3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 2008: Muito estranho rever este filme uns 40 anos depois da primeira vez. É um filme que tem sua importância; tem a marca do talento de Vincente Minnelli, um visual extremamente bem cuidado, e uma seqüência final muito impressionante. É a mais pura expressão de sua época, dos costumes e modos do final dos anos 50, e do melodrama do cinemão americano do seu tempo.
Tem boas atuações no elenco cheio de nomes importantes na época. Frank Sinatra está bem, de novo no papel de um soldado, cinco anos depois de A Um Passo da Eternidade/From Here to Eternity, também baseado em livro do mesmo autor, James Jones. Dean Martin, saído havia pouco da dupla com Jerry Lewis, no primeiro dos muitos filmes que faria com o amigo Sinatra, no início do Rat Pack, como ficaria conhecida a turma do cantor-astro, está ótimo, bem à vontade num papel que parece ter sido feito para ele, um bêbado, jogador, gozador. E Shirley MacLaine, bem, a jovem Shirley MacLaine, apenas três anos depois de sua estréia na deliciosa comédia hitchcockiana O Terceiro Tiro/The Trouble With Harry, simplesmente rouba a cena, o filme. Não é a toa que, 40 anos depois, eu me lembrava bem do personagem dela.
Mas porém todavia contudo, o filme tem falhas feias, pesadas, fortes, embaraçosas. Parece que o livro de James Jones é uma trolha gigantesca, um Guerra e Paz, e os roteiristas foram obrigados a resumir passagens. O que acontece então é que há várias ocasiões em que os personagens surpreendem pela rapidez com que tomam decisões inesperadas – um único dia após conhecer Gwen (Martha Hyer), Dave Hirsh (Frank Sinatra) está profundamente apaixonado por ela, quer casar. Horas depois de flagrar o pai em atitude indecente, a jovem, pura e delicada Dawn (Betty Lou Keim) resolve sair se embebedando com o primeiro caixeiro-viajante que encontra pelo caminho – para citar apenas dois exemplos.
O personagem do cara de Chicago, Raymond (Steve Peck), é simplesmente incompreensível, absurdo, inverossímil – e, cacilda, numa produção tão cara e bem cuidada, não poderiam ter achado um coadjuvante melhor? Esse tal de Steve Peck é pior do que qualquer ator de quinta categoria da pior novela do SBT.
Bem, mas acho que botei um pouco o carro na frente dos bois. Vamos a um pouquinho da narrativa.
O filme começa com a câmara – um belíssimo CinemaScope, nos anos iniciais do formato de tela grande – colocada dentro de um ônibus interestadual; vemos um soldado dormindo esculachadão numa poltrona; o ônibus tem muitas cadeiras vazias. Pelas janelas, vamos vendo diversas paisagens, até que chegamos, ao fim da apresentação, os créditos iniciais, a uma pequena cidade do interior. O motorista acorda o soldado: “Ô soldado, estamos em Parkman. Me disseram para acordar você em Parkman”. O soldado – Dave Hirsh, saberemos logo em seguida, o papel de Frank Sinatra – acorda inteiramente desentendido, mas tentando não parecer desentendido. “Quem disse isso?”, pergunta ao motorista. E o outro responde: “Os amigos que puseram você no ônibus em Chicago.”
Dave Hirsh desce do ônibus com sua mochila de soldado e uma mala em Parkman, Indiana – uma pequena cidade do interiorzão bravo, interiorzão profundo, algo como Bom Jesus da Lapa, BA, ou Ipameri, GO. Neste momento, vemos pela primeira vez uma moça sentada numa outra poltrona do ônibus, que acorda naquela instante e desce do ônibus. É Ginna (Shirley MacLaine), um tipo que faz lembrar, e muito, a Cabíria de Giulietta Masina, que Fellini havia criado um ano antes em Noites de Cabíria/Le Notti di Cabiria. Um vestido barato, horroroso; uma bolsa em forma de cachorrinho de pelúcia; muita maquiagem, maquiagem pesada; cabelo preto visivelmente tingido de ruivo.
Ginna saúda Dave com uma suave reclamação, tipo, pô, Dave, você convida uma garota para viajar com você e já vai logo abandonando ela? Dave não tinha a mínima idéia de que tinha convidado alguém para vir com ele, assim como não tinha a mínima idéia de que viria para Parkman, Indiana. Tinha dito às pessoas com quem enchera a cara em Chicago que essa era a sua cidade natal, e os camaradas o enfiaram no ônibus.
Ele pede desculpas a Ginna, diz que foi um grande engano, me desculpa, toma aqui um dinheiro, tem ônibus de volta daqui a pouco. Deixa a moça no meio da rua e segue para um hotel, onde pede o melhor quarto e duas garrafas de uísque – qualquer um. Da bagagem, tira uma garrafa quase vazia, um monte de roupa suja, um livro de Steinbeck, um livro de Faulkner, vários outros livros, e um manuscrito amarfanhado.
Estamos com menos de dez minutos de um filme de quase duas horas e vinte minutos.
Sim, a clássica história do filho pródigo que volta à sua cidade natal. Já houve várias com esse tema básico. Doce Pássaro da Juventude/Sweet Bird of Youth, baseado em Tennessee Williams e dirigido por Richard Brooks, quatro anos depois deste filme aqui, para lembrar apenas de um. Mas são dezenas, talvez até centenas.
