3.5 out of 5.0 stars
Texto publicado na revista Afinal de 24 de março de 1987: Poderia perfeitamente passar na TV às 6 da tarde, o horário das novelas ingênuas e adocicadas para velhinhas e crianças. As senhoras de Santana e a afiada tesoura da velhíssima censura não teriam nada a opor. É tudo absolutamente recatado, dentro dos mais rígidos padrões da moral e dos bons costumes.
Isso talvez custe a Uma Janela para o Amor/A Room With a View (que estréia nesta quinta, 26 de março de 1987, em São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba e Brasília) algum desprezo, alguns narizes torcidos, nesta época de cenas explícitas. Isso talvez embace um pouco, para alguns espectadores, o que o filme – concorrendo a oito Oscars, o maior número de indicações deste ano, ao lado de Platoon – tem a oferecer, que é exatamente um convite à insubordinação aos padrões rígidos da moral e dos bons costumes, e, mais ainda, a certeza de que é necessário ir contra eles para se conseguir a realização pessoal.
Lucy Honeychurch, a heroína (Helena Bonham Carter, em seu segundo filme), é uma rica e bem-educada jovem inglesa do começo do século XX, quando mal se saía da era vitoriana, um dos períodos mais repressivos da civilização; Lucy tem quase tudo para se transformar em uma espécie de Adele Quested, a trágica personagem de Passagem para a Índia, outro romance do inglês Edward Morgan Forster (1879-1970) transposto, nestes anos 80, para o cinema: uma mulher travada, crispada, inexperiente, fruto de uma moral repressora, e que, num momento de histeria, é capaz de acusar de estuprador um aturdido jovem indiano que jamais ousaria tocar nela. Passagem para a Índia foi escrito em 1924; E.M. Forster escreveu A Room with a View, seu terceiro romance, ainda em 1908, quando tinha 29 anos de idade; era mais jovem, e talvez por isso mais otimista. Ao contrário de Adele Quested, sua Lucy Honeychurch tem forças para escapar da tragédia.
Recato x Beethoven
Ao piano da salas de estar da pensão onde se hospeda em Florença, com a prima mais velha e mais pobre Charlote Bartlett (Maggie Smith, esplêndida mais uma vez, candidata ao Oscar de atriz coadjuvante), Lucy toca Beethoven, com um arrabatamento e uma paixão que não demonstra em nenhuma outra ocasião, como bem observa o simpático reverendo Beebe (Simon Callow). De fato, só ao piano, tocando Beethoven, a recatada jovenzinha inglesa de boa estirpe solta as travas que aprisionam seus sentimentos e suas sensações, o restante do tempo encobertos sob a camada espessa da educação e dos bons modos.
Essa camada espessa faz Lucy encobrir de si mesma a perturbação trazida por George Emerson (Julian Sands, que fez o jovem fotógrafo de Gritos do Silêncio), um rapaz que ela conhece na mesma pensão em que se hospeda em Florença. George e seu pai (interpretado por Denholm Elliott, candidato ao Oscar de ator coadjuvante) são os personagens que recebem toda a simpatia do autor Forster, ele próprio um crítico severo do que restava do vitorianismo na sociedade inglesa e um opositor das regras rígidas de comportamento social; o velho senhor Emerson, jornalista aposentado, era o que se chamava na época de livre pensador, um homem inteligente, sensível, pouco dado às regras e convenções sociais, e que transmitiu ao filho um saudável amor pela vida e pelas paixões. Durante um piquenique nos arredores de Florença, George agarra Lucy e a beija.
Tal desaforo apressa o retorno da reprimidíssima e pudica Charlotte e de Lucy à Inglaterra, onde mais do que depressa a moça aceita o pedido de casamento feito por Cecil Vyse (Daniel Day Lewis), um empertigado, solene, formalíssimo imbecil cheio de pretensões intelectualóides e absolutamente incapaz de expressar sentimentos – coisa que, na verdade, não tem. E está armado o quadro para que a jovem Lucy Honeychurch seja infeliz para sempre, amordaçando definitivamente o seu lado paixão em nome do bom tom de uma sociedade hipócrita. A mordaça acabará sendo rasgada a tempo; o final feliz, digno de uma novela das 6, aponta, no entanto, no sentido da esperança. Quando se tem a coragem de remar contra a corrente, como Lucy Honeychurch tem, enfim, é possível ser feliz – e, além disso, fazer avançar os modos e os costumes da sociedade.
Delicadeza
É possível que filme terno e delicado como Uma Janela para o Amor, que rema contra a corrente dos indicados para o Oscar deste ano (1987) – filmes de temas fortes, densos, cruéis, como Platoon ou A Missão – acabe com poucos prêmios. Não será novidade para o diretor James Ivory, já várias vezes convidado para mostrar seus filmes em Cannes mas jamais premiado. Ivory, autor de Bostonians e Verão Vermelho, recentemente exibidos no Brasil, tem sólida experiência em transpor para o cinema textos literários mantendo-se absolutamente fiel ao autor. É o que consegue com Uma Janela para o Amor, seu melhor filme até hoje, segundo a critica da Inglaterra e dos Estados Unidos. Poderia perfeitamente passar na novela das 6, sim. Mas é, apesar disso, ou talvez por isso, um belo filme.
