. Foi jornalista, roteirista de televisão e de cinema, diretor teatral, crítico de cinema e teatro, tradutor”.
Fantástico.
Outro ponto admirável do filme de Sorín é a trilha sonora, belíssima. É de autoria do filho do diretor, Nicolás Sorín.
Mas talvez o mais excepcional de todo este filme delicado e triste seja a fotografia, dirigida por Julián Apezteguia. É extraordinária a fotografia do filme. A iluminação acompanha o dia – o filme começa bem de manhãzinha, com uma luz suave; no meio do dia e do filme, as cores ficam arrebatadas, o sol é forte, o céu é de um azul claríssimo. Ao entardecer e no início da noite, estamos de fato em uma fazenda, longe de qualquer claridade de energia elétrica – as luzes são fracas, suaves, mal se distinguem os contornos dos móveis, dos objetos.
Não é um filme para todos os públicos. Quem gosta de muita ação deveria passar longe dele. É um belo filme. Mais um entre tantos belos filmes com que nos brindam los hermanos nestes últimos anos.
A Janela/La Ventana
De Carlos Sorín, Argentina-Espanha, 2008
Com Antonio Larreta, Maria del Carmen Jimémez, Emilse Roldán, Roberto Rovira, Jorge Díez, Carla Peterson
Roteiro Carlos Sorín, com a colaboração de Pedro Mairal
Fotografia Julián Apezteguia
Música Nicolás Sorin
Produção Guacamole Films, Wanda Visión. Estreou no Brasil 1°/5/2009.
Cor, 85 min
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Curiosamente, eu tinha visto Em busca da vida (chinês)e dia seguinte me caiu na mão La ventana. Em comum: a importância das coisas não ditas, o relevo dos arrependimentos implícitos.
Tratam de interpretações do passado por seus próprios personagens. Tristes, reais, melancolicamente humanos.