3.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1996, com acréscimos em 2008: Acabamos meia hora atrás de ver, pela primeira vez, Um Mundo Perfeito, o primeiro filme de Clint Eastwood depois de Os Imperdoáveis. Que brilhantíssimo artista é esse cara. Que trajetória mais extremamente pessoal que ele carrega nas obras dele na maturidade. Que figura mais estranhamente multifacetada, que coisa mais difícil de se rotular, que enigma dentro do esquemão das grandes corporações.
Ainda neste fim de semana, comentei com uma amiga que queria ver As Pontes de Madison, o último filme de Clint, e ela disse que achava que os filmes dirigidos por ele são lentos demais. Essa amiga é uma pessoa extremamente sensível, e mesmo assim acha que os filmes dele são lentos demais. Imagine quem é povão, quem não, como diria minha mãe, lisou banco de escola. Imagine quem é povão e espera que ele seja como diretor mais ou menos como foi como ator nos western spaghetti de Sergio Leone e nos policiais do Don Siegel, tipo Dirty Harry.
Quero ver logo As Pontes de Madison, o filme que ele fez depois A Perfect World. Seguramente a coerência toda – absolutamente incoerente para o povão – vai estar toda lá.
Em A Perfect World, assim como ele havia feito em Os Imperdoáveis, Clint Eastwood, o cara que ajudou a formar o padrão dos filmes violentos, vai fundo contra a violência, usando um meio que só dá muita grana se for violento. Mais ainda: vai fundo na dor de quem errou, foi violento e sofre com a violência. Vai fundo na dor do bandido, do marginal, do outcast, do desajustado. Cada vez que um bandido entre aspas sofre, nos filmes da maturidade de Clint Eastwood, ele sofre longamente, magnanimemente, irritantemente.
É como se ele estivesse. a cada momento, se penitenciando por ter, de alguma forma, participado da construção do cinema como culto à violência. Se purgando dos pecados. Examinando as culpas. Tentando ver o outro lado.
Em Os Imperdoáveis, as mortes dos “bandidos” são arrastadas, dolorosas, pesadas. O mesmo esquema ele consegue em A Perfect World.
Como se a ele coubesse pedir perdão por cada cena de bandido morto que o cinema filmou. Como se ele tivesse que purgar cada cena de três segundos em que um bonzinnho mata um mauzinho.
Em 95% dos filmes do cinema americano pós-Bonnie & Clyde, pós-Dirty Harry, pós-Sérgio Leone, pós-Don Siegel, os bandidos são assassinados em menos de um segundo.
Depois de ter feito sua homenagem a Sérgio Leone e Don Siegel, em Os Imperdoáveis, Clint Eastwood prossegue no caminho que escolheu. Cada morte leva longos, intermináveis minutos.
Depois de ter banalizado o assassinato, o Clint Eastwood maduro vai no sentido inverso, rema na maré oposta. De posse de um bando de Oscars, de posse de um nome diante do público, ele usa a bagagem toda dele pra remar contra a maré: tenta mostrar, até mesmo para quem não está entendendo nada, que cada porra de merda de vida humana é preciosa pra caralho, embora há cem anos o cinema tente banalizar os assassinatos.
Clint Eastwood tem tentado mostrar que a morte é um sacramento. Uma coisa sacra. Uma coisa absurda.
Em cem anos de cinema, possivelmente morreram mais índios e bandidos brancos na tela do que pessoas em todas as guerras dos últimos cem anos. O tiro fatal se banalizou. Virou coisa tão corriqueira quanto o pulmão da gente exigir o ar não sei quantas vezes por minuto. Tão normal quanto se dizer bom dia.
Depois vieram as HQ, os cartoons de TV, os videogames. Mas o cinema abriu o caminho – e com a ajuda de Clint Eastwood, nos western spaghetti e nos policiais. É isso, é exatamente isso: o tiro fatal virou tão normal quanto se dizer bom dia. Em cada velho bangue-bangue, morriam 50 índios. Em cada novo Schwarzenegger morrem 50 bandidos. Cada morte não dura mais do que um segundo, uma fração de segundo.
Maduro, Clint Eastwood usa sua marca e o crédito que a indústria lhe dá pra remar contra a maré, e mostrar que cada assassinato é uma coisa tremenda, infinita, lerda, lenta, pesada, séria, diabólica, divina.
Acho que Clint Eastwood é o melhor personagem que poderia sonhar Lawrance Kasdan, o cineasta believer cujas criaturas tentam não se tornar cínicos num mundo cada vez mais desumano.
Em A Perfect World ele pinta pesado em cima da falta de pai. Tintas grossas, às vezes até grosseiras. É até simplista e portanto até meio bobo, nesta fixação freudiana. Tudo se explica pela falta do pai, tudo faz o encontro do pequeno ladrão que vira grande bandido com o menino apavorado e carente existir pela carência da figura paterna. É simplista. Mas o fato é que ele está tentando colocar a discussão nos termos certos.