Um complemento em 2009
Como se pode ver, o texto acima foi escrito antes da entrega dos Oscars de 1987, para os filmes lançados nos Estados Unidos ao longo de 1986. Das oito indicações que recebeu, Uma Janela para o Amor levou três prêmios – roteiro adaptado, direção de arte e figurinos. Perdeu nas categorias de melhor filme, diretor, fotografia, atriz coadjuvante e ator coadjuvante. Os prêmios de melhor filme e melhor direção foram para Platoon e Oliver Stone.
O diretor James Ivory teria depois dois grandes sucessos, com Retorno a Howards End/Howards End, de 1992, e Vestígios do Dia/The Remains of the Day, de 1993 – dois filmes extraordinários, no meio de uma filmografia cheia de ótimas obras.
Gostaria de acrescentar, agora, que Uma Janela para o Amor foi um dos primeiros filmes da carreira de um ator absolutamente brilhante, Daniel Day Lewis (o segundo da esquerda para a direita na foto acima). Entre 1980 e 1984 ele trabalhou mais em episódios e filmes para a TV inglesa do que no cinema. Em 1985, fez o papel secundário de Cecil Vyse neste filme de James Ivory e também um dos papéis principais em Minha Bela Lavanderia/My Beautiful Laundrette, de Stephen Frears. No primeiro, é um rico fresco do início do século XX; no segundo, é um líder de gangue de rua na Londres dos anos 1980. Roger Ebert, um crítico atento, cuidadoso, escreveu, ao falar de My Beautiful Laundrette: “O personagem de Johnny pode fazer você piscar, se você já tiver visto o maravilhoso A Room with a View; ele é interpretado por Daniel Day-Lewis, o mesmo ator que naquele filme faz Cecil, o noivo afetado da heroína. Ver essas duas atuações é uma afirmação do milagre de que atores são capazes. Que um mesmo homem tenha interpretado esses dois opostos é espantoso.”
De fato, o talento de Daniel Day-Lewis é espantoso, como ele provou e comprovou nos anos seguintes. Só dá para queixar que ele poderia trabalhar mais; é um sujeito cuidadoso demais na escolha de papéis; entre O Lutador, belo filme de Jim Sheridan sobre os conflitos na Irlanda, de 1997, e Gangues de Nova York, de Scorsese, de 2002, por exemplo, recusou-se a trabalhar. De 2000 a 2009, fez apenas quatro filmes.
Um comentário absolutamente pessoal: foi estranho reler, depois de mais de 20 anos, um texto escrito para publicação, e portanto muito mais formal do que os que eu escrevia para mim mesmo, e dos que ao longo do último ano e meio escrevo ainda basicamente para mim, mas também para publicar no site. Tinha meio que perdido esse texto, e o achei por acaso, ao mexer em velhos trabalhos para colocar no site 50 anos de Textos. Devo confessar que gostei de ler o que escrevi.
Uma Janela para o Amor/A Room with a View
De James Ivory, Inglaterra, 1985
Com Helena Bonham Carter, Maggie Smith, Denholm Elliott, Julian Sands, Simon Callow, Judi Dench, Daniel Day-Lewis
Roteiro Ruth Prawer Jhabvala
Fotografia Tony Pierce-Roberts
Baseado no romance de E.M.Forster
Música Richard Robbins
Cor, 117 min
***1/2
Título em Portugal: Quarto com Vista Sobre a Cidade; título na França: Chambre avec Vue
Vi este filme ontém, 19 maio. Que bom ver novamente juntas, Maggie Smith e Judi Dench, depois de “O violinista que veio…” 19 anos antes. E, aqui com o refôrço da LINDÍSSIMA Helena Bonhan Carter, como voce disse em seu segundo filme ( depois, outros tantos ótimos )e no qual ficou conhecida para o cinema e esse maravilhoso ator,Daniel Day-Lews.
Filmes com ele que não esqueço,”a insusten-
tável leveza , a época da inocencia , sangue negro e meu pé esquerdo ( oscar ).
A musica é muito bonita. O filme , lindo.
Nossa! Eu tinha uns 24 anos quando vi “Uma janela para o amor” no cinema. Na ocasião, apesar de vivermos em épocas tão distantes, eu passava pela mesma situação de “opressão” que Lucy, de viver num relacionamento infeliz sem coragem para virar o jogo. Esse filme foi uma verdadeira revolução na minha vida. Ninguém entendeu por que eu gostei tanto do filme. Rss.
Adorei os dois textos. O primeiro, confesso, gostei ainda mais. O filme é lindo e a fotografia é estonteante. Ainda estou digerindo.