Minha Secretária / Nélly et Monsieur Arnaud


Nota: ★★★☆

Anotação em 1996: Acerta na mosca o Jean Tulard no Dicionário de Cinema dele quando diz que os filmes de Sautet, sempre interpretados pela mesma equipe de atores (Michel Piccoli, Yves Montand, Romy Schneider), sempre com música de Philippe Sarde, se fixam nos meios abastados da capital francesa e pegam os mesmos personagens, “suas dores do coração e suas dificuldades financeiras”. Eu diria, aproveitando o título de um dos filmes dele, o de 1969, que o Sautet é o cineasta francês das coisas da vida; as coisas básicas e simples e no entanto tão complicadas da vida e do afeto.

Estão todas lá, neste filme terno, sensível, ao mesmo tempo profundo e elegantemente leve: o casamento de cinco anos que já não satisfaz mais a um dos dois; a pequena mentira contada para testar o companheiro; a decisão de acabar; mais tarde o espanto por rever o ex-marido e perceber que ele já parece distante, uma outra pessoa; o alívio e no fundo talvez até a leve decepção ao perceber que o ex-marido teve uma intoxicação acidental, e não uma tentativa de suicídio; a capacidade do ex-marido abandonado de recomeçar a vida, voltar a ter trabalho e encontrar uma nova namorada; o suave prazer de jantar em um restaurante mais elegante do que permitiria nossa conta bancária; o tateante começo de uma nova relação; a ponta de paixão que o amigo do ex-marido ainda tem pela mulher; o ciúme que a amiga tem quando o marido dela a trai com a ex-esposa; a relação de amizade que ficou depois de um namoro antigo; a diferença de timing e de intensidade de paixão que surge na hora em que um dos namorados propõe morarem os dois na mesma casa; a reação de fechamento, crispação, e a decisão de romper com tudo que o namorado tem quando a namorada diz que não quer que os dois vivam juntos; a voz da pessoa amada na secretária eletrônica, a dúvida se se atende ou não e a decisão, enfim, de não responder.          Está tudo lá: a vida o encontro o amor depois o desencontro a morte, tudo o que compõe a vida afetiva de todas as pessoas simples – com a exceção de que no caso o que há é uma mulher extraordináriamente bela e um homem extraordinariamente rico e vivido.

Na verdade, o filme é sobre o encontro dessas duas pessoas que possuem esses dons extraordinários (ela a beleza, ele a riqueza), sobre a relação que se desenvolve entre eles – um encontro de amor que não chega a se concretizar porque é impossível, como tantos encontros de amor impossíveis que há na vida.

Emanuelle Béart é a Nélly do título original, uma jovem e belíssima mulher, com boa formação escolar e profissional porém desempregada no momento, e Michel Serrault é o Monsieur Arnaud do título original, um homem idoso (não velho, mas idoso, segundo ela define para o marido assim que o conhece), que foi magistrado e abandonou a carreira por achar que ela era vazia e inútil, tornou-se em seguida um muito bem sucedido homem de negócios e agora vive dos bens que acumulou, escrevendo sem pressa um livro autobiográfico sobre sua passagem, quando muito jovem, pela Polinésia Francesa.

(E aqui cabe lembrar que Sautet é fiel ao seu tema básico até mesmo nos títulos dos filmes. Muitos dos títulos são os nomes dos personagens. Pequenas histórias de vidas. César et Rosalie (de 1972). Vicent, François, Paul… et les autres (de 1974). Mado (de 1976). Agora, Nélly et Monsieur Arnaud.)

Ele abre para ela um mundo desconhecido – o mundo de quem viveu muito e acumulou muito dinheiro, muita experiência e alguma sabedoria, até: ela abre para ele de novo o mundo da juventude e da beleza irresistível. É lindíssima a cena em que ele a observa dormindo, os ombros nus aparecendo, e passa a mão por cima do rosto dela, dos cabelos e dos ombros, como se a estivesse acariciando, mas na verdade de longe, sem tocá-la. Ela abre os olhos, pergunta se ele não tem sono, ele diz que não, e que vai sair; ela pede que ele não saia e segura sua mão, enquanto adormece de novo.

Interessante é notar que não há, em nenhum momento, arroubo, arrebatamento, paixão fulminante, explosões, soltar sensações. Tudo é contido, severo, austero, quase glacial, quase sueco. Até os momentos que beiram o arroubo: Jacqueline, amiga de Nélly, sobe um pouquinho, mas um pouquinho só a voz, ao dizer que o marido contou a traição com a própria ex-mulher dando-lhe brincos de presente, “estes brincos”; Vincent, o editor que ela namora, dá um pequeno, mas bem pequeno, tapa na mesa, quando ela diz com suavidade que não quer morar junto, mas que nada muda no namoro.

O personagem de Nélly, especialmente, é um coração no inverno, pra citar o título de outro filme do diretor Sautet com essa atriz especialmente linda. Ela não demonstra emoção ao comunicar ao marido que quer se separar; nem quando começa a namorar de novo; nem mesmo com o fim do novo namoro. Só demonstra uma pequena tristeza – na verdade mais mesclada de estupefação, surpresa – ao saber que Monsieur Arnaud vai trocar a convivência com ela, o pequeno grande nada que os une, por uma viagem ao redor do mundo com a ex-mulher, 30 anos depois do fim do casamento.

Dois diálogos que mostram a simplicidade e, quase paradoxalmente, a profundidade com que Sautet constrói seus personagens:

Ela vai começar a digitar as memórias dele em um computador. Ele é um ser pré-informática. Ela: “É como uma máquina de escrever, com memória”. Ele: “É isso que é impressionante – com memória, mas sem lembranças”.

Ele, depois que ela diz ao namorado que não quer que os dois morem junto, e ela vai até ele à procura de ombro e ouvidos amigos: “Não sei bem o que dizer. Queremos amor, mas acabamos nos fechando. Temos medo”.

Minha Secretária/Nélly et Monsieur Arnaud

De Claude Sautet, França-Itália-Alemanha, 1995.

Com Emanuelle Béart, Michel Serrault, Jean-Hugues Anglade, Michael Lonsdale

Roteiro e diálogos Claude Sautet e Jacques Fieschi, com colaboração de Yves Ullmann.

Música Philippe Sarde

Cor, 106 min.

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