(Aliás, a relação pai-filho é uma constante na obra do Eastwood maduro. Ele voltaria a ela, com insistência, por exemplo, em Poder Absoluto, de 1997, e também em Menina de Ouro, de 2004.)
Me lembrei, vendo pela primeira vez este filme que quero ver outras vezes, de um lead que fiz há poucas semanas para o que poderia ser um artigo talvez a se tentar publicar em jornal como tentativa de dar alguma contribuição à sociedade. Vamos a ver como era mesmo:
Os dogmas religiosos e a biologia que me perdoem, mas a lógica humana indica que Deus (ou a natureza, para quem não acredita em Deus) errou profundamente. Nenhum homem ou mulher deveria ter a capacidade de ser pai ou mãe – até prova em contrário. Ser pai ou mãe não deveria ser uma obrigação decorrente da biologia, deveria ser uma opção. Mais ainda: para permitir que alguém decidisse ser pai ou mãe deveria haver alguma espécie de vestibular. Só poderia ter filhos quem passasse em concurso. Concurso sério, com prova de títulos e de conhecimento, e com banca examinadora exigente.
Está correto. Está correto.
Penso então nas pessoas que conheci de alguma maneira na vida, que tiveram filhos problemáticos. Me lembro de repente de Derci Cezar entoando loas às mulheres que preferiram não ter filhos, como ela própria. “Não tive filhos, não deixei para ninguém o legado da minha miséria”, disse Machado – e viva as mulheres, como Derci e Mary, que resolveram não ter filhos.
Estou mudando de assunto, embora o assunto seja o mesmo.
Clint Eastwood talvez tenha pecado por simplificar as coisas, com a grande alma que ele tem. Wim Wenders talvez tenha exagerado também a importância do pai e da mãe em Paris, Texas.
Mantenho o mesmo discurso de sempre, a mesma fé de sempre: filho dá certo ou errado por pura loteria – mas pai e mãe têm nada menos que a obrigação de tentar fazer tudo certo. E quem não estiver disposto a isso, que não se habilite.
Grande Clint Eastwood. Enorme, monstruoso. Ele sabe a direção certa, mesmo que pegue algum atalho mal ajambrado. Cada vida humana é importante, ao contrário do que querem nos fazer crer os videogames, as HQs, a TV, os Stallone e os Schwarzenegger da vida.
Pena que a maioria não compreenda.
Um Mundo Perfeito/A Perfect World
De Clint Eastwood, EUA, 1993.
Com Kevin Costner, Clint Eastwood, Laura Dern,
Roteiro John Lee Hancock
Música Lennie Niehaus
Cor, 138 min
Compactuo da sua opinião, realmente vivemos uma banalização da vida, um desvalor do ser humano, um desvalor que atinge a todos nós muito diretamente. Quanto ao Clint Eastwood, ele é um gênio, o maior cineasta do mundo. A disposição dele aos 78 anos, a sensibilidade, ele é simplesmente magnífico! Espero que façam um filme sobre a vida dele, afinal a sua vida amorosa foi bastante tumultuada, mas isto não é nada para quem sobreviveu até a uma queda de avião!!!
Adoro ler que o que o Amigo Sérgio escreve. Estou totalmente de acordo consigo, as suas observações são excelentes.
O Clint Eastwood é, para mim, o realizador americano de quem espero mais e gostaria muito que tivesse vida e saúde para nos brindar com mais algumas obras.
Quanto a “Um Mundo Perfeito” acho-o mesmo um dos meus favoritos e, curiosamente, os meus amigos não o conhecem!
Imperdoável!
Li este texto duas vezes e, gostei demais da parte final, quando dizes do lead que fizeste
e, onde diz que “nenhum homem ou mulher devería ter a capacidade de ser pai ou mãe, não devería ser obrigação e, sim opção. Só podería ter filhos,os aprovados em concursos.
Minha mulher,também não quiz ter filhos, por convicão e certeza,que sería o melhor.Ela sempre teve essa certeza que não tería gabarito para ser “Mãe”.Então, melhor não ser.
Eu, por não ter a filha, do primeiro. E, depois quando completas, dizendo que filho, dá certo ou errado mas pai e mãe têm a obrigação de fazer tudo certo,e quem não concordar, não os tenha,
Este é mais um filme com a mão,o talento,a genialidade de Eastwood.Um filmemaravilhoso.
Confesso que no final, não pude conter algumas lágrimas que me vieram aos olhos.
Aquele menino me emocionou.
Concordo com a Jaqueline, tbm acho que devería ser feito um filme sôbre a vida do Clint e, melhor, enquanto ele está vivo. E, concordo tbm com o José Luis, quero muito que o Clint, tenha ainda vida e saúde para nos brindar com outras obras.
Assiste este filme no último final de semana, e que grata surpresa. Curti demais mais esta obra do Clint. Curti a construção da relação dos dois protagonistas durante o filme e, até achei um pequeno plow twist no final. Em relação ao teu texto, achei muito preciso sobre a discussão de qualquer morte importa. Enfim, um ótimo fimel.