4.0 out of 5.0 stars
Anotação em 1996: Lindo, emocionante, brilhante, inteligente, bem feito, com tudo da parte técnica absolutamente perfeito. Uma obra-prima, um tour-de-force, uma imensa beleza. Tudo bem, Lelouch é um dos meus cineastas preferidos, é um cineasta do meu coração, e sento numa poltrona de cinema diante de um filme dele não para julgar, mas para me entregar à beleza e à emoção.
Mas é impressionante como ele é coerente dentro da obra dele. É impressionante como a obra dele é singular, única – e é quase tão impressionante quanto isso o fato de a crítica, worldwide, o massacrar, às vezes sem ver, como foi o caso do Estadão.
Eu realmente consegui entender a obra do Lelouch e colocar os pontos básicos no texto que fiz para a Afinal, em 1987, acho. Ele sabe que ele, ao contrário dos cineastas franceses da sua geração – todos: Truffaut, Godard, Malle, etc -, não partiu da literatura. Ele partiu da imagem, da cena em movimento, do tal do grego kinema, movimento. Como eu disse na tal matéria: em 1966, em Um Homem, Uma Mulher, ele era um fiapo de história com uma profusão de imagens maravilhosas.
Ele partiu da imagem e, só depois de dominar a imagem, só depois de ter sido o próprio camaraman dos seus filmes, partiu para a história contada através de imagem – o que o torna realmente um cineasta diferente de todos os grandes do pós-guerra até hoje, talvez com a única exceção de Woody Allen e seu mestre Ingmar Bergman, que são os autores de argumentos, diálogos, roteiro, tudo junto. Todos os demais partiram de alguma forma de obras literárias. Lelouch, não, ele realmente partiu do domínio da imagem para depois contar histórias.
Que eu me lembre, este é o primeiro filme dele baseado em um texto literário. E aí ele escolhe justamente um dos maiores monumentos da literatura francesa. Mas o que faz é extremamente pessoal, nunca uma transposição para o cinema do grande clássico de Victor Hugo, mas um emaranhado de histórias a partir da história original de Victor Hugo. Depois que se convenceu de que dominava a imagem e passou também para as histórias, ele adora um emaranhado de histórias, como Retratos da Vida/Les Uns et les Autres, um painel do século com histórias nos Estados Unidos, na França, na Rússia, desde a invenção do cinema até os dias de hoje. Em Toda uma Vida/Toute une Vie ele fez também um painel do século para contar a história de dois amantes que só vão se conhecer na cena final, coisa de gênio, de brilho, que o Kieslowski copiaria no seu filme que acho o mais brilhante, o definitivo, A Fraternidade é Vermelha/Trois Couleurs: Rouge.
No Un Homme et une Femme 20 ans déjà!, com ponto de exclamação no título, ele mistura quatro ou cinco histórias diferentes pra contar o reencontro do casal do fiapo de história dos tempos em que ele ainda se preocupava só com a câmara.
Neste Os Miseráveis ele fez melhor do que o grande Milos Forman quis fazer em Ragtime e Bertolucci em Novecento. Ele fez o grande painel do século, ao mesmo tempo coerente com seu histórico e com sua paixão pela certeza de que existem só duas ou três histórias na vida – frase que é dita três vezes no filme – e com uma clara transposição da frase que ele disse pra mim e prum babaca da Folha numa entrevista no Maksoud, em 1987, a respeito da generosidade. Ele usa Victor Hugo como escada pra repetir que a humanidade se divide entre os que têm generosidade e os que não têm, e as pessoas seguem tipos, e todas as pessoas se parecem com pessoas que nós conhecemos bem no nosso dia-a-dia, os maus, os bons, os não generosos e os generosos, os greedy e os não greedy, os que passaram de um lado para outro em algum momento da vida e os que ficaram sempre de um lado só. Só existem duas ou três histórias na vida.