Com dez minutos de filme, já temos então que Dave Hirsh bebe demais, e é escritor. Em seguida veremos que seu irmão Frank (Arthur Kennedy, muito bom, na medida certa) é um dos homens mais ricos da cidade; tem uma joalheria e é um dos diretores de um dos dois bancos. Os dois não se viam havia 16 anos. Quando a mãe deles morreu, Frank, o mais velho, botou Dave num internato, de onde ele saiu assim que pôde para só voltar agora, a época em que se passa a ação.
Agnes, a mulher de Frank, tem ódio eterno pelo cunhado Dave, por ter se identificado com a personagem do primeiro dos dois romances que ele havia publicado – nele, Dave descreve a mulher do homem rico como uma bruaca mesquinha, imbecil.
O casamento de Frank com Agnes é uma coisa horrorosa, um suplício para os dois e para a filha adolescente Dawn – vivem em uma mansão gigantesca como se ela fosse uma jaula para animais perigosas.
Temos então que Minnelli conta a história como se estivesse dando um gigantesco zoom para trás: a partir da história de Dave, e depois de seu irmão Frank, o filme como que puxa a câmara para trás e mostra o quadro mais amplo, as pessoas, a sociedade daquela pequena cidade, onde tudo é pequeno, mesquinho, ganancioso, falso, reprimido, hipócrita, babaca.
A essa sociedade careta, conservadora, castradora, que vive de aparências, se contrapõe um mundo meio marginal, à parte, simbolizado por Bama, o jogador e beberrão interpretado por Dean Martin, que fica conhecendo Dave no dia em que ele chega a Parkman. Bama vive rodeado de mulheres, bêbados e jogadores. A ele se junta nossa Ginna, a triste putinha que seguiu Dave e resolveu não voltar para Chicago. Atrás dela, veio de Chicago o tal Larry, descrito como gângster, mas que parece um cachorro grande que ladra muito mas não morde. Larry está enfurecidamente (e incompreensivelmente) apaixonado por Ginna, que se apaixona a cada dia mais por Dave.
Ainda no primeiro dia da chegada de Dave à sua pobre, mesquinha cidade natal, ele conhecerá Gwen (Martha Hyer), a doce, suave, bela, inteligente professora de redação que admira os livros de seu conterrâneo filho pródigo. Coup de foudre, paixão à primeira vista. Um bom triângulo amoroso: escritor bêbado em crise que não consegue escrever mais, uma doce, suave, bela, inteligente professora de redação, e uma puta. Ou, para citar o título de um filme da época, Entre Deus e o Pecado.
Mestre do musical, Vincente Minnelli faz um drama sem canções de quase duas horas e meia com pouquíssimos close-ups. Seus planos são gerais, ou, na maioria, de conjunto – aquele que consegue captar um grupo de pessoas, vistas inteiras, dos pés às cabeças. Aqui e ali, surge um plano americano, aquele em que vemos meio corpo das pessoas, da cintura para cima, mas a predominância é dos planos de conjunto. Não é à toa. O diretor queria fazer o melhor uso possível da nova tela comprida, grande, o CinemaScope, a arma recente do cinema para enfrentar a competição com a TV; e o que ele está fazendo, mais que contar a história de Dave, sua família, seu triângulo amoroso, é uma descrição ampla de um tipo de sociedade, a cidadezinha pequena como um microcosmo da América que se enriquece e se brutaliza após a Grande Depressão e a Segunda Guerra.
E são planos longos. Não demoradamente longos, como os planos-seqüência de Hitchcock, ou, mais exagerados ainda, os de Brian De Palma. Mas são planos longos, adequados aos diálogos, em que as duas partes aparecem juntas, sem necessidade de cortes, de plano e contraplano. A câmara é calma, suave, tranqüila; não há travellings rápidos, zooms frenéticos.
Tudo isso muda inteiramente na longa seqüência final, toda em exteriores, Parkman à noite, transformada numa gigantesca feira, num imenso parque de diversões na comemoração do centenário de fundação da cidade. A música de Elmer Bernstein também muda, fica mais nervosa. Os planos agora são rápidos, feéricos, com cores superexpostas – vermelho fortíssimo, azul fortíssimo, todas as cores do arco-íris e muitas outras juntas e fortes e aceleradas no fechamento do drama.
É uma seqüência belíssima, impressionante.
Então, temos aquelas adversativas todas que eu coloquei lá em cima, falhas, fraquezas brutais. Mas porém todavia contudo este é um filme forte, importante, poderoso. Ainda hoje, cinco décadas depois.
***
Antes de rever o filme, anotei o que eu me lembrava dele: Sinatra faz um soldado que volta para sua cidade. Bebe muito; é um romancista frustrado. Shirley MacLaine faz uma puta que se apaixona por ele, mas não entende o que acontece com ele, suas angústias; não entende o que ele escreve, não entende o que quer dizer. Ele tinha uma antiga namorada na cidade, o papel de Martha Hyer, uma mulher rica.
Errei na coisa da Martha Hyer: Gwen não era antiga namorada. Mas o resto está lá. Um filme que deixa essa impressão forte na memória por 40 anos não é de se desprezar.
Deus Sabe Quanto Amei/Some Came Running
De Vincente Minnelli, EUA, 1958
Com Frank Sinatra, Shirley MacLaine, Dean Martin, Martha Hyer, Arthur Kennedy, Nancy Gates, Leora Dana, Betty Lou Keim, Larry Gates, Steve Peck
Roteiro John Patrick e Arthur Sheekman
Baseado na novela Some Came Running, de James Jones
Música Elmer Bernstein
Produção Sol S. Spiegel, Metro
Cor, 137 min
R, ***
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