[Rating:3]
Anotação em 1997: Um bom filme sobre violência que é violento mas é contra a violência, não bebe nela nem a alimenta. Ao contrário: a denuncia. O roteiro e a câmara – ao contrário do que normalmente se faz nesse tipo de filme no cinema americano – preservam o espectador dos detalhes mais sórdidos, mais chocantes. Em geral, a regra é mostrar em detalhe, se possível em câmara lenta e close up. Assim é o jogo. Peckinpah estabeleceu parte das regras; a onda veio crescente e firme nesse sentido.
Aqui é diferente. O ritmo é lento, pesado, para que os personagens e o espectador possam pensar sobre a violência. Aqui, a câmara evita a violência explícita.
Por exemplo: logo no início, quando o carro em que estão os três assaltantes frustrados atropela o policial, a câmara foge do momento do choque; mostra o rosto assustado do policial vendo o carro chegar, e corta para um close up da parte dianteira do carrro, com um barulho de pancada.
Outro exemplo é a primeira cena de realmente grande violência, quando o psicopata Law (William Fichtner) assassina Dino, o dono do bar onde os três vão parar fugindo da polícia depois que soa o alarme na tentativa de eles entrarem numa empresa para roubá-la. Dino se aproveita de um momento de distração dos assaltantes e pega o rifle. Law salta sobre ele e consegue desarmá-lo; a câmara mostra muito rapidamente que Law está batendo a cabeça de Dino contra o balcão do bar até matá-lo. Mostra muito rapidamente e se vira para outros lados do bar.
Depois, quase em câmara lenta, o filme mostra o personagem de Matt Dillon, Dova, o chefe do bando, chegando perto de onde Dino havia caído, e, de outro lado, a personagem de Faye Dunaway, garçonete do bar há dez anos, também chegando para ver. Quase câmara lenta em cima dos rostos de Dillon e de Dunaway, ambos chocados com a violência, com a morte, cada um por seus motivos, e a música é um lamento tocado por um violoncelo solitário. A garçonete está chocada com a morte do patrão, apavorada com o que está acontecendo, com ódio dos assaltantes que entraram em seu bar mas ao mesmo tempo contendo o ódio para se preservar, para salvar a sua própria pele; o fora da lei que se arrepende de ser fora da lei, e fica como um pêndulo entre o amigo psicopata e o irmão honesto e bom, está igualmente chocado com a forma como as coisas foram se encaminhando, depois que ele tentou apenas roubar, sem querer violência alguma.
É uma cena brilhante, que define o que o filme quer dizer, que define o estilo e o tom. Me fez lembrar de Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood, as cenas em que há assassinatos – cenas longas, demoradas, angustiantes, densas, pesadas. Para lembrar o espectador de que a morte, cada morte, é uma coisa imensa, gigantesca, não é uma coisa banal, como os filmes normais de “ação” querem fazer crer.
Há um terceiro exemplo de que a câmara, quase envergonhada, poupa o espectador da explicitude que o cinema americano passou a perseguir cada vez mais, a partir do final dos anos 60. É a seqüência em o personagem de Gary Sinise, o que não é bandido, e entrou relutante na história, apenas por insistência do irmão, Dova, decide se matar. Há um big close up de suas mãos abrindo um canivete. O espectador percebe que ele decidiu se matar, e vai cortar os pulsos; do meu lado, Marynha quis fechar os olhos, e me pediu pra avisar quando a cena tivesse acabado. Eu disse que não precisava, que o filme não ia mostrar o canivete cortando a veia do pulso. Não deu outra: depois do big close up, a câmara mostra Gary Sinise em plano americano; o pulso está fora do quadro. Não há necessidade de mostrar o momento do corte, como se fosse um documentário de medicina legal. E a câmara não mostra.
Este é um filme que se alinha com Os Imperdoáveis. É um filme contra o cinema da violência.
A sinopse da caixa do vídeo respeita o espectador. A chamada na capa é perfeita: “Um assalto frustrado, cinco reféns confinados e três agentes federais mortos. Isso é apenas o começo!” Tudo isso acontece nos cinco primeiros minutos. O texto na contracapa também não adianta a história, não revela mais do precisa. Só diz o que o espectador já ficou sabendo desde o início: o FBI está atrás de um comerciante ilegal de armas, e confunde o trio de ladrões pés de chinelo com ele.
O bar onde se passa 95% da ação é metalinguagem pura, auto-referência ao cinema. Fica num subsolo. O próprio dono, Dino, diz logo no começo do filme, pouco depois que o trio invade o bar na hora em que ele estava fechando, 4 da manhã, que aquele bar havia sido construído no porão durante a Lei Seca, nos anos 20 – a Lei Seca calhorda e imbecil que fez a Máfia prosperar, como tão bem nos mostrou mestre Sérgio Leone em Era uma Vez na América. O bar foi mantido exatamente como era na época da Prohibition, a Lei Seca. Sempre visíveis estão dois cartazes de filmes policiais dos anos 30, um com Humphrey Bogart, cujo nome não consegui entender, e outro com James Cagney, G Men.
Um bom filme.
Faltou dizer que este foi o primeiro filme dirigido por Kevin Spacey, esse ator extraordinário, um dos melhores de sua geração (ele é de 1959). Depois desse, ele dirigiria só mais um – Beyond the Sea, de 2004, a cinebiografia do ator e cantor Bobby Darin, em que ele mesmo faz o papel central.
Ciladas da Sorte/Albino Alligator
De Kevin Spacey, EUA, 1996.
Com Matt Dillon, Gary Sinise, Faye Dunaway, Joe Mantegna, William Fichtner, Skeet Ulrich, Viggo Mortensen, John Spencer
Roteiro Christian Forte
Música Michael Brook
Cor, 97 min.
Um comentário para “Ciladas da Sorte / Albino Alligator”