E aí, bebendo na fonte de um dos romances mais respeitados da história da humanidade, mas tendo vindo da imagem, e não da literatura, ele mostra a maravilhosa surpresa do analfabeto ao “ler” um livro através da audição da leitura feita por outro (lembrar Truffaut recontando Ray Bradbury em Farenheit 451, o velhinho moribundo recitando Charles Dickens para o neto que vai recontá-la naquela ditadura que proíbe os livros e a palavra escrita), e mais ainda, usa as imagens de duas grandes filmagens anteriores de Os Miseráveis, e as mistura na sua narrativa. (O Cinéguide registra 13 versões do livro.)
Usa – como fez sua personagem de 20 Anos Depois, a Anouk Aimée amadurecida e mais bela do que quando jovem, agora diretora de grandes produções que a crítica malha – 30 figurantes em cada pequena cena, em um espetáculo de quase três horas de duração. Faz uma superprodução nos moldes de O Mais Longo dos Dias/The Longest Day para mostrar a invasão aliada da Normandia em cinco minutos de filme. Reúne extras spielberguianos pra mostrar em um minuto de filme a ida dos judeus para os campos de concentração no Leste Europeu. Usa recursos de Alain Resnais – mistura de imagens mas principalmente de sons do futuro, do passado, do presente – para acentuar a importância de um momento específico, um baile na corte nazista em Paris onde se oferecem judias para os oficiais alemães que voltam do front russo. Junta quatro compositores para criar a trilha sonora, brilhante, fortíssima, de resto bem tratada num filme que se fosse americano seria certo candidato ao Oscar de Efeitos Sonoros.
Mas, sobretudo, mantém a coerência de falar de duas ou três histórias que se repetem, de insistir em que a vida é feita de desencontros, encontros, desencontros, novos encontros, reencontros – a vida é lelouchianamente feita de encontros, reencontros e desencontros.
É preciso registrar algo sobre a crítica. A crítica que não toque na poesia, disse o Caetano. Em algum momento da história, a crítica rotulou Lelouch de vazio, visualmente pretencioso, ralo, melodramático, babaca. E aí, num efeito multiplicador impressionante, todos os críticos e todos os focas a quem foi dado espaço para escrever sobre cinema passaram a dizer que Lelouch é vazio, etc, etc, etc.
O filme estreou em São Paulo na sexta-feira, dia 26 de abril (de 1996). Nesse dia, o Caderno 2 deu meia página com uma matéria de apresentação das estréias, e uma página inteira com textos sobre quatro dos filmes que haviam estreado. A única menção ao filme de Lelouch é feita na matéria de apresentação das estréias: um parágrafo, dizendo que ele filma como Richard Clayderman toca piano, e deixando mais do que implícito que o autor não havia visto o filme.
No mínimo esquisito, se se considerar apenas um dado, nada subjetivo, já que eu sou absolutamente subjetivo quando se trata de Lelouch: um filme dele jovem, Um Homem, Uma Mulher, além da Palma de Ouro em Cannes e Oscar, ficou mais de um ano em cartaz em São Paulo, e um filme dele mais velho, Retratos da Vida, repetiu o feito, não muito tempo atrás.
Só nas últimas três ou quatro décadas a crítica inglesa reviu o que dizia sobre Dickens, e passou a considerá-lo um grande autor. Isso consola. Consola também o fato de que daqui a 2000 anos a obra desse cara constará da história. E o nome dos critiquinhos será menos que poeira do cocô da pulga do cavalo do bandido.
Os Miseráveis/Les Misérables
De Claude Lelouch, França, 1995.
Com Jean-Paul Belmondo, Jean Marais, Annie Girardot,
Roteiro Claude Lelouch, adaptação absolutamente livre do romance de Victor Hugo.
Música Francis Lai, Michel Legrand e outros
Cor, 175 min
Este filme é sem dúvida alguma uma obra prima, algo que realmente extraploa, se tivesse uma nota acima de 10, levaria com toda a certeza..
Este filme é magnifique!
Fantástico, seus filmes são como uma viagem de sonhos, impecáveis , trilha sonora e fotografia da mais alta qualidade.